O Supremo Tribunal Federal (STF) avançou nesta quinta-feira, 24, no entendimento de que somente o porte de maconha deve ser descriminalizado no Brasil. Também formou-se maioria para definir um critério objetivo (uma quantidade de droga), que diferencie usuário e traficante – provavelmente entre 25 e 60 gramas, mas isso só será decidido ao fim do julgamento.
O Supremo julga o artigo 28 da Lei das Drogas (11.343/2006). Para diferenciar usuários e traficantes, esse texto prevê penas alternativas de prestação de serviços à comunidade, advertência sobre os efeitos das drogas e comparecimento obrigatório a curso educativo para quem adquirir, transportar ou portar droga para consumo pessoal.
A questão: a lei deixou de prever prisão, mas manteve a criminalização. Dessa forma, usuários de drogas ainda são alvo de inquérito policial e processos – o que está em análise no STF é uma detenção com 3 gramas.
A possibilidade de revogar esse entendimento preocupa Marcio Sergio Christino, procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP), que teme até avanço das facções. “Tem um aspecto duplo que está passando em branco: se o STF descriminaliza o uso da maconha, quem vai ser o fornecedor? Como se pode tomar essa decisão sem que haja regulamentação da oferta? Em todo país do mundo em que houve liberação ou flexibilização do consumo de drogas, teve a regulação do mercado.”
Para ele, “se você fizer apenas um lado da moeda, vai criar uma demanda sem oferta, e o efeito será o fortalecimento das facções e organizações criminosas, que são as vendedoras”. “Não existe mais o traficante isolado, todos são ligados a alguma facção”, afirma o procurador Christino.
Para o advogado Cristiano Marona, diretor da plataforma Justa e autor do livro Lei de Drogas interpretada na perspectiva da liberdade, o julgamento está abaixo da expectativa. “Restringir a declaração de inconstitucionalidade apenas à maconha é algo que não consigo entender. A tese jurídica é de que pessoas adultas podem escolher os produtos que queiram usar para fazer mal a si próprias. Como maconha pode e outras drogas não?”, questiona. “A montanha pariu um rato”, resume.
Para ele, mesmo se a descriminalização for a tese defendida pela maioria, como se desenha, a mudança não vai representar uma evolução significativa. “Está se desenhando também que não vai mais ser crime, mas vai continuar sendo ilegal. As coisas vão continuar como estão. Vai mudar exatamente o necessário para que tudo permaneça como está. Uma decisão que na prática não vai mudar nada, a polícia vai continuar dedicando boa parte do seu tempo a reprimir portadores de pequenas quantidades”, reclama.
Como funciona nos outros países
O Brasil faz parte do grupo de 22 países nas Américas que têm o uso medicinal de cannabis permitido – e dos 20 que autorizam a produção e distribuição da planta para esse fim. O Monitor de Políticas de Drogas nas Américas, do Instituto Igarapé, aponta que quatro países nas Américas regulam a cannabis para fins recreativos: Canadá, Dominica, Uruguai e Estados Unidos, onde 23 Estados, além do Distrito de Colúmbia e Ilhas Virgens Americanas, legalizaram esse consumo, com quantidades que variam de acordo com o marco regulatório de cada um.
No Uruguai, a compra de até 40 gramas por mês de maconha, em farmácias especializadas, foi legalizada em 2013.
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, já classificou como um “equívoco grave” a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal (STF) descriminalizar o porte de drogas para uso pessoal. Segundo Pacheco, a discussão sobre a alteração da lei que trata das punições para usuários de entorpecentes cabe exclusivamente ao Poder Legislativo, e não ao Judiciário. De acordo com o presidente do Senado, há uma intromissão do STF nas decisões do Congresso Nacional.
Os votos
O STF retomou nesta quinta-feira, 24, o julgamento sobre a descriminalização do porte de drogas para consumo próprio. Até então, quatro ministros haviam votado, todos eles a favor da descriminalização.
Nesta quinta-feira foram proferidos mais dois votos, um a favor e outro contra a descriminalização, e portanto o placar está 5 a 1 pela descriminalização. Restam os votos de cinco ministros, mas um voto a mais pela descriminalização será suficiente para formar maioria nesse sentido.
O primeiro a votar nesta quinta-feira foi Cristiano Zanin, que tomou posse como ministro do STF no último dia 3. Ele votou contra a descriminalização. “A descriminação, ainda que parcial das drogas, poderá contribuir com o agravamento deste problema de saúde”, afirmou o ministro.
Ele defendeu a adoção de um critério objetivo para separar usuários de traficantes (o que é importante porque a punição para usuários é mais branda): quem tiver até 25 gramas de maconha ou seis plantas seria considerado usuário, embora o crime possa ser requalificado para tráfico “mediante fundamentação das autoridades envolvidas”.
Em seguida, o ministro André Mendonça pediu vista do processo, o que interrompe novamente o julgamento. Ele tem 90 dias corridos para devolver o processo, contados a partir da data de publicação da ata da sessão desta quinta-feira.
Diante da interrupção, no entanto, a ministra Rosa Weber, presidente do STF, pediu para emitir seu voto, já que ela vai se aposentar em setembro e até lá pode ser que o julgamento não tenha recomeçado. Ela, então, votou a favor da descriminalização da maconha, seguindo os primeiros quatro ministros da Corte.
“Entendo que, conquanto válida a política pública de prevenção ao uso indevido de drogas, a criminalização da conduta de portar drogas para consumo pessoal é desproporcional, por atingir de forma veemente o núcleo fundamental da autonomia privada”, afirmou Rosa.
Outra mudança na sessão desta quinta-feira foi da tese defendida pelo relator, ministro Gilmar Mendes. Ele foi o primeiro a votar, em 2015, e defendeu que o porte de qualquer droga, exclusivamente para uso próprio, não configurasse crime. Os ministros que votaram a seguir defenderam a liberação do porte exclusivamente da maconha, e então Gilmar decidiu adaptar seu voto, em busca de um consenso.
O caso
O julgamento foi provocado pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, que em fevereiro de 2011 apresentou um recurso extraordinário ao STF contra a condenação de um homem pelo porte de 3 gramas de maconha. O réu, um mecânico de 50 anos, estava preso no Centro de Detenção Provisória (CDP) de Diadema por outros crimes, dividia a cela com outros 33 detentos e foi flagrado com a droga – ele afirmou, à época, que assumiu ser o dono dela para respeitar um rodízio estabelecido entre os detentos.
Após mais de quatro anos na fila, o recurso foi a julgamento no STF em agosto de 2015, com o voto do relator, ministro Gilmar Mendes, que defendeu a descriminalização da posse de qualquer tipo de droga e não estabeleceu quantidade.
Em seguida votou o ministro Edson Fachin, que restringiu a descriminalização à maconha e delegou ao Congresso Nacional a responsabilidade de estabelecer um parâmetro quantitativo. O terceiro a votar foi Luis Roberto Barroso, que também restringiu a descriminalização à maconha e estabeleceu o limite de 25 gramas.
O quarto ministro a votar seria Teori Zavascki, mas ele pediu vista e o julgamento foi interrompido. Zavascki morreu em janeiro de 2017, sem dar seu voto.
O ministro Alexandre de Moraes, alçado ao STF na vaga de Zavascki, tornou-se responsável pelo voto e liberou o processo para que o julgamento recomeçasse no segundo semestre de 2018. Em 2019, o então presidente do STF, Dias Toffoli, chegou a marcar o reinício do julgamento, mas retirou a ação da pauta (lista de processos que irão a julgamento).
O caso só voltou a julgamento em 2 de agosto passado, quando Moraes proferiu seu voto – ele restringiu a descriminalização à maconha e estabeleceu até 60 gramas do produto. Em seguida, o ministro Gilmar Mendes pediu a interrupção do julgamento para formular uma nova tese sobre o caso, apresentada nesta quinta-feira.