Um “equívoco de comunicação” foi a expressão utilizada pelo prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), para descrever uma situação que causou a saída às pressas de moradores de dois dos principais bairros da capital do Rio Grande do Sul na segunda-feira, 6. A demora na emissão de alertas e avisos de evacuação, a abertura de abrigos em áreas alagáveis, a veiculação de informações imprecisas (e até erradas) e outras falhas na gestão de crise se repetiram entre autoridades públicas com a calamidade causada pelas enchentes e chuva extrema no Estado.
Em nota, o governo estadual afirmou que busca evitar a disseminação do pânico e a ocorrência de situações caóticas (leia mais abaixo).
Especialistas têm alertado a importância de criar, rever e aplicar planos e protocolos de comunicação e ação neste tipo de situação. A atuação das autoridades locais é vista como essencial para prevenir e mitigar os danos de eventos extremos, que serão cada vez mais frequentes e intensos diante das mudanças climáticas. Nessas situações, a antecipação pode salvar vidas e otimizar a resposta à catástrofe, enquanto erros somam mais problemas em uma situação de extrema urgência e sobrecarga.
Em coletiva de imprensa, o prefeito da capital gaúcha reconheceu a demora para ser comunicado do desligamento de parte do sistema de bombeamento que impedia o avanço da enchente pelos bairros Menino Deus e Cidade Baixa. Nessa situação, com as águas chegando a mais vias, decidiu postar um vídeo nas redes sociais em que recomendava a evacuação dos dois bairros, sem citar aonde ir ou quais quadras seriam afetadas pela inundação. A situação causou correria e engarrafamentos.
O caso citado não foi o único do tipo durante a crise humanitária e ambiental que afeta mais de 2,1 milhões de pessoas em 446 municípios. “As cidades e o Estado não estão preparados para lidar com a situação, e a população não recebe informações efetivas sobre as medidas a serem tomadas”, avalia Mariana Madruga de Brito, especialista em gestão de risco de desastres com atuação na região e pesquisadora do Centro Helmholtz para Pesquisas Ambientais, da Alemanha.
A pesquisadora analisa que os avisos e alertas não tiveram uma execução suficiente para chegar às pessoas e conscientizá-las do real risco. Como exemplo, cita que deveriam ser enviados por mensagem de celular mesmo para quem não é cadastrado e com informações objetivas. “(A mensagem) Dizer só que vai ter inundação não é suficiente. As pessoas precisam saber o que fazer, onde ir, as atitudes seguras”, aponta.
Dessa forma, ela cita casos de pessoas que não sabiam qual número procurar para solicitar um resgate. Situações semelhantes se repetiram ao longo do desastre, com incontáveis pedidos semelhantes espalhados por redes sociais e grupos de mensagens, assim como postagens de grupos dispostos a buscar aqueles que estavam ilhados. “As pessoas se organizarem mostra a lacuna (deixada pelas autoridades) que tiveram que preencher”, comenta.
Outra situação que gerou críticas foi a divulgação da imagem de um mapa com áreas propensas a alagamentos na região metropolitana de Porto Alegre, feito pela Defesa Civil do Estado. A projeção não havia considerado relevo e outras características que interferem no avanço das águas. “Alerta inundação severa, evacue imediatamente áreas de risco, busque locais seguros”, dizia a postagem de sábado, 4.
Após a publicação, um grupo de hidrólogos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) compartilhou um texto assinado por um deles para explicar que o mapa da Defesa Civil não incluía áreas “conhecidamente altas, que seriam impossíveis de serem inundadas”. No texto, é descrito que a situação teria causado “confusão e pânico” entre a população.
No mesmo dia, outra postagem com problemas gerou repercussão. O perfil do prefeito de Canoas, Jairo Jorge (PSD), postou a gravação de uma ligação na qual ele dizia que nove pessoas teriam morrido durante a evacuação do Hospital de Pronto-Socorro, enquanto estava sendo alagado. Horas depois, após o vídeo se espalhar pela internet e grupos de WhatsApp, foi apagado e um novo com um esclarecimento foi veiculado pela equipe do gestor municipal. A versão oficial é que ocorreram três óbitos durante a remoção de pacientes.
Além disso, a localização de alguns pontos importantes de resposta à crise gerou debate em Porto Alegre. Um dos primeiros abrigos de resposta à enchente foi instalado por volta da quarta-feira, 1º, em uma casa de shows em frente ao aeroporto da cidade, recebendo moradores das ilhas da capital gaúcha. Dois dias depois, as pessoas precisaram ser recolhidas para um novo local diante do avanço das águas do Lago Guaíba pela aquela região.
Situação semelhante se repetiu no centro cultural do Teatro Renascença, que funcionou como um ponto de triagem para desabrigados de todas as regiões de Porto Alegre antes da destinação para um espaço de acolhimento. O local precisou ser esvaziado às pressas na segunda após o avanço da enchente pelos bairros Menino Deus e Cidade Baixa. Em ambos os casos, os locais ficam em áreas sabidamente propensas a alagamentos em caso de colapso do sistema anticheias.
Em uma análise geral desse tipo de situação, o professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da UFRGS, Fernando Mainardi Fan avalia que os prefeitos deveriam considerar as áreas propensas a alagamentos e inundações para fixar os abrigos. Isso depende, contudo, de um mapeamento com dados detalhados da topografia, o que é pouco comum no País.
“Como muitas cidades não têm esses mapeamentos adequados, incorre-se no problema de muitas vezes adotarem locais que não são adequados para um abrigo e terem que substituir depois”, diz. Para ele, foram tomadas “algumas decisões equivocadas” em Porto Alegre, por exemplo, “mas, na verdade, não se pode culpar ninguém, porque ninguém esperava que o sistema fosse falhar”, completou.
Além disso, para o hidrólogo, os avisos de evacuação foram razoáveis. “A Defesa Civil fez um bom trabalho nesse evento apesar dos dados limitados, recursos limitados, que nós possuímos”, analisa.
Já a diretora substituta do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), Regina Alvalá avalia que o tempo de resposta aos avisos emitidos pela central demoraram no Rio Grande do Sul, assim como em outras tragédias históricas no País. “Foi devidamente previsto e alertado”, destaca.
“A primeira previsão de risco alto de inundações do Cemaden foi em 30 de abril (a chuva extrema começou no dia 27 em partes do Estado). Se as cidades do Estado tivessem se preparado, tivessem planos, todos podiam ter tomado ações e retirar as pessoas de forma mais estruturada”, analisa. “Correram quando o leite já estava começando a derramar.”
Além disso, a diretora destaca que os procedimentos nesses casos precisam estar claros para a população e serem feitos com uma antecedência segura. “Na hora de tirar, tem que saber exatamente onde a população está indo para ficar segura.”
Um vídeo oficial do governador Eduardo Leite (PSDB) recebeu críticas pelo tom do alerta para a semana de 29 de abril a 3 de maio. Na gravação, brinca que não é “o homem do tempo” antes de falar que a chuva extrema iria avançar por mais localidades e que seria um evento climático provavelmente de grau severo.
Professor de Psicologia na Universidade Federal de Rio Grande (FURG), Lucas Neiva Silva fala do impacto dessa crise na comunicação, pois a adoção de protocolos e veiculação de orientações claras poderiam evitar até mesmo decisões precipitadas da população e que podem prejudicar ainda mais a situação. “Gera um nível de ansiedade populacional muito difícil de gerenciar”, diz. “Gera um impacto populacional muito grande devido à falta de conhecimento desses protocolos. Precisamos aprender com a ausência do que deveria estar pronto neste momento”, completa.
Ele cita como exemplo o desabastecimento de supermercados ocorrido mesmo antes do avanço da enchente naquela região do Estado. “Tem o impacto, inclusive, da desigualdade social nessa hora, porque quem tem mais dinheiro chega lá e compra 200 litros de água, faz compra para 60 dias. Muitas vezes, a pessoa com menos recursos, chega e já acabou tudo isso, muitas vezes não tem carro para carregar, não tem dinheiro para comprar tudo isso.”
“Se eu sei que vou ser informado com antecedência, posso tomar as medidas adequadas com antecedência, sem desespero, sem correria a supermercados, sem as pessoas pegarem o carro e saírem desesperadas na rodovia sem saber para qual direção ir”, aponta. “Na nossa área de Psicologia das Emergências, tem um impacto psicológico muito grande sobre a população.”
No desastre gaúcho, a divulgação de imagens de mapas que não permitiam a visualização de quais ruas abrangiam esteve entre as principais reclamações. A seção de comentários de cada publicação do tipo é repleta de pedidos de mais informações e reclamações. “Informem os endereços dos locais seguros para as pessoas que não têm para onde ir”, diz uma resposta, por exemplo.
Professora e pesquisadora da UFRGS na área de risco, crise e comunicação, Ana Karin Nunes avalia que a situação no Rio Grande do Sul teve alguns casos em que “se pecou pelo excesso”, com informações desencontradas, por exemplo. Segundo ela, esse ponto é ainda mais importante porque são situações novas para grande parte dos afetados e em um contexto no qual não tiveram treinamento ou acesso a uma educação de prevenção a desastres, por exemplo.
Além disso, a professora destaca que uma comunicação eficiente é ainda mais importante em um contexto em que facilmente se propagam fake news e dados desencontrados. “Em uma situação de crise, geralmente tem uma perda do fluxo das informações. Controlar fluxo é determinante para o curso da crise. Em um desastre, é ainda mais difícil, porque as informações ainda estão se consolidando e tenho muitas fontes pulverizadas e muita desinformação”, pondera.
O Estadão procurou a prefeitura de Porto Alegre e de Canoas, mas não obteve retorno. Em nota, o governo estadual destacou que a Defesa Civil “orienta as pessoas a considerarem não apenas o mapa de possíveis áreas de inundação divulgado pelo órgão, mas, também a elevação do local onde vivem” e que a plataforma SOS Enchentes foi criada nos últimos dias para reunir informações sobre abrigos, municípios afetados e outros dados.
“A decisão de não indicar pontos específicos nos alertas busca evitar a disseminação do pânico e a ocorrência de situações caóticas entre aqueles que estão distantes do possível local indicado”, justificou. Também destacou que estabeleceu um Gabinete de Crise de Comunicação, que conta com dados analisados por técnicos de plantão. “Da mesma forma, as Defesas Civis municipais possuem planos de contingência e fornecem orientações constantes à população”, pontuou.