Primeira travesti a chefiar uma Secretaria do governo federal, a paraense Symmy Larrat, de 44 anos, foi oficialmente nomeada secretária nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+ na última quarta-feira, 25. Ao Estadão, ela diz que pretende recriar a nível nacional uma política com bolsas de estudo e trabalho para a população transgênera inspirado no Transcidadania, programa criado por Fernando Haddad (PT) durante sua gestão como prefeito de São Paulo e mantido até hoje.
“Não podemos entregar nada menor que isso na gestão pública”, diz Symmy. Com foco na reintegração social de travestis e transexuais em situação de vulnerabilidade, o programa oferece bolsas de R$ 1.272,60 para quem está sem emprego há quatro meses ou mais e com matrícula ativa em alguma instituição de ensino fundamental ou médio.
As bolsas são oferecidas pela Prefeitura por dois anos, com 660 vagas abertas no último dezembro. Levantamento feito em 2017 pela Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil aponta que 82% dessa população abandona o ensino médio entre os 14 e os 18 anos. Segundo a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), elas correspondem a só 0,1% das matrículas em universidades públicas do País.
Antes, a secretária define com prioridade “reconstituir uma política pública do zero” que garanta o acesso da comunidade LGBT+ à cidadania digna e “retomar com urgência a participação social” nessas pautas. “Percebemos que o governo (anterior) passou o tempo inteiro promovendo o apagamento da nossa pauta e das políticas.”
A médio e longo prazo, Symmy quer também criar protocolos que reforcem a decisão firmada em 2019 pelo Supremo Tribunal Federal, que equiparou a discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero à injúria racial. Neste mês, o governo federal sancionou mudanças na Lei do Racismo, o que, segundo especialistas, também transforma as ofensas contra a comunidade LGBT+ em inafiançáveis e imprescritíveis.
“Se eu perguntar hoje para um Estado quantos crimes de homotransfobia foram denunciados na delegacia, tem Estado que não vai saber me responder”, diz Symmy.
Na entrevista abaixo, ela fala sobre as propostas interministeriais que pretende levar para a população LGBTI+ e diz que o cenário para implementá-las hoje é mais favorável do que nos governos petistas anteriores. Também comenta polêmicas, por exemplo, como linguagem neutra e banheiros unissex. “Colocar isso (banheiro unissex) como nossa prioridade é tentar nos pautar e esvaziar a nossa pauta.
Apesar de a secretaria ser inédita, você já trabalha como ativista e gestora há décadas. Qual considera a principal urgência para a comunidade LGBT+?
Pelo ativismo e pela gestão pública, se formos olhar a política em si, que é mais a médio e longo prazo, precisamos construir normativas para que a decisão do STF entre em vigor e aconteça de fato. Não há nenhuma orientação nítida para atendimento, investigação, tramitação nem nada.
Mas o que é urgente para o atendimento da população é a volta do investimento nos Centros de Cidadania e ou de Promoção em Defesa, que têm nomes diferentes em cada lugar. E a ampliação de espaços para o acesso à saúde. São questões muito urgentes porque falam do atendimento de ponta.
O que considera positivo para a comunidade LGBTI+ feito na gestão anterior?
Nosso primeiro passo tem sido organizar a secretaria. Havia uma diretoria, mas ela não comporta a nossa estrutura. Percebemos que o governo (anterior, de Jair Bolsonaro) passou o tempo inteiro promovendo o apagamento da nossa pauta e da política, certo? Por exemplo, nenhum ministério falava ou tinha ação voltada para a nossa pauta. Todas as ações eram feitas única e exclusivamente dentro do Ministério da Mulher, da Família e Direitos Humanos. O próprio Conselho (Nacional LGBTI+) só falava com esse ministério.
Foi um período onde havia apenas os projetos de emenda parlamentar. Se uma organização conseguisse as emendas, tinha. Mas (as ações) eram muito focadas em qualificações profissionais, sem nenhum objetivo concreto, com oficinas bem simples e sem nenhum escopo de encaminhamento para o mundo do trabalho.
Nosso trabalho vai ser reconstituir uma política pública do zero e dar mais estrutura para ela existir. O primeiro passo é reorganizar a secretaria e retomar com urgência a participação social, pela instalação do Conselho Nacional LGBTI+, que esperamos entregar nas próximas semanas.
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O Brasil está há 14 anos no topo dos países que mais matam a população trans. Parte desse período foi durante o governo do PT. Como você avalia as ações de enfrentamento a essas violências naquela época e o que mudou hoje?
O País nunca foi o mais seguro para essa população, a gente pode falar isso com muita tranquilidade. Em períodos anteriores, tinha investimento em políticas públicas que tentassem enfrentar essa realidade. Isso foi apagado nos últimos quatro anos.
Tem uma situação diferente hoje. Foi durante esse período mais tenebroso (do governo anterior) que o STF disse em uma decisão que a homotransfobia precisa ser enfrentada, encarada como crime e julgada. Nos outros anos, a gente tentava, mas o Congresso barrava e fez toda a negação possível desses direitos. Por mais que a gente lutasse e tentasse construir políticas públicas, esbarrávamos nessa realidade de negação que a ação contra nós era criminosa.
Hoje, temos outra realidade, mas o governo federal (anterior) não fez o dever de casa. A gente precisa, urgentemente, criar essas normativas no campo da Justiça e da Segurança Pública, para que esse sentimento de impunidade não se perpetue. Sobretudo após o decreto do presidente que considera injúria como racismo, o que embarca essa população.
Só que uma violência não é enfrentada apenas com aparato de Segurança Pública. Também precisamos promover ações de acesso à cidadania nas mais diversas áreas, como educação, saúde, assistência social, para termos uma rede protetiva para a população LGBTI+. Os dados que temos são de assassinatos, precisamos inclusive de dados sobre violências…
Inclusive, até os números de assassinatos que temos, principalmente da população trans, são levantados pela sociedade civil e com base em notícias da imprensa, como no dossiê da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). Ainda não temos uma unidade federal desses dados. Isso é algo que você pretende oficializar?
Quando falo de normativas na segurança pública é exatamente disso. Se eu perguntar hoje para um Estado quantos crimes de homotransfobia foram denunciados na delegacia, tem Estado que não vai saber me responder. Porque não há uma orientação do governo federal, que precisa fazer normativas com campos no sistema para que possamos extrair essa informação e nos debruçar sobre a violência, de maneira geral. A partir daí, criar outros caminhos de enfrentamento.
Quando falo de valer a decisão do STF é isso, não só prender. Precisamos entender por onde passa essa violência e como ela deve ser encarada na gestão pública.
Symmy Larrat, secretária nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+
Você classificou como urgente o emprego, renda e existência da população trans. Em São Paulo, você gerenciou o Transcidadania, programa de bolsas de ensino e trabalho criado por Haddad e mantido pelas gestões seguintes. É possível fazer algo similar a nível nacional?
O Transcidadania nos deu um modelo possível de política pública para pessoas transgêneras e que pense interseccionalidade. Esse modelo vai nos basear para construir ações que visem empregabilidade, educação e renda. Isso tem sido uma das nossas prioridades. Não posso garantir que vou entregar um programa Transcidadania, mas também não podemos entregar nada menor que isso na gestão pública. É algo que vamos debater e, se possível, entregar ainda nessa gestão.
Você disse que o enfrentamento a essas violências não pode se restringir à reação ao crime. Em alguns países, como Reino Unido e Suíça, o ensino sobre diversidade sexual e de gênero é feito no início da vida escolar, adequado à idade de cada aluno. No Brasil, não temos nada sobre esse tipo de ensino na Base Nacional Curricular, por exemplo. A última vez que isso foi tentado, no governo da Dilma Rousseff, em 2013, a proposta foi barrada por pressão das bancadas católica e evangélica. O cenário de hoje permitiria retomar essa discussão de incluir questões sobre diversidade nas escolas?
O cenário está mais propício para a promoção das políticas públicas LGBTQIA+ como um todo. Não à toa, a estrutura da Esplanada prevê assessorias com responsabilidade de diversidade no gabinete de quase todos os ministérios. Isso foi implementado durante o primeiro dia do governo Lula, para debater de forma interseccional. Para que isso desça em diversos pontos há uma necessidade de articulação. Enquanto estive nos lugares de liderança do movimento, a pauta nunca foi para educar sobre diversidade sexual e de gênero. O que queremos é uma educação inclusiva que pense essas questões.
Por exemplo, ninguém ensina Matemática dando equação no primário. O que queremos é uma educação que pense respeito, equidade, solidariedade, empatia… Se eu falar que precisa ensinar diversidade de gênero e sexual, a gente fomenta uma discussão que não é a que queremos. Mas temos um cenário mais propício para, quando chegar o momento de debater bases curriculares e retomar certas questões, poderemos pautar uma inclusão mais respeitosa com base em direitos humanos.
Quero dizer que temos esse cenário, mas é a nossa força de diálogo que vai dar o tamanho das nossas conquistas. O próprio Ministério dos Direitos Humanos tem uma assessoria direta sobre a educação em Direitos Humanos. Onde, nessa estrutura, precisamos promover mudanças para que o resultado na ponta não seja promoção da violência, mas da igualdade nas relações.
Não posso precisar o momento que isso vai acontecer, mas as estruturas para que esse diálogo ocorra em outro patamar do que já tivemos, inclusive em nossos governos, já construímos. Agora precisa arregaçar as mangas. Estamos levantando qual será a nossa pauta com cada ministério, desde Educação, passando por Turismo, Esporte e todas as áreas. O que acharmos importante para a população será feito.
Como foi feito o convite para chefiar a secretaria? A impressão que ficou é que a ideia surgiu após o pedido público do Lulu Santos.
Na verdade, não. Aquele pedido do Lulu Santos só deu luz a isso. Desde que o governo de transição foi instaurado, todos os movimentos sociais já tinham apresentado essa demanda e o Lula já tinha decidido. O anúncio acontece com a movimentação do Lulu Santos - e que bom que ele fez, porque isso trouxe à tona e escancarou a questão.
O convite pra minha pessoa chegou na véspera de Natal, foi um presente. O ministro (dos Direitos Humanos, Sílvio Almeida) foi meu Papai Noel. A gente teve uma conversa de mais de uma hora. Para isso acontecer, é porque a estrutura já estava garantida e as coisas já estavam tramitando. A fala do Lulu foi no dia 27, e eu fui convidada no dia 24. Mas achei muito bacana, primeiro porque acho que nunca somos faladas na mídia de forma positiva. E achei a fala muito fofa, inclusive adoraria receber a visita do Lulu aqui. Todos os artistas, como ele, Pabllo Vittar, Daniela Mercury… Tanta gente que ficou nos últimos anos defendendo a pauta.
Muitas pessoas têm apontado que a linguagem neutra tem sido utilizada em alguns discursos de posse e até na Agência Brasil, mesmo que não haja norma prevista pra isso na língua portuguesa. Qual sua opinião sobre essa discussão?
A gente sempre falou “bom dia a todos e todas”, mas o corpo cerimonial dos documentos oficiais seguia um padrão. Independente da minha opinião de achar que algumas estruturas foram construídas e alicerçadas em uma cultura patriarcal e machista - e que podemos mudar tudo desde seja pactuado em sociedade -, mas especificamente sobre linguagem, quando colocamos “bom dia a todos, todas e todes”, dizemos que estamos tratando as pessoas como elas querem. Na minha opinião, foi mais sobre isso do que mudar o manual de linguagem.
Mas também não é prejudicial se construirmos manuais que tentem pactuar o que, hoje, conseguimos ter de mais inclusivo enquanto sociedade. É o todes, o elu, ou falar todas as pessoas? Há caminhos possíveis. Não vejo prejuízo quando a gente debate inclusão. Agora, em sociedade, se pactua e não se impõe. Mas acredito que a gente não pode se deixar pautar pelo ódio.
Se for conversar com um conservador, ele vai dizer que nossa pauta é o banheiro (unissex). Mas não é. Isso é algo dentro de outros debates, como educação, emprego, viver e existir como somos. Usar o banheiro de acordo com o gênero é em decorrência disso. Colocar isso como nossa prioridade é tentar nos pautar e esvaziar a nossa pauta. O governo quer promover inclusão e vamos focar no que é emergencial. Hoje, isso significa reconstituir caminhos para enfrentar a fome, a miséria, a insegurança e a proteção das instituições democráticas.