BELO HORIZONTE - A velocidade de disseminação de conteúdos nas redes sociais exige uma revisão urgente do Código Penal Brasileiro para que os vazamentos de fotos sigilosas, principalmente “post mortem”, como ocorreu com a cantora Marília Mendonça esta semana, possam ser devidamente punidos. É o que dizem advogados criminalistas ouvidos pelo Estadão para analisar as implicações legais da divulgação, na internet, de imagens na necropsia da cantora, que chocaram familiares e fãs da artista. O vazamento está sendo investigado pela Polícia Civil de Minas Gerais em um inquérito mantido sob sigilo.
A defensora pública Silvana Lobo, mestre em ciências penais, explica que a divulgação das fotos do corpo de Marília, que morreu em um acidente aéreo com mais quatro vítimas em 2021, em Minas Gerais, poderia, em tese, ser enquadrada no crime de vilipêndio a cadáver, com pena de um a três anos, mas que dificilmente resulta em prisão do réu. Porém, a interpretação vai depender do juiz que analisar o processo.
Ela lembra que situação semelhante enfrentada pela família do cantor sertanejo Cristiano Araújo, morto em 2015 também em um acidente. Os parentes acionaram a Justiça alegando exatamente o vilipêndio ao corpo do artista. “Na época, o juiz entendeu que não havia o dolo, ou seja, a intenção das pessoas que divulgaram as fotos de menosprezar a condição de Araújo. Embora tenham publicado as fotos, a vontade delas não era de agredir e nem de vilipendiar, então teria faltado o dolo para caracterizar o vilipêndio a cadáver”, compara a especialista.
A advogada diz que o Código Penal, por ter sido criado em 1941, é de um tempo que não se imaginava que algo assim, como a disseminação imediata e irrestrita de documentos sigilosos, pudesse acontecer. Logo, ela defende uma atualização da legislação para que haja uma tipificação específica para o vazamento de fotos de cadáveres, especialmente de pessoas famosas e mortas em acidentes. “Há necessidade de ter um tipo penal mais específico: divulgar fotos de pessoas post-mortem principalmente vítimas de acidentes, é tipo específico.”
Danos morais
Se o dolo do vilipêndio é dúvida, por outro lado é facilmente comprovado neste caso o dano moral, segundo Silvana Lobo. “O Código Civil protege o respeito aos mortos. Quem possui esse direito? Os parentes, familiares, amigos. Quando você abre o celular e vê fotos da necropsia de um ente querido, o sofrimento é enorme. São fotos do corpo cortado, com a calota craniana aberta, o peito. Além disso, o filho da Marília, quando crescer, certamente vai se deparar com a imagem da mãe de alguma forma, pois uma vez na rede, pode até ser retirada, mas acaba voltando.”
Desta forma, segundo ela, há uma obrigação de indenizar por dano moral esse sofrimento acarretado à mãe e aos familiares. “Isso não tem dúvida. Com relação à ação penal, tenho minhas dúvidas se o juiz vai considerar que as pessoas fizeram a divulgação não tiveram o dolo. Vai depender da interpretação do julgador. Neste caso pesa ainda o fato de que essas fotos faziam parte do inquérito, que é sigiloso, tem outros agravantes”, afirma.
O advogado criminalista Paulo Martins da Costa Crosara concorda com Silva Lobo tanto em relação aos crimes configurados no vazamento quanto à necessidade de uma atualização do Código Penal.
Segundo ele, como pessoas mortas não podem sofrer nada, segundo a lei, além de calúnia, o crime que se configura é de vilipêndio do cadáver, mas o juiz pode analisar cada situação e concluir que não houve dolo, como ocorreu com a ação movida pela família do cantor.
E na área cível, acrescenta, o morto não tem direito de personalidade, mas a família tem direito ao “dando moral reflexo”.
“O nosso código, apesar de ter passado por várias reformas, precisa ser atualizado. O próprio crime de vilipêndio de cadáver é dessa época, de 1941. A sociedade muda. E obviamente as interações sociais mudam. Quando tem um comportamento novo que se precisa coibir, é preciso criar um tipo específico de crime.”