O Supremo Tribunal Federal (STF) adiou pela segunda semana consecutiva o julgamento sobre a descriminalização do porte de drogas para uso pessoal. A sessão desta quinta-feira, 1º, teve duração reduzida por causa de encontro dos ministros da Corte com o presidente da Finlândia, Sauli Niinistö, que está em visita oficial ao Brasil. No tempo restante, foram priorizadas petições e outras questões de ordem. Ainda não há previsão de quando a discussão sobre a descriminalização do porte será retomada.
A Corte julga, desde 2015, recurso extraordinário da Defensoria Pública de São Paulo que contesta a punição prevista especificamente para quem “adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal”.
Na prática, o STF analisa a constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas, que hoje prevê penas por porte que variam entre “advertência sobre os efeitos das drogas”, “prestação de serviços à comunidade” e “medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”. Antes de o julgamento ser suspenso, três ministros votaram e, embora com algumas divergências pontuais, consideraram o artigo inconstitucional: Gilmar Mendes, relator do caso, Luís Roberto Barroso e Edson Fachin.
A Defensoria apresentou o recurso de repercussão geral – ou seja, que reverbera em outras decisões – após um homem ser condenado por portar 3 gramas de maconha. A sessão do STF não trata da venda de entorpecentes, que continuará ilegal independentemente do resultado.
O julgamento foi suspenso em setembro de 2015 com o pedido de vista do então ministro Teori Zavascki. Com a morte dele em um acidente aéreo, em 2017, o ministro Alexandre de Moraes o substituiu e devolveu o pedido de vista ao plenário um ano depois, em 2018. A expectativa é que ele seja o próximo a votar.
No último dia 22, estudantes da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) realizaram um protesto simbólico em defesa da descriminalização das drogas. Uma faixa verde com os dizeres ‘Descriminaliza STF’ (sic) foi pendurada na parte superior da lousa da sala de aula onde Alexandre de Moraes lecionava.
Como votaram os ministros até aqui
Em 2015, Gilmar Mendes foi o primeiro ministro a falar e fundamentou seu posicionamento dizendo que a criminalização do consumo próprio fere a vida privada. “Afeta o direito ao livre desenvolvimento de personalidade para diversas manifestações”, afirmou. Segundo o ministro, a medida também “parece ofender de forma desproporcional a vida privada e a autodeterminação.”
Na prática, o ministro considerou que o artigo 28 da Lei de Drogas é inconstitucional. Apesar de o caso em análise envolver o porte de maconha, Gilmar optou por uma análise mais abrangente na época, o que atinge todos os entorpecentes.
Conforme o voto do relator, uma pessoa que for flagrada com drogas deveria ser levada a um juiz, que definiria o que deve ser feito na sequência. Ele criticou a forma como o processo é feito hoje, em que cabe a um delegado de polícia definir se o portador de droga é traficante ou usuário.
Ainda em 2015, os ministros Edson Fachin e Luís Roberto Barroso acompanharam o voto do relator e consideraram que o artigo 28 é inconstitucional, mas fizeram ressalvas. Na ocasião, Fachin foi enfático ao dizer que a descriminalização deveria ser feita “exclusivamente” para o porte de maconha e o ministro Barroso afirmou que não se manifestaria sobre os demais tipos de entorpecentes.
A criação de parâmetros que possam diferenciar um usuário de um traficante também motivou debate entre os ministros. “Enquanto não houver pronunciamento do Poder Legislativo sobre tais parâmetros, é mandatório (obrigatório) reconhecer a necessidade do preenchimento dessa lacuna”, disse Fachin.
Foi quando Barroso propôs o limite de porte de 25 gramas de cannabis (maconha), mesmo critério adotado por Portugal. Para Fachin, porém, os parâmetros devem ser estabelecidos pelo Poder Executivo – até que o Congresso aprove lei sobre o assunto.
Estudo projetou impactos da descriminalização
Como mostrou o Estadão, se o limite proposto por Barroso for a “régua” adotada, 31% dos processos por tráfico de drogas em que houve apreensão de maconha poderiam em tese ser reclassificados como porte pessoal no País, segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Ao mesmo tempo, 27% dos condenados nesses mesmos termos poderiam ter os julgamentos revistos por estarem dentro do parâmetro.
Especialistas divergem sobre o tema. Uma parcela acredita que definir critérios pode evitar condenações injustas e reduzir a subjetividade, incluindo o risco de viés racial, nas análises da polícia e do Judiciário sobre casos de apreensões de drogas e diminuir o encarceramento. Já outras correntes veem fortalecimento do alcance de facções criminosas com a descriminalização e possibilidade de aumento do número de usuários.
Para o procurador do Ministério Público de São Paulo Marcio Sergio Christino, é contraditório discutir a descriminalização sem tratar da regulação de mercado. “A simples liberação do consumo de drogas, por um direito à intimidade, traz consequências danosas para a sociedade”, diz. “Principalmente na questão do crime organizado, já que vai se criar uma demanda para a qual há necessidade de fornecimento e de se incrementar o mercado. Não existe compra sem venda.”
Guilherme Carnelós, presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), tem posição contrária. Ele não vê sentido em dizer que a descriminalização do porte abre brechas para o tráfico de drogas. “É um discurso muito mais moralista do que técnico, porque ninguém deixa de consumir drogas porque é proibido”, diz. Segundo ele, o julgamento passa sobretudo pela discussão do racismo estrutural nas atividades das polícias e do Judiciário.