No samba-enredo que contrasta os antigos carnavais e os de hoje, a São Clemente, escola atualmente no Grupo de Acesso e conhecida pela irreverência, escancara: "Eu bem que te avisei/ Que o samba um dia ia sambar/ Genitália apareceu/ O Rei Momo emagreceu/ E a rainha paga pra reinar." Os comentários sobre rainhas de bateria que pagam pelo posto vêm de outros carnavais, mas, como o assunto é controverso, ainda há quem prefira o eufemismo de que elas estão "ajudando a escola". É o caso de Uberlan Oliveira, presidente da Porto da Pedra, cuja rainha, Valesca Santos, a Valesca Popozuda, teria pago R$ 100 mil para desfilar. "Ela ajuda com a fantasia dos ritmistas, banca churrasco de confraternização, convida todo mundo. É assim que funciona. Esse assunto cansa", desconversa. Rainha também da Águia de Ouro, em São Paulo, Valesca, cantora e dançarina de funk, já disse que o posto foi importante para "mudar seu currículo", até então associado apenas ao ritmo dos bailes. No momento, Valesca está se poupando para o carnaval, recuperando-se de uma pneumonia (dizem as más línguas que ela ficou doente porque sambou sem roupa, com o corpo pintado, num ensaio). Valesca não atendeu as ligações do Estado nesta semana. Ângela Bismarchi, que fez sua fama por bater recorde de cirurgias plásticas e também por desfilar nua e toda pintada, não gosta dessa história de ter de pagar para desfilar. Ela se afastou da Porto da Pedra, escola em que saiu por cinco anos, justamente com a chegada de Valesca, em 2008. Neste ano, sai só em São Paulo (na Nenê de Vila Matilde e na Imperador do Ipiranga). "As pessoas negam, mas todo mundo sabe. Na Porto da Pedra está claro que foi isso", disse. "Uma vez, me pediram R$ 150 mil, mas eu não quis. O carnaval é uma vitrine para o mundo todo, mas eu sou contra pagar. Estou há 12 anos na Sapucaí, não sou fruta, não sou funkeira. As mulheres do carnaval estão perdendo espaço. Ninguém tem coragem de falar, mas eu falo." Ângela paga a própria fantasia, que costuma ficar em R$ 20 mil. É praxe entre a maior parte das rainhas, que gostam de ter liberdade de escolher os modelos com os quais vão sair em todos os jornais e revistas. CAPRICHO CAROQuem não tem padrinho nem é artista famosa (como Luiza Brunet, da Imperatriz, e Adriane Galisteu, da Unidos da Tijuca) tem de economizar o ano todo para poder caprichar nas pedrarias e penas. "Deixo de trocar meu carro para poder pagar a fantasia e, além do mais, você pode parcelar (a deste ano custará R$ 35 mil)", conta Thatiana Pagung, da Mocidade, que pertence ao grupo de rainhas que têm ligação afetiva antiga com a escola. "Eu sempre fui Mocidade, ser rainha foi consequência. Carnaval é diversão, ser rainha não é trabalho. Seria o cúmulo do ego eu pagar para sair. Deveria ser o contrário: a escola te pagar. Os valores estão invertidos."Filha de família humilde, Raissa de Oliveira, de 19 anos, rainha da Beija-Flor desde os 12, brinca: "Se eu tivesse de pagar, não sairia nunca. Não pago nem bala. Hoje em dia está tudo escancarado, ninguém mais tem pudor de dizer que pagou. O importante é ter carinho pela escola e a bateria." A jovem não gosta de polemizar - se a rainha pode ajudar, seja contactando patrocinadores, seja na promoção de shows na comunidade, com renda revertida para o custeio do desfile, por que não? "Eu nunca paguei, sempre fui convidada. A ideia não me agrada, não acho legal. Agora, se a rainha tem dinheiro e pode ajudar nas alas das crianças, não vejo problema. No meu caso, não pago nem a fantasia, quem paga é a Imperatriz", garante Luiza Brunet. Para quem desfila juntinho à rainha, o assédio de fotógrafos e cinegrafistas pode até atrapalhar. "Desde que a rainha não atrapalhe, não me incomoda. Adriane é fabulosa, me dá uma mídia muito boa. Muitas têm vaidade e acabam prejudicando a bateria. Nesse caso, quanto mais famosa, pior", testemunha o mestre de bateria da Unidos da Tijuca, Casagrande. Próxima capa da Playboy, Renata Santos, novata na Mangueira, já não se chateia com os boatos de que seu reinado teria lhe custado R$ 300 mil (ela substituiu Gracyanne Barbosa, namorada do cantor de pagode Belo, agora na Vila Isabel). Boa de samba - nem todas são -, Renata propõe que a performance das rainhas passe a ser avaliada pelos jurados. "Se virasse quesito, isso tudo mudaria, todas precisariam ter samba no pé", afirma.