‘Você vai numa casa noturna e mulher não paga. Quem é o produto? A mulher’, diz empresário da noite


À frente de bares e casas noturnas badalados de São Paulo, Facundo Guerra defende restrições à oferta de entrada ou bebida alcoólica gratuita exclusivamente ao público feminino e a áreas VIPs sem monitoramento para evitar abusos

Por Luciana Garbin e Carolina Ercolin
Atualização:
Foto: FELIPE RAU
Entrevista comFacundo GuerraEmpresário da noite

Se uma denúncia de estupro como a feita contra o jogador Daniel Alves na Espanha ocorresse em um bar no Brasil, o estabelecimento estaria preparado para dar apoio à vítima? O governo de São Paulo sancionou nos últimos dias duas leis que obrigam bares, restaurantes e casas noturnas a auxiliar a mulher em risco e a capacitar funcionários para combater assédio e violência. Mas, para o empresário Facundo Guerra, a questão de como evitar abusos na noite e em festas é muito mais desafiadora, pois envolve mudança de cultura e coragem para coibir medidas aparentemente inofensivas, como mulher pagar menos que homem.

“Um caso como esse que aconteceu em Barcelona deve acontecer todos os dias no Brasil, tá?”, diz Facundo, com a experiência de 17 anos administrando casas noturnas badaladas de São Paulo. CEO do Grupo Vegas, que reúne espaços como Cine Joia, Club Yacht, Lions Nightclub, Riviera, Bar dos Arcos e Z Carniceria, ele falou em entrevista à Rádio Eldorado sobre como a privacidade de áreas vip mundo afora favorece abusos como o relatado pela jovem de 23 anos dentro de uma boate espanhola ao denunciar Daniel Alves, preso desde 20 de janeiro, e o da influencer Mariana Ferrer, que denunciou estupro em uma balada de Florianópolis em 2018. O acusado acabou inocentado por falta de provas, mas a comoção gerada pelo caso resultou na criação da chamada Lei Mariana Ferrer, para coibir humilhação de vítimas e testemunhas em processos judiciais.

O empresário Facundo Guerra defende mudanças no tratamento às mulheres Foto: FELIPE RAU/ESTADÃO
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“Esses lugares vendem privacidade para as pessoas que são muito ricas”, afirma. “Quando você vai na área vip, não tem um segurança porque essas pessoas muito ricas querem anonimato. Nessas áreas se consomem abertamente drogas, nessas áreas você permite que uma mulher seja arrastada para um banheiro que não tem diferenciação de gênero e seja estuprada (...) Se vendeu para o Daniel e para os homens que o estavam acompanhando naquela noite que essa era uma área isolada do olhar do outro. Isso não pode mais acontecer. Pessoas que têm muito dinheiro não podem ter acesso a espaços privativos entre aspas, lugares onde se vende álcool abundantemente, em que por acaso possa permitir um contexto onde um crime como esse vai acontecer.”

Para o empresário, práticas como ingresso mais barato e drinque à vontade para mulher são normalizadas, ainda que criem um contexto social para crimes sexuais. “Eu vou te dar um exemplo muito prático: quando você vai numa casa noturna e mulher não paga até meia-noite, quem é o produto? A mulher. Open bar para a mulherada até meia-noite. Quem é o produto? É a mulher. O contexto está construído de forma que as mulheres sejam entendidas como produto, para que os homens paguem mais caro, arquem com o que seriam os ingressos das mulheres porque eles vão entrar lá e acessar essas mulheres que vão estar fragilizadas pelo álcool.”

Leia abaixo os principais trechos da entrevista e ouça a conversa na íntegra no podcast da coluna Mulheres Reais.

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Facundo, há 17 anos você administra casas noturnas. Como vê a questão da vulnerabilidade das mulheres na noite, especialmente no carnaval?

Nesses espaços que vendem álcool, diversão, entretenimento, escapismo, em boate, casa de show e tudo o mais, a mulher é vista como um produto. Essa que é a verdade. Eu vou te dar um exemplo muito prático: quando você vai numa casa noturna e mulher não paga até meia-noite, quem é o produto? A mulher. Por quê? Porque se parte do pressuposto que essas mulheres vão entrar, vai ter open bar para a mulherada até meia-noite. Quem é o produto? É a mulher. Mulher não paga até uma da manhã. Quem é o produto? É a mulher. Então o contexto está construído de forma que as mulheres sejam entendidas como produto, para que os homens paguem mais caro, arquem com o que seriam os ingressos das mulheres porque eles vão entrar lá e acessar essas mulheres que vão estar fragilizadas pelo álcool, que vão estar com seu juízo abalado porque beberam e aproveitaram aquela oportunidade de entrar até meia-noite com open bar. Então tem um contexto social onde a mulher já é vista como produto. No caso, por exemplo, da boate de Barcelona (do caso Daniel Alves), a gente fala: ‘Ah, não, uma vez o crime consumado o segurança ajudou. Mas teve um contexto que permitiu que esse crime fosse consumado dentro de uma casa de show. Que, vale lembrar, foi o mesmo contexto da Mari Ferrer, que a gente teve ali naquela boate no sul. Então o que acontece? Esses lugares vendem privacidade para pessoas que são muito ricas. Quando você vai na área vip não tem um segurança porque essas pessoas muito ricas querem anonimato sobre o que elas estão fazendo. Nessas áreas se consomem abertamente drogas, nessas áreas você permite que uma mulher seja arrastada para um banheiro que não tem diferenciação de gênero e seja estuprada. Então muito se fala sobre o que aconteceu pós-fato, mas ninguém está discutindo o que permitiu que esse fato acontecesse dentro de uma casa noturna. Eu acho que o fato de um segurança não ter visto uma mulher fragilizada, um homem tocando essa mulher - porque essa abordagem não aconteceu sem antes ter algum anúncio de algo de errado dentro daquele banheiro. Mas por que isso aconteceu? Eu conheço boates e vou te dizer que a densidade de segurança por metro quadrado de uma boate talvez seja uma das maiores que em qualquer espaço público. Naquela boate especificamente deveria ter 30 ou 40 seguranças numa dada noite, mas nenhum deles na área vip. Como também não tinha nenhum segurança na área vip do caso Mari Ferrer. Por quê? Porque se vendeu para o Daniel e para os homens que estavam acompanhando Daniel naquela noite que essa era uma área isolada do olhar do outro. Isso não pode mais acontecer. Pessoas que têm muito dinheiro não podem ter acesso a espaços privativos entre aspas, lugares onde se vende álcool abundantemente, em que por acaso possa permitir um contexto onde um crime como esse vai acontecer. Eu acho que também não pode mais acontecer, e tem de ser de alguma forma impedido, que se venda álcool, que se dê álcool para mulheres até meia-noite. Ou que mulher não pague a entrada dentro de um determinado lugar. Porque isso cria um contexto onde a mulher vai ser abusada. Existe uma questão que é cultural e é anterior ao estupro, ao abuso e a tudo mais, que é a de a gente viver numa cultura - especialmente aqui no Brasil - que vê a mulher como produto. Não vai ter lei que vai impedir. Pode ser que a gente consiga aumentar a porcentagem de homens que vão ser criminalizados e vão para cadeia por conta de um estupro, mas quantos abusos são cometidos todos os dias contra mulheres e esses homens escapam? Ou porque a mulher não quer denunciar ou porque vai ser julgada denunciando ou porque seu depoimento vai ser colocado em questão, como está acontecendo inclusive agora no caso do Daniel? Então eu acho que antes de mais nada tem que ter uma mudança de infraestrutura e uma mudança cultural. Não pode existir espaço privado longe do olhar de uma segurança que permita que aconteça um caso como aconteceu em Barcelona e - vou te dizer - deve acontecer todos os dias no Brasil, tá? Isso é uma coisa cultural. Você vai ver as letras das músicas sertanejas: mulher como produto. Você vai ver trend de Tik Tok: mulher como produto. Não tem como escapar disso quando na cultura a gente fala que o corpo da mulher pode ser acessado por qualquer homem. Com dinheiro ou com força.

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Como mudar isso? O que as casas noturnas podem fazer na prática para mostrar: ‘Não, aqui não se compactua com isso’?

Olha, eu tento no design do projeto já usar estruturas que impeçam ou que desestimulem homens a cometer esse tipo de abuso. Como isso acontece na prática? Por exemplo, no Bar dos Arcos, todas as chefias são femininas ou queer. Você pode falar: por que ter uma pessoa da comunidade LGBTQIAP+ ajuda a coibir esse tipo de de abuso? Porque elas conseguem identificar o que é abuso antes de ele acontecer. Porque essas pessoas já foram muito abusadas. Elas têm empatia com a dor de uma minoria, das mulheres. Então elas já são mais sensíveis ao que pode ser um abuso. O que pode ser um abuso? Por exemplo o que a gente tomava por cavalheirismo ou cordialidade: ‘Ah, eu quero pagar um drinque para uma mulher na outra mesa’. Hoje em dia a gente não quer fazer isso. A gente não vai permitir que um homem pague um drinque para uma mulher. ‘Ah, manda um drinque para aquela mesa.’ Não, a gente não vai fazer isso porque a mulher não pediu esse drinque. ‘Ah, você pode fazer um correio elegante para aquela outra mesa?’ Não, a gente não vai fazer isso. Por quê? Porque aquela mulher está tomando um drinque sozinha e provavelmente ela não quer ser interrompida por um estranho. Num date, a mulher toma um, dois, três, quatro, cinco drinques; o cara tomou um ou dois. A mulher está sendo alcoolizada progressivamente num primeiro encontro, isso pode abalar o juízo dela mais adiante. A gente interrompe. Tipo: ‘Olha, a partir de agora a gente não serve mais’. Eu tenho interesse em que essa mulher se sinta segura até por uma questão mercadológica. O bar, a boate, a casa de show: as mulheres ficam tensas quando vão a esses lugares. Você não sabe se você vai ter o cabelo puxado, se alguém vai sair pegando na tua cintura, se você está conversando com uma amiga e um cara vai se sentir no direito de interromper a conversa de vocês duas e vir com ‘Posso sentar aqui com vocês?’ São lugares geralmente incômodos para as mulheres, onde acontece muito abuso. Outra coisa que acontece muito em boate e está até no campo do fetiche: duas pessoas entrarem no banheiro. Não, não vai acontecer. Então tem esse segurança próximo dos banheiros para que não aconteça de duas pessoas entrarem. Por quê? Porque duas pessoas dentro do banheiro estão longe do olhar dos outros. Quer transar? Vai para casa. Não é o lugar mais confortável nem mais salubre para você transar. Por mais que você tenha esse fetiche, vai para tua casa, aqui não. Por quê? Porque pode acontecer um crime.

Que padrão vocês usam para identificar um abuso?

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O que é abuso? Vamos tipificar o que é abuso. Abuso é qualquer coisa que aconteça depois do não. Tem um não, a partir daí você está no território do abuso. Então eu acho que é muito importante ter uma brigada que está dentro da comunidade LGBTQIAP+, que tem lideranças femininas e sabe diferenciar o que é ou não abuso. Eu não acredito mais em atos de cavalheirismo. Eles criam uma zona muito sombria. Gentileza tem que acontecer. Eu sou gentil com homens e com mulheres. Eu não tenho problema de pagar conta para um homem também. Mesmo que seja um amigo. Se eu convidei ele para jantar, vamos trocar uma ideia, eu posso pagar a conta. Porque eu não tô interessado no que vai acontecer depois de pagar a conta. Eu não tô pagando a conta com o intuito de tirar algum tipo de favor de um homem ou de uma mulher. Eu sou a favor de pagar conta inclusive. Se eu posso e quero pagar conta, eu quero fazer essa gentileza. Mas essa gentileza não é direcionada a um gênero. Ela é desinteressada. Mas essas zonas sombrias, essas categorias que a minha geração chamava de cavalheirismo e tudo mais, não. Elas têm que cair.

Qual costuma ser a reação de clientes quando vocês tomam atitudes do tipo “não vou levar esse drinque para uma mulher na outra mesa”?

Algumas vezes a gente tem reações violentas, na linha: “Quem manda aqui sou eu”, “Eu que pago o seu salário”, “Você sabe com quem está falando?”, “Eu vou te dar um review negativo no Google”, “Vou falar mal desse bar aos meus amigos”...

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Você como empresário tem que pensar no lucro. Como dar esse respaldo às mulheres e ao mesmo tempo não afastar os homens?

Olha, eu quero afastar os homens. Os homens que são abusivos não quero dentro dos meus lugares. Aí eu vou construindo estruturas e sinais. Uma mulher trans na porta por exemplo é muito importante para mim. Uma porque eu milito a favor da causa trans - eu acho que é importante você tirar a mulher trans e o homem trans do lugar social que normalmente é esperado para eles, que é o entretenimento ou a beleza. Então eu gosto de trabalhar com pessoas que são da comunidade trans. E outra porque se uma pessoa se sente incomodada em ter a hostess ou o host trans eu não quero ela dentro do meu espaço. Vai me causar problema e graças aos orixás eu posso me dar a escolha de escolher meu público. Eu tenho fila na porta todos os dias, então eu não quero agradar a todos. Eu vendo uma proposta autoral, quase artística, se você quiser chamar assim. Então eu tô permitindo acesso ao meu mundo. Se a pessoa se sente incomodada com o meu mundo, não falta bar em São Paulo, vai gastar teu dinheiro em outro lugar. Porque eu não acredito que o cliente tem sempre razão. Muitas vezes, ele não tem. Na minha casa, que é o meu espaço, o cliente nem sempre tem razão. Ele tem razão desde que a gente esteja alinhado eticamente. E, se ele tiver a quantidade de dinheiro que ele tiver achando que ele vai comprar a minha ética com o seu dinheiro, ele tá enganado, não vai.

E no carnaval? A gente tem visto nos últimos anos campanhas que alertam para a questão dos limites e do consentimento, mas elas acabam chegando mais às classes média e alta. Como fazer para que atinjam um público maior?

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A resposta para tudo nessa vida é educação e redução de desigualdade social. Esse tipo de insensibilidade com relação ao gênero vem de toda a condição social das mulheres no Brasil. A raiz do problema sempre vai ser a falta de educação e a desigualdade social. Você vai falar: ‘Ah, mas como assim? Você está indo lá atrás?’ Sim, é o contexto da nossa sociedade mesmo. A mulher receber menos pelo mesmo tipo de trabalho que performa com relação ao homem, o abandono parental, o abandono da mulher pelo homem, a sobrecarga que a mulher tem na nossa sociedade: tudo isso faz com que a mulher seja vista como uma mercadoria. O excesso de sexualização. Não estou sendo moralista e falando que a sexualização é errada. Não estou sendo moralista e falando: ‘Ah, não, a gente tem que evangelizar as letras do funk’. Não é isso, mas é a cultura da pornografia, é a cultura de olhar a mulher dentro de uma sociedade, dentro do patriarcado, como uma mercadoria. E para isso você precisa de leitura, você precisa de iluminação, você precisa desmontar a maneira como você foi construído.

Como você foi construído?

Eu fui construído como um machista. Eu já fui muito a balada onde mulher não pagava. Eu já provavelmente ao longo da minha vida cometi abusos ou ultrapassei limites. Eu não estou dizendo que eu sou o macho desconstruído, eu sou machista também. Eu tenho que admitir meu machismo porque se não como eu vou identificar o machismo alheio? Agora o que eu tenho que fazer, mais além de tudo sendo pai de uma menina - e não é o fato de ser pai de uma menina que me iluminou, mas o fato de ter mulheres e aliadas o tempo inteiro à minha volta -, é falar: ‘Pô eu causei já muita dor, eu tenho que de alguma forma parar de causar dor nos outros, homens e mulheres. Então não tem jeito: é estudando, é lendo, é ouvindo, é sendo empático, é perguntando se você gostaria que fizesse com você o que você está fazendo com os outros. São as regras básicas de viver em sociedade, mas para isso você precisa abrir um pouco a tua cabeça para leitura. E o mais importante: para ouvir as mulheres e entender que elas estão sofrendo todos os dias. Uma mulher que viva numa cidade grande, ou em qualquer lugar na verdade, ela vive com medo, gente. Ela pega um Uber com medo. Ela anda na rua com medo. Passou das 6 da tarde ela está apavorada voltando para casa. Ela não quer andar a pé. Coisas que nós homens não conseguimos nem dimensionar, entendeu? E você viver com medo é uma das piores coisas que podem existir. Poda a vida... Então não é possível. Acho que tem um grande potencial que a gente tem desperdiçado no Brasil - e talvez no mundo - que é conviver com mais da metade da população com medo o tempo inteiro da outra metade. Não pode. A gente nunca vai ser uma nação potente se a gente tiver uma geração de mulheres que vive com medo o tempo inteiro. Com medo você não realiza a tua potência. Com medo você se autocastra, você se autopoda.

Se uma denúncia de estupro como a feita contra o jogador Daniel Alves na Espanha ocorresse em um bar no Brasil, o estabelecimento estaria preparado para dar apoio à vítima? O governo de São Paulo sancionou nos últimos dias duas leis que obrigam bares, restaurantes e casas noturnas a auxiliar a mulher em risco e a capacitar funcionários para combater assédio e violência. Mas, para o empresário Facundo Guerra, a questão de como evitar abusos na noite e em festas é muito mais desafiadora, pois envolve mudança de cultura e coragem para coibir medidas aparentemente inofensivas, como mulher pagar menos que homem.

“Um caso como esse que aconteceu em Barcelona deve acontecer todos os dias no Brasil, tá?”, diz Facundo, com a experiência de 17 anos administrando casas noturnas badaladas de São Paulo. CEO do Grupo Vegas, que reúne espaços como Cine Joia, Club Yacht, Lions Nightclub, Riviera, Bar dos Arcos e Z Carniceria, ele falou em entrevista à Rádio Eldorado sobre como a privacidade de áreas vip mundo afora favorece abusos como o relatado pela jovem de 23 anos dentro de uma boate espanhola ao denunciar Daniel Alves, preso desde 20 de janeiro, e o da influencer Mariana Ferrer, que denunciou estupro em uma balada de Florianópolis em 2018. O acusado acabou inocentado por falta de provas, mas a comoção gerada pelo caso resultou na criação da chamada Lei Mariana Ferrer, para coibir humilhação de vítimas e testemunhas em processos judiciais.

O empresário Facundo Guerra defende mudanças no tratamento às mulheres Foto: FELIPE RAU/ESTADÃO

“Esses lugares vendem privacidade para as pessoas que são muito ricas”, afirma. “Quando você vai na área vip, não tem um segurança porque essas pessoas muito ricas querem anonimato. Nessas áreas se consomem abertamente drogas, nessas áreas você permite que uma mulher seja arrastada para um banheiro que não tem diferenciação de gênero e seja estuprada (...) Se vendeu para o Daniel e para os homens que o estavam acompanhando naquela noite que essa era uma área isolada do olhar do outro. Isso não pode mais acontecer. Pessoas que têm muito dinheiro não podem ter acesso a espaços privativos entre aspas, lugares onde se vende álcool abundantemente, em que por acaso possa permitir um contexto onde um crime como esse vai acontecer.”

Para o empresário, práticas como ingresso mais barato e drinque à vontade para mulher são normalizadas, ainda que criem um contexto social para crimes sexuais. “Eu vou te dar um exemplo muito prático: quando você vai numa casa noturna e mulher não paga até meia-noite, quem é o produto? A mulher. Open bar para a mulherada até meia-noite. Quem é o produto? É a mulher. O contexto está construído de forma que as mulheres sejam entendidas como produto, para que os homens paguem mais caro, arquem com o que seriam os ingressos das mulheres porque eles vão entrar lá e acessar essas mulheres que vão estar fragilizadas pelo álcool.”

Leia abaixo os principais trechos da entrevista e ouça a conversa na íntegra no podcast da coluna Mulheres Reais.

Facundo, há 17 anos você administra casas noturnas. Como vê a questão da vulnerabilidade das mulheres na noite, especialmente no carnaval?

Nesses espaços que vendem álcool, diversão, entretenimento, escapismo, em boate, casa de show e tudo o mais, a mulher é vista como um produto. Essa que é a verdade. Eu vou te dar um exemplo muito prático: quando você vai numa casa noturna e mulher não paga até meia-noite, quem é o produto? A mulher. Por quê? Porque se parte do pressuposto que essas mulheres vão entrar, vai ter open bar para a mulherada até meia-noite. Quem é o produto? É a mulher. Mulher não paga até uma da manhã. Quem é o produto? É a mulher. Então o contexto está construído de forma que as mulheres sejam entendidas como produto, para que os homens paguem mais caro, arquem com o que seriam os ingressos das mulheres porque eles vão entrar lá e acessar essas mulheres que vão estar fragilizadas pelo álcool, que vão estar com seu juízo abalado porque beberam e aproveitaram aquela oportunidade de entrar até meia-noite com open bar. Então tem um contexto social onde a mulher já é vista como produto. No caso, por exemplo, da boate de Barcelona (do caso Daniel Alves), a gente fala: ‘Ah, não, uma vez o crime consumado o segurança ajudou. Mas teve um contexto que permitiu que esse crime fosse consumado dentro de uma casa de show. Que, vale lembrar, foi o mesmo contexto da Mari Ferrer, que a gente teve ali naquela boate no sul. Então o que acontece? Esses lugares vendem privacidade para pessoas que são muito ricas. Quando você vai na área vip não tem um segurança porque essas pessoas muito ricas querem anonimato sobre o que elas estão fazendo. Nessas áreas se consomem abertamente drogas, nessas áreas você permite que uma mulher seja arrastada para um banheiro que não tem diferenciação de gênero e seja estuprada. Então muito se fala sobre o que aconteceu pós-fato, mas ninguém está discutindo o que permitiu que esse fato acontecesse dentro de uma casa noturna. Eu acho que o fato de um segurança não ter visto uma mulher fragilizada, um homem tocando essa mulher - porque essa abordagem não aconteceu sem antes ter algum anúncio de algo de errado dentro daquele banheiro. Mas por que isso aconteceu? Eu conheço boates e vou te dizer que a densidade de segurança por metro quadrado de uma boate talvez seja uma das maiores que em qualquer espaço público. Naquela boate especificamente deveria ter 30 ou 40 seguranças numa dada noite, mas nenhum deles na área vip. Como também não tinha nenhum segurança na área vip do caso Mari Ferrer. Por quê? Porque se vendeu para o Daniel e para os homens que estavam acompanhando Daniel naquela noite que essa era uma área isolada do olhar do outro. Isso não pode mais acontecer. Pessoas que têm muito dinheiro não podem ter acesso a espaços privativos entre aspas, lugares onde se vende álcool abundantemente, em que por acaso possa permitir um contexto onde um crime como esse vai acontecer. Eu acho que também não pode mais acontecer, e tem de ser de alguma forma impedido, que se venda álcool, que se dê álcool para mulheres até meia-noite. Ou que mulher não pague a entrada dentro de um determinado lugar. Porque isso cria um contexto onde a mulher vai ser abusada. Existe uma questão que é cultural e é anterior ao estupro, ao abuso e a tudo mais, que é a de a gente viver numa cultura - especialmente aqui no Brasil - que vê a mulher como produto. Não vai ter lei que vai impedir. Pode ser que a gente consiga aumentar a porcentagem de homens que vão ser criminalizados e vão para cadeia por conta de um estupro, mas quantos abusos são cometidos todos os dias contra mulheres e esses homens escapam? Ou porque a mulher não quer denunciar ou porque vai ser julgada denunciando ou porque seu depoimento vai ser colocado em questão, como está acontecendo inclusive agora no caso do Daniel? Então eu acho que antes de mais nada tem que ter uma mudança de infraestrutura e uma mudança cultural. Não pode existir espaço privado longe do olhar de uma segurança que permita que aconteça um caso como aconteceu em Barcelona e - vou te dizer - deve acontecer todos os dias no Brasil, tá? Isso é uma coisa cultural. Você vai ver as letras das músicas sertanejas: mulher como produto. Você vai ver trend de Tik Tok: mulher como produto. Não tem como escapar disso quando na cultura a gente fala que o corpo da mulher pode ser acessado por qualquer homem. Com dinheiro ou com força.

Como mudar isso? O que as casas noturnas podem fazer na prática para mostrar: ‘Não, aqui não se compactua com isso’?

Olha, eu tento no design do projeto já usar estruturas que impeçam ou que desestimulem homens a cometer esse tipo de abuso. Como isso acontece na prática? Por exemplo, no Bar dos Arcos, todas as chefias são femininas ou queer. Você pode falar: por que ter uma pessoa da comunidade LGBTQIAP+ ajuda a coibir esse tipo de de abuso? Porque elas conseguem identificar o que é abuso antes de ele acontecer. Porque essas pessoas já foram muito abusadas. Elas têm empatia com a dor de uma minoria, das mulheres. Então elas já são mais sensíveis ao que pode ser um abuso. O que pode ser um abuso? Por exemplo o que a gente tomava por cavalheirismo ou cordialidade: ‘Ah, eu quero pagar um drinque para uma mulher na outra mesa’. Hoje em dia a gente não quer fazer isso. A gente não vai permitir que um homem pague um drinque para uma mulher. ‘Ah, manda um drinque para aquela mesa.’ Não, a gente não vai fazer isso porque a mulher não pediu esse drinque. ‘Ah, você pode fazer um correio elegante para aquela outra mesa?’ Não, a gente não vai fazer isso. Por quê? Porque aquela mulher está tomando um drinque sozinha e provavelmente ela não quer ser interrompida por um estranho. Num date, a mulher toma um, dois, três, quatro, cinco drinques; o cara tomou um ou dois. A mulher está sendo alcoolizada progressivamente num primeiro encontro, isso pode abalar o juízo dela mais adiante. A gente interrompe. Tipo: ‘Olha, a partir de agora a gente não serve mais’. Eu tenho interesse em que essa mulher se sinta segura até por uma questão mercadológica. O bar, a boate, a casa de show: as mulheres ficam tensas quando vão a esses lugares. Você não sabe se você vai ter o cabelo puxado, se alguém vai sair pegando na tua cintura, se você está conversando com uma amiga e um cara vai se sentir no direito de interromper a conversa de vocês duas e vir com ‘Posso sentar aqui com vocês?’ São lugares geralmente incômodos para as mulheres, onde acontece muito abuso. Outra coisa que acontece muito em boate e está até no campo do fetiche: duas pessoas entrarem no banheiro. Não, não vai acontecer. Então tem esse segurança próximo dos banheiros para que não aconteça de duas pessoas entrarem. Por quê? Porque duas pessoas dentro do banheiro estão longe do olhar dos outros. Quer transar? Vai para casa. Não é o lugar mais confortável nem mais salubre para você transar. Por mais que você tenha esse fetiche, vai para tua casa, aqui não. Por quê? Porque pode acontecer um crime.

Que padrão vocês usam para identificar um abuso?

O que é abuso? Vamos tipificar o que é abuso. Abuso é qualquer coisa que aconteça depois do não. Tem um não, a partir daí você está no território do abuso. Então eu acho que é muito importante ter uma brigada que está dentro da comunidade LGBTQIAP+, que tem lideranças femininas e sabe diferenciar o que é ou não abuso. Eu não acredito mais em atos de cavalheirismo. Eles criam uma zona muito sombria. Gentileza tem que acontecer. Eu sou gentil com homens e com mulheres. Eu não tenho problema de pagar conta para um homem também. Mesmo que seja um amigo. Se eu convidei ele para jantar, vamos trocar uma ideia, eu posso pagar a conta. Porque eu não tô interessado no que vai acontecer depois de pagar a conta. Eu não tô pagando a conta com o intuito de tirar algum tipo de favor de um homem ou de uma mulher. Eu sou a favor de pagar conta inclusive. Se eu posso e quero pagar conta, eu quero fazer essa gentileza. Mas essa gentileza não é direcionada a um gênero. Ela é desinteressada. Mas essas zonas sombrias, essas categorias que a minha geração chamava de cavalheirismo e tudo mais, não. Elas têm que cair.

Qual costuma ser a reação de clientes quando vocês tomam atitudes do tipo “não vou levar esse drinque para uma mulher na outra mesa”?

Algumas vezes a gente tem reações violentas, na linha: “Quem manda aqui sou eu”, “Eu que pago o seu salário”, “Você sabe com quem está falando?”, “Eu vou te dar um review negativo no Google”, “Vou falar mal desse bar aos meus amigos”...

Você como empresário tem que pensar no lucro. Como dar esse respaldo às mulheres e ao mesmo tempo não afastar os homens?

Olha, eu quero afastar os homens. Os homens que são abusivos não quero dentro dos meus lugares. Aí eu vou construindo estruturas e sinais. Uma mulher trans na porta por exemplo é muito importante para mim. Uma porque eu milito a favor da causa trans - eu acho que é importante você tirar a mulher trans e o homem trans do lugar social que normalmente é esperado para eles, que é o entretenimento ou a beleza. Então eu gosto de trabalhar com pessoas que são da comunidade trans. E outra porque se uma pessoa se sente incomodada em ter a hostess ou o host trans eu não quero ela dentro do meu espaço. Vai me causar problema e graças aos orixás eu posso me dar a escolha de escolher meu público. Eu tenho fila na porta todos os dias, então eu não quero agradar a todos. Eu vendo uma proposta autoral, quase artística, se você quiser chamar assim. Então eu tô permitindo acesso ao meu mundo. Se a pessoa se sente incomodada com o meu mundo, não falta bar em São Paulo, vai gastar teu dinheiro em outro lugar. Porque eu não acredito que o cliente tem sempre razão. Muitas vezes, ele não tem. Na minha casa, que é o meu espaço, o cliente nem sempre tem razão. Ele tem razão desde que a gente esteja alinhado eticamente. E, se ele tiver a quantidade de dinheiro que ele tiver achando que ele vai comprar a minha ética com o seu dinheiro, ele tá enganado, não vai.

E no carnaval? A gente tem visto nos últimos anos campanhas que alertam para a questão dos limites e do consentimento, mas elas acabam chegando mais às classes média e alta. Como fazer para que atinjam um público maior?

A resposta para tudo nessa vida é educação e redução de desigualdade social. Esse tipo de insensibilidade com relação ao gênero vem de toda a condição social das mulheres no Brasil. A raiz do problema sempre vai ser a falta de educação e a desigualdade social. Você vai falar: ‘Ah, mas como assim? Você está indo lá atrás?’ Sim, é o contexto da nossa sociedade mesmo. A mulher receber menos pelo mesmo tipo de trabalho que performa com relação ao homem, o abandono parental, o abandono da mulher pelo homem, a sobrecarga que a mulher tem na nossa sociedade: tudo isso faz com que a mulher seja vista como uma mercadoria. O excesso de sexualização. Não estou sendo moralista e falando que a sexualização é errada. Não estou sendo moralista e falando: ‘Ah, não, a gente tem que evangelizar as letras do funk’. Não é isso, mas é a cultura da pornografia, é a cultura de olhar a mulher dentro de uma sociedade, dentro do patriarcado, como uma mercadoria. E para isso você precisa de leitura, você precisa de iluminação, você precisa desmontar a maneira como você foi construído.

Como você foi construído?

Eu fui construído como um machista. Eu já fui muito a balada onde mulher não pagava. Eu já provavelmente ao longo da minha vida cometi abusos ou ultrapassei limites. Eu não estou dizendo que eu sou o macho desconstruído, eu sou machista também. Eu tenho que admitir meu machismo porque se não como eu vou identificar o machismo alheio? Agora o que eu tenho que fazer, mais além de tudo sendo pai de uma menina - e não é o fato de ser pai de uma menina que me iluminou, mas o fato de ter mulheres e aliadas o tempo inteiro à minha volta -, é falar: ‘Pô eu causei já muita dor, eu tenho que de alguma forma parar de causar dor nos outros, homens e mulheres. Então não tem jeito: é estudando, é lendo, é ouvindo, é sendo empático, é perguntando se você gostaria que fizesse com você o que você está fazendo com os outros. São as regras básicas de viver em sociedade, mas para isso você precisa abrir um pouco a tua cabeça para leitura. E o mais importante: para ouvir as mulheres e entender que elas estão sofrendo todos os dias. Uma mulher que viva numa cidade grande, ou em qualquer lugar na verdade, ela vive com medo, gente. Ela pega um Uber com medo. Ela anda na rua com medo. Passou das 6 da tarde ela está apavorada voltando para casa. Ela não quer andar a pé. Coisas que nós homens não conseguimos nem dimensionar, entendeu? E você viver com medo é uma das piores coisas que podem existir. Poda a vida... Então não é possível. Acho que tem um grande potencial que a gente tem desperdiçado no Brasil - e talvez no mundo - que é conviver com mais da metade da população com medo o tempo inteiro da outra metade. Não pode. A gente nunca vai ser uma nação potente se a gente tiver uma geração de mulheres que vive com medo o tempo inteiro. Com medo você não realiza a tua potência. Com medo você se autocastra, você se autopoda.

Se uma denúncia de estupro como a feita contra o jogador Daniel Alves na Espanha ocorresse em um bar no Brasil, o estabelecimento estaria preparado para dar apoio à vítima? O governo de São Paulo sancionou nos últimos dias duas leis que obrigam bares, restaurantes e casas noturnas a auxiliar a mulher em risco e a capacitar funcionários para combater assédio e violência. Mas, para o empresário Facundo Guerra, a questão de como evitar abusos na noite e em festas é muito mais desafiadora, pois envolve mudança de cultura e coragem para coibir medidas aparentemente inofensivas, como mulher pagar menos que homem.

“Um caso como esse que aconteceu em Barcelona deve acontecer todos os dias no Brasil, tá?”, diz Facundo, com a experiência de 17 anos administrando casas noturnas badaladas de São Paulo. CEO do Grupo Vegas, que reúne espaços como Cine Joia, Club Yacht, Lions Nightclub, Riviera, Bar dos Arcos e Z Carniceria, ele falou em entrevista à Rádio Eldorado sobre como a privacidade de áreas vip mundo afora favorece abusos como o relatado pela jovem de 23 anos dentro de uma boate espanhola ao denunciar Daniel Alves, preso desde 20 de janeiro, e o da influencer Mariana Ferrer, que denunciou estupro em uma balada de Florianópolis em 2018. O acusado acabou inocentado por falta de provas, mas a comoção gerada pelo caso resultou na criação da chamada Lei Mariana Ferrer, para coibir humilhação de vítimas e testemunhas em processos judiciais.

O empresário Facundo Guerra defende mudanças no tratamento às mulheres Foto: FELIPE RAU/ESTADÃO

“Esses lugares vendem privacidade para as pessoas que são muito ricas”, afirma. “Quando você vai na área vip, não tem um segurança porque essas pessoas muito ricas querem anonimato. Nessas áreas se consomem abertamente drogas, nessas áreas você permite que uma mulher seja arrastada para um banheiro que não tem diferenciação de gênero e seja estuprada (...) Se vendeu para o Daniel e para os homens que o estavam acompanhando naquela noite que essa era uma área isolada do olhar do outro. Isso não pode mais acontecer. Pessoas que têm muito dinheiro não podem ter acesso a espaços privativos entre aspas, lugares onde se vende álcool abundantemente, em que por acaso possa permitir um contexto onde um crime como esse vai acontecer.”

Para o empresário, práticas como ingresso mais barato e drinque à vontade para mulher são normalizadas, ainda que criem um contexto social para crimes sexuais. “Eu vou te dar um exemplo muito prático: quando você vai numa casa noturna e mulher não paga até meia-noite, quem é o produto? A mulher. Open bar para a mulherada até meia-noite. Quem é o produto? É a mulher. O contexto está construído de forma que as mulheres sejam entendidas como produto, para que os homens paguem mais caro, arquem com o que seriam os ingressos das mulheres porque eles vão entrar lá e acessar essas mulheres que vão estar fragilizadas pelo álcool.”

Leia abaixo os principais trechos da entrevista e ouça a conversa na íntegra no podcast da coluna Mulheres Reais.

Facundo, há 17 anos você administra casas noturnas. Como vê a questão da vulnerabilidade das mulheres na noite, especialmente no carnaval?

Nesses espaços que vendem álcool, diversão, entretenimento, escapismo, em boate, casa de show e tudo o mais, a mulher é vista como um produto. Essa que é a verdade. Eu vou te dar um exemplo muito prático: quando você vai numa casa noturna e mulher não paga até meia-noite, quem é o produto? A mulher. Por quê? Porque se parte do pressuposto que essas mulheres vão entrar, vai ter open bar para a mulherada até meia-noite. Quem é o produto? É a mulher. Mulher não paga até uma da manhã. Quem é o produto? É a mulher. Então o contexto está construído de forma que as mulheres sejam entendidas como produto, para que os homens paguem mais caro, arquem com o que seriam os ingressos das mulheres porque eles vão entrar lá e acessar essas mulheres que vão estar fragilizadas pelo álcool, que vão estar com seu juízo abalado porque beberam e aproveitaram aquela oportunidade de entrar até meia-noite com open bar. Então tem um contexto social onde a mulher já é vista como produto. No caso, por exemplo, da boate de Barcelona (do caso Daniel Alves), a gente fala: ‘Ah, não, uma vez o crime consumado o segurança ajudou. Mas teve um contexto que permitiu que esse crime fosse consumado dentro de uma casa de show. Que, vale lembrar, foi o mesmo contexto da Mari Ferrer, que a gente teve ali naquela boate no sul. Então o que acontece? Esses lugares vendem privacidade para pessoas que são muito ricas. Quando você vai na área vip não tem um segurança porque essas pessoas muito ricas querem anonimato sobre o que elas estão fazendo. Nessas áreas se consomem abertamente drogas, nessas áreas você permite que uma mulher seja arrastada para um banheiro que não tem diferenciação de gênero e seja estuprada. Então muito se fala sobre o que aconteceu pós-fato, mas ninguém está discutindo o que permitiu que esse fato acontecesse dentro de uma casa noturna. Eu acho que o fato de um segurança não ter visto uma mulher fragilizada, um homem tocando essa mulher - porque essa abordagem não aconteceu sem antes ter algum anúncio de algo de errado dentro daquele banheiro. Mas por que isso aconteceu? Eu conheço boates e vou te dizer que a densidade de segurança por metro quadrado de uma boate talvez seja uma das maiores que em qualquer espaço público. Naquela boate especificamente deveria ter 30 ou 40 seguranças numa dada noite, mas nenhum deles na área vip. Como também não tinha nenhum segurança na área vip do caso Mari Ferrer. Por quê? Porque se vendeu para o Daniel e para os homens que estavam acompanhando Daniel naquela noite que essa era uma área isolada do olhar do outro. Isso não pode mais acontecer. Pessoas que têm muito dinheiro não podem ter acesso a espaços privativos entre aspas, lugares onde se vende álcool abundantemente, em que por acaso possa permitir um contexto onde um crime como esse vai acontecer. Eu acho que também não pode mais acontecer, e tem de ser de alguma forma impedido, que se venda álcool, que se dê álcool para mulheres até meia-noite. Ou que mulher não pague a entrada dentro de um determinado lugar. Porque isso cria um contexto onde a mulher vai ser abusada. Existe uma questão que é cultural e é anterior ao estupro, ao abuso e a tudo mais, que é a de a gente viver numa cultura - especialmente aqui no Brasil - que vê a mulher como produto. Não vai ter lei que vai impedir. Pode ser que a gente consiga aumentar a porcentagem de homens que vão ser criminalizados e vão para cadeia por conta de um estupro, mas quantos abusos são cometidos todos os dias contra mulheres e esses homens escapam? Ou porque a mulher não quer denunciar ou porque vai ser julgada denunciando ou porque seu depoimento vai ser colocado em questão, como está acontecendo inclusive agora no caso do Daniel? Então eu acho que antes de mais nada tem que ter uma mudança de infraestrutura e uma mudança cultural. Não pode existir espaço privado longe do olhar de uma segurança que permita que aconteça um caso como aconteceu em Barcelona e - vou te dizer - deve acontecer todos os dias no Brasil, tá? Isso é uma coisa cultural. Você vai ver as letras das músicas sertanejas: mulher como produto. Você vai ver trend de Tik Tok: mulher como produto. Não tem como escapar disso quando na cultura a gente fala que o corpo da mulher pode ser acessado por qualquer homem. Com dinheiro ou com força.

Como mudar isso? O que as casas noturnas podem fazer na prática para mostrar: ‘Não, aqui não se compactua com isso’?

Olha, eu tento no design do projeto já usar estruturas que impeçam ou que desestimulem homens a cometer esse tipo de abuso. Como isso acontece na prática? Por exemplo, no Bar dos Arcos, todas as chefias são femininas ou queer. Você pode falar: por que ter uma pessoa da comunidade LGBTQIAP+ ajuda a coibir esse tipo de de abuso? Porque elas conseguem identificar o que é abuso antes de ele acontecer. Porque essas pessoas já foram muito abusadas. Elas têm empatia com a dor de uma minoria, das mulheres. Então elas já são mais sensíveis ao que pode ser um abuso. O que pode ser um abuso? Por exemplo o que a gente tomava por cavalheirismo ou cordialidade: ‘Ah, eu quero pagar um drinque para uma mulher na outra mesa’. Hoje em dia a gente não quer fazer isso. A gente não vai permitir que um homem pague um drinque para uma mulher. ‘Ah, manda um drinque para aquela mesa.’ Não, a gente não vai fazer isso porque a mulher não pediu esse drinque. ‘Ah, você pode fazer um correio elegante para aquela outra mesa?’ Não, a gente não vai fazer isso. Por quê? Porque aquela mulher está tomando um drinque sozinha e provavelmente ela não quer ser interrompida por um estranho. Num date, a mulher toma um, dois, três, quatro, cinco drinques; o cara tomou um ou dois. A mulher está sendo alcoolizada progressivamente num primeiro encontro, isso pode abalar o juízo dela mais adiante. A gente interrompe. Tipo: ‘Olha, a partir de agora a gente não serve mais’. Eu tenho interesse em que essa mulher se sinta segura até por uma questão mercadológica. O bar, a boate, a casa de show: as mulheres ficam tensas quando vão a esses lugares. Você não sabe se você vai ter o cabelo puxado, se alguém vai sair pegando na tua cintura, se você está conversando com uma amiga e um cara vai se sentir no direito de interromper a conversa de vocês duas e vir com ‘Posso sentar aqui com vocês?’ São lugares geralmente incômodos para as mulheres, onde acontece muito abuso. Outra coisa que acontece muito em boate e está até no campo do fetiche: duas pessoas entrarem no banheiro. Não, não vai acontecer. Então tem esse segurança próximo dos banheiros para que não aconteça de duas pessoas entrarem. Por quê? Porque duas pessoas dentro do banheiro estão longe do olhar dos outros. Quer transar? Vai para casa. Não é o lugar mais confortável nem mais salubre para você transar. Por mais que você tenha esse fetiche, vai para tua casa, aqui não. Por quê? Porque pode acontecer um crime.

Que padrão vocês usam para identificar um abuso?

O que é abuso? Vamos tipificar o que é abuso. Abuso é qualquer coisa que aconteça depois do não. Tem um não, a partir daí você está no território do abuso. Então eu acho que é muito importante ter uma brigada que está dentro da comunidade LGBTQIAP+, que tem lideranças femininas e sabe diferenciar o que é ou não abuso. Eu não acredito mais em atos de cavalheirismo. Eles criam uma zona muito sombria. Gentileza tem que acontecer. Eu sou gentil com homens e com mulheres. Eu não tenho problema de pagar conta para um homem também. Mesmo que seja um amigo. Se eu convidei ele para jantar, vamos trocar uma ideia, eu posso pagar a conta. Porque eu não tô interessado no que vai acontecer depois de pagar a conta. Eu não tô pagando a conta com o intuito de tirar algum tipo de favor de um homem ou de uma mulher. Eu sou a favor de pagar conta inclusive. Se eu posso e quero pagar conta, eu quero fazer essa gentileza. Mas essa gentileza não é direcionada a um gênero. Ela é desinteressada. Mas essas zonas sombrias, essas categorias que a minha geração chamava de cavalheirismo e tudo mais, não. Elas têm que cair.

Qual costuma ser a reação de clientes quando vocês tomam atitudes do tipo “não vou levar esse drinque para uma mulher na outra mesa”?

Algumas vezes a gente tem reações violentas, na linha: “Quem manda aqui sou eu”, “Eu que pago o seu salário”, “Você sabe com quem está falando?”, “Eu vou te dar um review negativo no Google”, “Vou falar mal desse bar aos meus amigos”...

Você como empresário tem que pensar no lucro. Como dar esse respaldo às mulheres e ao mesmo tempo não afastar os homens?

Olha, eu quero afastar os homens. Os homens que são abusivos não quero dentro dos meus lugares. Aí eu vou construindo estruturas e sinais. Uma mulher trans na porta por exemplo é muito importante para mim. Uma porque eu milito a favor da causa trans - eu acho que é importante você tirar a mulher trans e o homem trans do lugar social que normalmente é esperado para eles, que é o entretenimento ou a beleza. Então eu gosto de trabalhar com pessoas que são da comunidade trans. E outra porque se uma pessoa se sente incomodada em ter a hostess ou o host trans eu não quero ela dentro do meu espaço. Vai me causar problema e graças aos orixás eu posso me dar a escolha de escolher meu público. Eu tenho fila na porta todos os dias, então eu não quero agradar a todos. Eu vendo uma proposta autoral, quase artística, se você quiser chamar assim. Então eu tô permitindo acesso ao meu mundo. Se a pessoa se sente incomodada com o meu mundo, não falta bar em São Paulo, vai gastar teu dinheiro em outro lugar. Porque eu não acredito que o cliente tem sempre razão. Muitas vezes, ele não tem. Na minha casa, que é o meu espaço, o cliente nem sempre tem razão. Ele tem razão desde que a gente esteja alinhado eticamente. E, se ele tiver a quantidade de dinheiro que ele tiver achando que ele vai comprar a minha ética com o seu dinheiro, ele tá enganado, não vai.

E no carnaval? A gente tem visto nos últimos anos campanhas que alertam para a questão dos limites e do consentimento, mas elas acabam chegando mais às classes média e alta. Como fazer para que atinjam um público maior?

A resposta para tudo nessa vida é educação e redução de desigualdade social. Esse tipo de insensibilidade com relação ao gênero vem de toda a condição social das mulheres no Brasil. A raiz do problema sempre vai ser a falta de educação e a desigualdade social. Você vai falar: ‘Ah, mas como assim? Você está indo lá atrás?’ Sim, é o contexto da nossa sociedade mesmo. A mulher receber menos pelo mesmo tipo de trabalho que performa com relação ao homem, o abandono parental, o abandono da mulher pelo homem, a sobrecarga que a mulher tem na nossa sociedade: tudo isso faz com que a mulher seja vista como uma mercadoria. O excesso de sexualização. Não estou sendo moralista e falando que a sexualização é errada. Não estou sendo moralista e falando: ‘Ah, não, a gente tem que evangelizar as letras do funk’. Não é isso, mas é a cultura da pornografia, é a cultura de olhar a mulher dentro de uma sociedade, dentro do patriarcado, como uma mercadoria. E para isso você precisa de leitura, você precisa de iluminação, você precisa desmontar a maneira como você foi construído.

Como você foi construído?

Eu fui construído como um machista. Eu já fui muito a balada onde mulher não pagava. Eu já provavelmente ao longo da minha vida cometi abusos ou ultrapassei limites. Eu não estou dizendo que eu sou o macho desconstruído, eu sou machista também. Eu tenho que admitir meu machismo porque se não como eu vou identificar o machismo alheio? Agora o que eu tenho que fazer, mais além de tudo sendo pai de uma menina - e não é o fato de ser pai de uma menina que me iluminou, mas o fato de ter mulheres e aliadas o tempo inteiro à minha volta -, é falar: ‘Pô eu causei já muita dor, eu tenho que de alguma forma parar de causar dor nos outros, homens e mulheres. Então não tem jeito: é estudando, é lendo, é ouvindo, é sendo empático, é perguntando se você gostaria que fizesse com você o que você está fazendo com os outros. São as regras básicas de viver em sociedade, mas para isso você precisa abrir um pouco a tua cabeça para leitura. E o mais importante: para ouvir as mulheres e entender que elas estão sofrendo todos os dias. Uma mulher que viva numa cidade grande, ou em qualquer lugar na verdade, ela vive com medo, gente. Ela pega um Uber com medo. Ela anda na rua com medo. Passou das 6 da tarde ela está apavorada voltando para casa. Ela não quer andar a pé. Coisas que nós homens não conseguimos nem dimensionar, entendeu? E você viver com medo é uma das piores coisas que podem existir. Poda a vida... Então não é possível. Acho que tem um grande potencial que a gente tem desperdiçado no Brasil - e talvez no mundo - que é conviver com mais da metade da população com medo o tempo inteiro da outra metade. Não pode. A gente nunca vai ser uma nação potente se a gente tiver uma geração de mulheres que vive com medo o tempo inteiro. Com medo você não realiza a tua potência. Com medo você se autocastra, você se autopoda.

Se uma denúncia de estupro como a feita contra o jogador Daniel Alves na Espanha ocorresse em um bar no Brasil, o estabelecimento estaria preparado para dar apoio à vítima? O governo de São Paulo sancionou nos últimos dias duas leis que obrigam bares, restaurantes e casas noturnas a auxiliar a mulher em risco e a capacitar funcionários para combater assédio e violência. Mas, para o empresário Facundo Guerra, a questão de como evitar abusos na noite e em festas é muito mais desafiadora, pois envolve mudança de cultura e coragem para coibir medidas aparentemente inofensivas, como mulher pagar menos que homem.

“Um caso como esse que aconteceu em Barcelona deve acontecer todos os dias no Brasil, tá?”, diz Facundo, com a experiência de 17 anos administrando casas noturnas badaladas de São Paulo. CEO do Grupo Vegas, que reúne espaços como Cine Joia, Club Yacht, Lions Nightclub, Riviera, Bar dos Arcos e Z Carniceria, ele falou em entrevista à Rádio Eldorado sobre como a privacidade de áreas vip mundo afora favorece abusos como o relatado pela jovem de 23 anos dentro de uma boate espanhola ao denunciar Daniel Alves, preso desde 20 de janeiro, e o da influencer Mariana Ferrer, que denunciou estupro em uma balada de Florianópolis em 2018. O acusado acabou inocentado por falta de provas, mas a comoção gerada pelo caso resultou na criação da chamada Lei Mariana Ferrer, para coibir humilhação de vítimas e testemunhas em processos judiciais.

O empresário Facundo Guerra defende mudanças no tratamento às mulheres Foto: FELIPE RAU/ESTADÃO

“Esses lugares vendem privacidade para as pessoas que são muito ricas”, afirma. “Quando você vai na área vip, não tem um segurança porque essas pessoas muito ricas querem anonimato. Nessas áreas se consomem abertamente drogas, nessas áreas você permite que uma mulher seja arrastada para um banheiro que não tem diferenciação de gênero e seja estuprada (...) Se vendeu para o Daniel e para os homens que o estavam acompanhando naquela noite que essa era uma área isolada do olhar do outro. Isso não pode mais acontecer. Pessoas que têm muito dinheiro não podem ter acesso a espaços privativos entre aspas, lugares onde se vende álcool abundantemente, em que por acaso possa permitir um contexto onde um crime como esse vai acontecer.”

Para o empresário, práticas como ingresso mais barato e drinque à vontade para mulher são normalizadas, ainda que criem um contexto social para crimes sexuais. “Eu vou te dar um exemplo muito prático: quando você vai numa casa noturna e mulher não paga até meia-noite, quem é o produto? A mulher. Open bar para a mulherada até meia-noite. Quem é o produto? É a mulher. O contexto está construído de forma que as mulheres sejam entendidas como produto, para que os homens paguem mais caro, arquem com o que seriam os ingressos das mulheres porque eles vão entrar lá e acessar essas mulheres que vão estar fragilizadas pelo álcool.”

Leia abaixo os principais trechos da entrevista e ouça a conversa na íntegra no podcast da coluna Mulheres Reais.

Facundo, há 17 anos você administra casas noturnas. Como vê a questão da vulnerabilidade das mulheres na noite, especialmente no carnaval?

Nesses espaços que vendem álcool, diversão, entretenimento, escapismo, em boate, casa de show e tudo o mais, a mulher é vista como um produto. Essa que é a verdade. Eu vou te dar um exemplo muito prático: quando você vai numa casa noturna e mulher não paga até meia-noite, quem é o produto? A mulher. Por quê? Porque se parte do pressuposto que essas mulheres vão entrar, vai ter open bar para a mulherada até meia-noite. Quem é o produto? É a mulher. Mulher não paga até uma da manhã. Quem é o produto? É a mulher. Então o contexto está construído de forma que as mulheres sejam entendidas como produto, para que os homens paguem mais caro, arquem com o que seriam os ingressos das mulheres porque eles vão entrar lá e acessar essas mulheres que vão estar fragilizadas pelo álcool, que vão estar com seu juízo abalado porque beberam e aproveitaram aquela oportunidade de entrar até meia-noite com open bar. Então tem um contexto social onde a mulher já é vista como produto. No caso, por exemplo, da boate de Barcelona (do caso Daniel Alves), a gente fala: ‘Ah, não, uma vez o crime consumado o segurança ajudou. Mas teve um contexto que permitiu que esse crime fosse consumado dentro de uma casa de show. Que, vale lembrar, foi o mesmo contexto da Mari Ferrer, que a gente teve ali naquela boate no sul. Então o que acontece? Esses lugares vendem privacidade para pessoas que são muito ricas. Quando você vai na área vip não tem um segurança porque essas pessoas muito ricas querem anonimato sobre o que elas estão fazendo. Nessas áreas se consomem abertamente drogas, nessas áreas você permite que uma mulher seja arrastada para um banheiro que não tem diferenciação de gênero e seja estuprada. Então muito se fala sobre o que aconteceu pós-fato, mas ninguém está discutindo o que permitiu que esse fato acontecesse dentro de uma casa noturna. Eu acho que o fato de um segurança não ter visto uma mulher fragilizada, um homem tocando essa mulher - porque essa abordagem não aconteceu sem antes ter algum anúncio de algo de errado dentro daquele banheiro. Mas por que isso aconteceu? Eu conheço boates e vou te dizer que a densidade de segurança por metro quadrado de uma boate talvez seja uma das maiores que em qualquer espaço público. Naquela boate especificamente deveria ter 30 ou 40 seguranças numa dada noite, mas nenhum deles na área vip. Como também não tinha nenhum segurança na área vip do caso Mari Ferrer. Por quê? Porque se vendeu para o Daniel e para os homens que estavam acompanhando Daniel naquela noite que essa era uma área isolada do olhar do outro. Isso não pode mais acontecer. Pessoas que têm muito dinheiro não podem ter acesso a espaços privativos entre aspas, lugares onde se vende álcool abundantemente, em que por acaso possa permitir um contexto onde um crime como esse vai acontecer. Eu acho que também não pode mais acontecer, e tem de ser de alguma forma impedido, que se venda álcool, que se dê álcool para mulheres até meia-noite. Ou que mulher não pague a entrada dentro de um determinado lugar. Porque isso cria um contexto onde a mulher vai ser abusada. Existe uma questão que é cultural e é anterior ao estupro, ao abuso e a tudo mais, que é a de a gente viver numa cultura - especialmente aqui no Brasil - que vê a mulher como produto. Não vai ter lei que vai impedir. Pode ser que a gente consiga aumentar a porcentagem de homens que vão ser criminalizados e vão para cadeia por conta de um estupro, mas quantos abusos são cometidos todos os dias contra mulheres e esses homens escapam? Ou porque a mulher não quer denunciar ou porque vai ser julgada denunciando ou porque seu depoimento vai ser colocado em questão, como está acontecendo inclusive agora no caso do Daniel? Então eu acho que antes de mais nada tem que ter uma mudança de infraestrutura e uma mudança cultural. Não pode existir espaço privado longe do olhar de uma segurança que permita que aconteça um caso como aconteceu em Barcelona e - vou te dizer - deve acontecer todos os dias no Brasil, tá? Isso é uma coisa cultural. Você vai ver as letras das músicas sertanejas: mulher como produto. Você vai ver trend de Tik Tok: mulher como produto. Não tem como escapar disso quando na cultura a gente fala que o corpo da mulher pode ser acessado por qualquer homem. Com dinheiro ou com força.

Como mudar isso? O que as casas noturnas podem fazer na prática para mostrar: ‘Não, aqui não se compactua com isso’?

Olha, eu tento no design do projeto já usar estruturas que impeçam ou que desestimulem homens a cometer esse tipo de abuso. Como isso acontece na prática? Por exemplo, no Bar dos Arcos, todas as chefias são femininas ou queer. Você pode falar: por que ter uma pessoa da comunidade LGBTQIAP+ ajuda a coibir esse tipo de de abuso? Porque elas conseguem identificar o que é abuso antes de ele acontecer. Porque essas pessoas já foram muito abusadas. Elas têm empatia com a dor de uma minoria, das mulheres. Então elas já são mais sensíveis ao que pode ser um abuso. O que pode ser um abuso? Por exemplo o que a gente tomava por cavalheirismo ou cordialidade: ‘Ah, eu quero pagar um drinque para uma mulher na outra mesa’. Hoje em dia a gente não quer fazer isso. A gente não vai permitir que um homem pague um drinque para uma mulher. ‘Ah, manda um drinque para aquela mesa.’ Não, a gente não vai fazer isso porque a mulher não pediu esse drinque. ‘Ah, você pode fazer um correio elegante para aquela outra mesa?’ Não, a gente não vai fazer isso. Por quê? Porque aquela mulher está tomando um drinque sozinha e provavelmente ela não quer ser interrompida por um estranho. Num date, a mulher toma um, dois, três, quatro, cinco drinques; o cara tomou um ou dois. A mulher está sendo alcoolizada progressivamente num primeiro encontro, isso pode abalar o juízo dela mais adiante. A gente interrompe. Tipo: ‘Olha, a partir de agora a gente não serve mais’. Eu tenho interesse em que essa mulher se sinta segura até por uma questão mercadológica. O bar, a boate, a casa de show: as mulheres ficam tensas quando vão a esses lugares. Você não sabe se você vai ter o cabelo puxado, se alguém vai sair pegando na tua cintura, se você está conversando com uma amiga e um cara vai se sentir no direito de interromper a conversa de vocês duas e vir com ‘Posso sentar aqui com vocês?’ São lugares geralmente incômodos para as mulheres, onde acontece muito abuso. Outra coisa que acontece muito em boate e está até no campo do fetiche: duas pessoas entrarem no banheiro. Não, não vai acontecer. Então tem esse segurança próximo dos banheiros para que não aconteça de duas pessoas entrarem. Por quê? Porque duas pessoas dentro do banheiro estão longe do olhar dos outros. Quer transar? Vai para casa. Não é o lugar mais confortável nem mais salubre para você transar. Por mais que você tenha esse fetiche, vai para tua casa, aqui não. Por quê? Porque pode acontecer um crime.

Que padrão vocês usam para identificar um abuso?

O que é abuso? Vamos tipificar o que é abuso. Abuso é qualquer coisa que aconteça depois do não. Tem um não, a partir daí você está no território do abuso. Então eu acho que é muito importante ter uma brigada que está dentro da comunidade LGBTQIAP+, que tem lideranças femininas e sabe diferenciar o que é ou não abuso. Eu não acredito mais em atos de cavalheirismo. Eles criam uma zona muito sombria. Gentileza tem que acontecer. Eu sou gentil com homens e com mulheres. Eu não tenho problema de pagar conta para um homem também. Mesmo que seja um amigo. Se eu convidei ele para jantar, vamos trocar uma ideia, eu posso pagar a conta. Porque eu não tô interessado no que vai acontecer depois de pagar a conta. Eu não tô pagando a conta com o intuito de tirar algum tipo de favor de um homem ou de uma mulher. Eu sou a favor de pagar conta inclusive. Se eu posso e quero pagar conta, eu quero fazer essa gentileza. Mas essa gentileza não é direcionada a um gênero. Ela é desinteressada. Mas essas zonas sombrias, essas categorias que a minha geração chamava de cavalheirismo e tudo mais, não. Elas têm que cair.

Qual costuma ser a reação de clientes quando vocês tomam atitudes do tipo “não vou levar esse drinque para uma mulher na outra mesa”?

Algumas vezes a gente tem reações violentas, na linha: “Quem manda aqui sou eu”, “Eu que pago o seu salário”, “Você sabe com quem está falando?”, “Eu vou te dar um review negativo no Google”, “Vou falar mal desse bar aos meus amigos”...

Você como empresário tem que pensar no lucro. Como dar esse respaldo às mulheres e ao mesmo tempo não afastar os homens?

Olha, eu quero afastar os homens. Os homens que são abusivos não quero dentro dos meus lugares. Aí eu vou construindo estruturas e sinais. Uma mulher trans na porta por exemplo é muito importante para mim. Uma porque eu milito a favor da causa trans - eu acho que é importante você tirar a mulher trans e o homem trans do lugar social que normalmente é esperado para eles, que é o entretenimento ou a beleza. Então eu gosto de trabalhar com pessoas que são da comunidade trans. E outra porque se uma pessoa se sente incomodada em ter a hostess ou o host trans eu não quero ela dentro do meu espaço. Vai me causar problema e graças aos orixás eu posso me dar a escolha de escolher meu público. Eu tenho fila na porta todos os dias, então eu não quero agradar a todos. Eu vendo uma proposta autoral, quase artística, se você quiser chamar assim. Então eu tô permitindo acesso ao meu mundo. Se a pessoa se sente incomodada com o meu mundo, não falta bar em São Paulo, vai gastar teu dinheiro em outro lugar. Porque eu não acredito que o cliente tem sempre razão. Muitas vezes, ele não tem. Na minha casa, que é o meu espaço, o cliente nem sempre tem razão. Ele tem razão desde que a gente esteja alinhado eticamente. E, se ele tiver a quantidade de dinheiro que ele tiver achando que ele vai comprar a minha ética com o seu dinheiro, ele tá enganado, não vai.

E no carnaval? A gente tem visto nos últimos anos campanhas que alertam para a questão dos limites e do consentimento, mas elas acabam chegando mais às classes média e alta. Como fazer para que atinjam um público maior?

A resposta para tudo nessa vida é educação e redução de desigualdade social. Esse tipo de insensibilidade com relação ao gênero vem de toda a condição social das mulheres no Brasil. A raiz do problema sempre vai ser a falta de educação e a desigualdade social. Você vai falar: ‘Ah, mas como assim? Você está indo lá atrás?’ Sim, é o contexto da nossa sociedade mesmo. A mulher receber menos pelo mesmo tipo de trabalho que performa com relação ao homem, o abandono parental, o abandono da mulher pelo homem, a sobrecarga que a mulher tem na nossa sociedade: tudo isso faz com que a mulher seja vista como uma mercadoria. O excesso de sexualização. Não estou sendo moralista e falando que a sexualização é errada. Não estou sendo moralista e falando: ‘Ah, não, a gente tem que evangelizar as letras do funk’. Não é isso, mas é a cultura da pornografia, é a cultura de olhar a mulher dentro de uma sociedade, dentro do patriarcado, como uma mercadoria. E para isso você precisa de leitura, você precisa de iluminação, você precisa desmontar a maneira como você foi construído.

Como você foi construído?

Eu fui construído como um machista. Eu já fui muito a balada onde mulher não pagava. Eu já provavelmente ao longo da minha vida cometi abusos ou ultrapassei limites. Eu não estou dizendo que eu sou o macho desconstruído, eu sou machista também. Eu tenho que admitir meu machismo porque se não como eu vou identificar o machismo alheio? Agora o que eu tenho que fazer, mais além de tudo sendo pai de uma menina - e não é o fato de ser pai de uma menina que me iluminou, mas o fato de ter mulheres e aliadas o tempo inteiro à minha volta -, é falar: ‘Pô eu causei já muita dor, eu tenho que de alguma forma parar de causar dor nos outros, homens e mulheres. Então não tem jeito: é estudando, é lendo, é ouvindo, é sendo empático, é perguntando se você gostaria que fizesse com você o que você está fazendo com os outros. São as regras básicas de viver em sociedade, mas para isso você precisa abrir um pouco a tua cabeça para leitura. E o mais importante: para ouvir as mulheres e entender que elas estão sofrendo todos os dias. Uma mulher que viva numa cidade grande, ou em qualquer lugar na verdade, ela vive com medo, gente. Ela pega um Uber com medo. Ela anda na rua com medo. Passou das 6 da tarde ela está apavorada voltando para casa. Ela não quer andar a pé. Coisas que nós homens não conseguimos nem dimensionar, entendeu? E você viver com medo é uma das piores coisas que podem existir. Poda a vida... Então não é possível. Acho que tem um grande potencial que a gente tem desperdiçado no Brasil - e talvez no mundo - que é conviver com mais da metade da população com medo o tempo inteiro da outra metade. Não pode. A gente nunca vai ser uma nação potente se a gente tiver uma geração de mulheres que vive com medo o tempo inteiro. Com medo você não realiza a tua potência. Com medo você se autocastra, você se autopoda.

Entrevista por Luciana Garbin

Editora executiva no ‘Estadão’, professora na FAAP e mãe de gêmeos

Carolina Ercolin

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