“Irmãos e irmãs, boa noite! Vocês sabem que o dever do Conclave era de dar um bispo a Roma: parece que meus irmãos cardeais foram buscá-lo quase no fim do mundo!” Assim começou há dez anos o pontificado do papa Francisco, o ex-arcebispo de Buenos Aires Jorge Mario Bergoglio. Em uma entrevista ao jornal italiano Il Fatto Quotidiano para falar de seus dez anos de pontificado, celebrados nesta segunda-feira, 13, resumiu em uma palavra o que espera para o futuro de seu ministério e da Igreja: a paz e o fim do que chama de “globalização da indiferença”.
Sobre o momento da Igreja, fez ainda uma crítica ácida, em que aponta que o clericalismo (uma visão de Igreja que muitas vezes põe de lado os leigos, as pessoas comuns) criou um tempo único, “pior ainda que os tempos dos papas corruptos”.
Em seus dez anos de pontificado, o papa procurou avançar em diversos temas, como o fim da cultura dos abusos e a sinodalidade, mas há muitos desafios ainda, alguns que com certeza ficarão para seu sucessor. Abaixo, dez imagens do atual pontificado compiladas pelo Estadão.
1. O papa ‘do fim do mundo’ e protetor dos pobres
Em entrevista na semana passada, a jornalistas argentinos, o papa procurou detalhar como viu sua eleição em 13 de março de 2013. A definição ocorreu no segundo escrutínio daquela tarde, mas no primeiro já se observava uma tendência, o que deixou Bergoglio ansioso. “O cardeal [Cláudio] Hummes, que estava sentado atrás, veio até mim na primeira votação e me disse: ‘Não tenha medo, é assim que o Espírito Santo age’. Até me emociono porque ele morreu há pouco tempo e eu gostava muito dele. E quando fui eleito na segunda votação - alcancei a marca dos dois terços e a contagem continuava, todos estavam aplaudindo, enquanto a contagem continuava -, ele se levantou, me abraçou e me disse ‘Não se esqueça dos pobres’. Isto me toca. Um grande homem, Hummes, um grande homem. Bem, os pobres, o que eu sei: São Francisco. Francisco, ponto. Então quando o cardeal [Giovanni Battista] Re me perguntou ‘Que nome quer dar a si mesmo?’, eu disse ‘Francisco’, ponto.”
2. O mais influente morador da hospedaria
Inicialmente, a Casa Santa Marta (Domus Sanctae Marthae) era uma espécie de hospital, construído pelo Papa Leão XIII, que em 1891 ajudou a recolher e cuidar daqueles que foram vítimas de uma onda de cólera em Roma e durante a Segunda Guerra Mundial (1945) abrigou refugiados judeus e outros que foram banidos pelo regime comunista italiano. Quando eleito, na agora hospedaria, Francisco era hóspede, como no conclave anterior, de 2005. Mas optou por continuar a morar ali, abrindo mão de viver no Palácio Apostólico. A justificativa: “a residência do Palácio Apostólico não é luxuosa. É grande, de muito bom gosto, mas não luxuosa. Parece um funil ao contrário, pois a entrada é estreita e o corpo bem largo. Somente uma pessoa por vez pode entrar ali e eu não consigo viver sozinho. Eu preciso viver no meio das pessoas.”
3. Um influenciador que ainda atrai multidões
Principal redator do Documento de Aparecida, a última grande reunião de bispos latino-americanos, realizada em 2007, Francisco voltou ao Brasil ainda em 2013 e mais de 3,5 milhões de pessoas foram à Jornada Mundial da Juventude na praia de Copacabana. Segundo o Ministério do Turismo, foi a maior movimentação oficial de visitantes em uma única cidade do Brasil até hoje. Curiosamente, a concentração foi causada por problemas estruturais. “Penso que podemos aprender algo daquilo que sucedeu nestes dias: por causa do mau tempo, tivemos de suspender a realização desta Vigília no “Campus Fidei”, em Guaratiba. Não quererá porventura o Senhor dizer-nos que o verdadeiro “Campus Fidei”, o verdadeiro Campo da Fé não é um lugar geográfico, mas somos nós mesmos? Sim, é verdade! Cada um de nós, cada um de vocês, eu, todos”, disse Francisco. Por onde vai, o atual papa continua a reunir multidões - ainda mais, como apontam alguns vaticanistas, pelo fato de ter mudado o foco de áreas mais tradicionais católicas com perda de fiéis (como a Europa) por outras em que o catolicismo cresce (como a África).
4. Um escritor verde e atento às mudanças climáticas
Entre as principais cartas de um magistério papal estão as encíclicas. Nesse ponto, é comum que o papa tenha em seu pontificado sempre um texto mais político e um mais social, no caso da mais recente “Fratelli Tutti”, por exemplo. No entanto, Francisco mostrou uma atenção ímpar para a causa ecológica e a necessidade de mitigação das causas das mudanças climáticas. Conforme sua própria definição, o texto de Laudato Si’ entrou para o compêndio de textos da Doutrina Social da Igreja, com sua defesa da ecologia integral e a crítica ao consumismo e ao desenvolvimento irresponsável. E a partir desta, como “filho”, surgiu o Sínodo pela Amazônia, em 2019. “Quando os seres humanos destroem a biodiversidade na criação de Deus; quando os seres humanos comprometem a integridade da terra e contribuem para a mudança climática, desnudando a terra das suas florestas naturais ou destruindo as suas zonas úmidas; quando os seres humanos contaminam as águas, o solo, o ar… tudo isso é pecado… Porque um crime contra a natureza é um crime contra nós mesmos e um pecado contra Deus”, diz.
5. Um rei descentralizador, acusado de ser autoritário
Nas várias sessões que antecederam o conclave, Bergoglio destacou a necessidade de reformar a Cúria romana. No Natal de 2014, fez uma lista dos 15 pecados daqueles que governam a Igreja. A severidade inédita do discurso do pontífice convidou o clero a fazer um “exame de consciência” a respeito das doenças, entre as quais o “Alzheimer espiritual” e a “esquizofrenia existencial” de que padeceriam religiosos e altos funcionários da Santa Sé. Realçou ainda a patologia do poder, que faz com que alguém se sinta dono e superior a todos “e não ao serviço de todos”, por isso receitou “uma visita aos cemitérios” para ver “os nomes das pessoas que talvez pensassem também ser imortais, imunes e indispensáveis” Em seu pontificado, reduziu as atribuições, fez uma nova constituição (Praedicate Evangelium), apostou em colegiados e sínodos e se assessorou de um conselho consultivo de cardeais. Ao mesmo tempo, essa forma de condução motiva seus principais críticos a considerá-lo autoritário e de cada vez mais entrar em uma fase de “autoridade imperial”, em que transforma opiniões em decisões.
6. Um líder acuado e preocupado pela “tragédia dos abusos”
Entre as questões que herdou de seus antecessores, Francisco teve de enfrentar desde o início as crescentes questões referentes a abusos praticados por pessoas ligadas direta ou indiretamente à Igreja Católica. Em seu pontificado, as denúncias levaram até a julgamentos de cardeais por supostos encobrimentos. Sua resposta mais prática foi o documento “Vos estis lux mundi” (Vós sois a luz do mundo), em que determinou a criação, por todas as dioceses, de um sistema acessível a quem quiser fazer uma denúncia, bem como a total proteção e assistência aos denunciantes. Mas também chegou a reunir bispos e conferências de todo o mundo em Roma para discutir o problema. “A Igreja não pode tentar esconder a tragédia dos abusos, quaisquer que sejam. Nem quando os abusos ocorrem nas famílias, em clubes, ou noutro tipo de instituições. A Igreja deve ser um exemplo para ajudar a resolvê-los, tornando-os conhecidos na sociedade e nas famílias”, disse o papa, em vídeo mensal enviado a todo o mundo.
7. Um caminhante na via-crúcis e na defesa da vacina contra a covid
Por dois anos seguidos, a via-crúcis, uma das celebrações mais importantes da Semana Santa aconteceu na Praça São Pedro, e não no Coliseu de Roma, como de hábito, devido às medidas de restrição contra a covid-19. As imagens de um papa solitário correram o mundo, mas, logo na sequência, o papa, apesar da idade avançada e de cirurgias em sequência, retomou praticamente o mesmo ritmo, Em 2021, aliás, ainda “enjaulado” (como ele mesmo dissse) na Biblioteca Apostólica para o Angelus dominical e audiências gerais, propôs na retomada das atividades normais que houvesse “um renascimento e novas curas”. “Não negligenciemos a cura. Para além da vacina para o corpo, precisamos da vacina para o coração: é a cura. Será um bom ano se cuidarmos dos outros.”
8. Um sucessor inédito em séculos e um funeral único
Um dos capítulos mais atípicos da história da Igreja Católica moderna começou em 13 de março de 2013, quando o recém-eleito papa Francisco, aparecendo na varanda da Basílica de São Pedro ofereceu uma oração por seu antecessor ainda vivo, o pontífice emérito Bento XVI. Por quase dez anos, os dois conviveram no Vaticano, até que Joseph Ratzinger, o papa emérito, morreu no último dia 31 de dezembro, aos 95 anos. As visitas de Francisco nesses anos foram constantes, trazendo a imagem de Bento como de “um avô”, que vale sempre visitar e ouvir, considerando sempre a condição do papa católico como “um pai”. “Recordamos com emoção uma pessoa tão nobre e bondosa, que tanto bem fez”, disse Francisco durante as orações de ano-novo na Basílica de São Pedro. “Apenas Deus conhece o valor e a força de seus sacrifícios oferecidos pelo bem da Igreja.” Pela primeira vez, um papa celebrou o funeral de seu antecessor.
9. Um pacifista pouco ouvido
“A guerra é absurda e cruel. É uma empresa que não conhece crise nem mesmo na pandemia”, disse o papa sobre a invasão russa na Ucrânia. No entanto, suas intenções no sentido de superar conflitos, diferentemente de alguns de seus antecessores que foram mais ouvidos (como João XXIII, Paulo VI e João Paulo II), não têm refletido em ações. Recentemente, disse que Vladimir Putin sabe de que ele está disponível para ajudar na solução do conflito. Não há, porém, sinais de que essa mediação vá ocorrer. O tema do combate às guerras é recorrente nas falas do atual pontífice. “Em fevereiro, fui para a África, na República Democrática do Congo e no Sudão do Sul, e vi os horrores dos conflitos nesses dois países, com as mutilações das pessoas. Uma coisa que me faz sofrer muito é a globalização da indiferença, virar o rosto para o outro lado e dizer: ‘O que me importa? Não me interessa! Não é problema meu!’”
10. Um pai acolhedor, criticado por não agir
Uma característica do atual papa que chama a atenção de muitos vaticanistas é a capacidade de ouvir - tanto que convocou para o fim deste e do próximo ano um sínodo mundial sobre a sinodalidade, e convidou o mundo todo a contribuir. No entanto, para muitos, essa potencialidade tem pouco valor na Igreja de hoje por não resultar em ações práticas. Um exemplo: o papa estimulou a acolhida de grupos LGBT+ na Igreja. “Quem sou eu para julgar?”, disse em uma das viagens. Em outra ressaltou que o preconceito contra homossexuais era pecado. Isso não resultou, porém, em mudanças doutrinais (o ato homossexual em si continua a ser considerado pecado) ou estruturais - hoje há conflitos abertos no clero americano, por exemplo, falando até em heresia, sobre como acolher esses grupos. E na Alemanha, há outra “guerra” se aproximando, por uma provável permissão da conferência local para bençãos de uniões homossexuais. Sem contar as restrições à missa tridentina (anterior ao Vaticano II), que já foram motivo de escritas e reescritas de documentos papais. As escutas que incentivou na América Latina, na Europa e pelo mundo cobram mais espaços sobretudo para grupos marginalizados, mulheres e jovens. Mas há dúvidas sobre a criação de estruturas a partir disso. Na semana passada, Francisco voltou a dizer que o celibato dos padres é “momentâneo” e pode ser reformado no futuro. No entanto, apesar do tema ter sido suscitado no Sínodo da Amazônia (que sugeriu a figura dos homens casados para servir os altares), nem chegou a ser citado no documento de conclusão do papa a respeito sobre seus “sonhos” para a religião.