Arqueólogos mergulhadores desvendam mistérios de navio escravagista que foi perseguido pela Marinha


Especialistas buscam identificar o brigue Camargo, embarcação de bandeira americana que afundou na costa brasileira; trabalho faz parte do AfroOrigens, projeto de arqueologia sobre a diáspora africana

Por Roberta Jansen
Atualização:

RIO - Um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Sergipe e da Universidade Federal Fluminense, com a ajuda de quilombolas da região, localizou, em novembro de 2022, restos de naufrágios de navios escravagistas, na região de Bracuí, em Angra dos Reis, no sul fluminense. A região recebia escravizados, sobretudo de forma irregular, depois da proibição do tráfico. A descoberta marca o início do AfroOrigens, um ambicioso projeto de arqueologia sobre a diáspora africana na costa brasileira.

O grupo de pesquisadores busca, especificamente, identificar os remanescentes do brigue Camargo, um navio de bandeira norte-americana que foi a pique na costa brasileira.

De acordo com documentos históricos, a embarcação foi incendiada e afundada em dezembro de 1852 – portanto dois anos depois da Lei Eusébio de Queiróz, que proibia o tráfico – por seu próprio capitão, Nathaniel Gordon. O comandante queria fugir da repressão da Marinha, logo após desembarcar ilegalmente 503 escravizados vindos de Moçambique. Segundo historiadores, o Camargo pode ter sido um dos últimos a desembarcar africanos contrabandeados no Brasil.

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Registros jornalísticos da época apontam um local para o naufrágio do Camargo, mas a tradição oral dos quilombolas indica uma localização diferente, ainda que na mesma região. Arqueólogos marinhos mapearam toda a região da baía de Bracuí e buscam agora identificar os remanescentes do navio.

“Nós analisamos as estruturas construtivas dos restos da embarcação, que tem características próprias. No caso, um brigue, construído no Maine, EUA, no século XIX, tem assinaturas que o diferenciam de outros construídos em outros locais e épocas”, explicou o arqueólogo Gilson Rambelli, do Laboratório de Arqueologia de Ambientes Aquáticos da UFS.

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“Além disso algumas amostras da madeira podem ser analisadas e datadas para uma melhor precisão (a madeira pode ser datada pelo método do carbono 14 e também pela dendrocronologia, que consegue analisar os anéis de crescimento das árvores). As pedras utilizadas como lastro no navio também são estudadas. Além desses aspectos relativos à arquitetura naval, ou seja, aos restos do navio, propriamente dito, outros artefatos porventura encontrados junto ao sítio arqueológico podem servir como balizadores de datações relativas do sítio.”

Um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Sergipe e da Universidade Federal Fluminense, com a ajuda de quilombolas da região, localizou, em novembro de 2022, restos de naufrágios de navios escravagistas  Foto: Yuri Sanada

Naufrágios

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A ideia do grupo é que o Camargo seja o primeiro de muitos navios escravagistas a serem achados na costa brasileira, uma forma de jogar luz sobre um dos períodos mais sombrios da história do País. Para isso, criaram o AfroOrigens, com o objetivo de mapear não apenas os naufrágios, mas também as áreas dos portos, por onde entravam os escravizados e que, muitas vezes, serviam de entreposto para o tráfico de gente.

“Levantamentos históricos mostram que a costa brasileira está repleta de histórias como a do Camargo, ocultas pela história oficial”, afirma o arqueólogo Luis Felipe Freire Dantas, da UFS, que também participa do projeto. “A arqueologia é uma ferramenta política para pensarmos a reparação dos crimes de tráfico de africanos.”

Levantamentos históricos mostram que a costa brasileira está repleta de histórias como a do Camargo, ocultas pela história oficial

Luis Felipe Freire Dantas, arqueólogo

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Vários quilombos na costa brasileira, como o de Bracuí, são herdeiros diretos de portos ilegais e fazendas escravagistas. Ainda assim, há pouquíssimos projetos arqueológicos voltados para a exploração dessas áreas.

“Do sul fluminense ao norte de São Paulo, toda essa área era de desembarque ilegal, havia pequenos portos por toda a costa, ligados a fazendas de café da região”, explicou a historiadora Hebe Mattos, da UFF.

“Eram locais de recuperação e engorda de escravizados para revenda. Havia também cemitérios de pretos novos. Ou seja, existe também ai toda uma arqueologia terrestre que nunca foi feita. Por isso temos tantos quilombos na costa.”

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Segundo Hebe Mattos, os quilombolas são os grandes “guardiões da memória” do tráfico ilegal de gente.

“É um processo altamente esquecido, com pouquíssimos registros, pouca literatura”, disse. “Isso vai sendo apagado da memória brasileira.”

Em sua trilogia Escravidão, o jornalista Laurentino Gomes demonstra que o Brasil foi, de longe, o principal destino de traficantes de gente. De um total de 12,5 milhões de africanos embarcados para a América, estima-se que praticamente a metade, 5,8 milhões, tenha vindo para o Brasil. O País foi o último a abolir a escravidão, em 1888.

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“Entre 1831, ano em que o tráfico foi declarado legalmente proibido, e 1835 entraram clandestinamente no Brasil cerca de 83 mil africanos escravizados. Era só o começo de uma atividade criminosa que se expandiria de forma assustadora nos anos seguintes”, escreveu Laurentino, no terceiro volume de sua obra.

“Entre 1836 e 1840 foram transplantados mais 255 mil escravos, o triplo do período anterior. Outros 400 mil chegariam até 1850, ano da Lei Eusébio de Queiróz, que, pela segunda e definitiva vez, proibiu o tráfico. No total, cerca de 740 mil pessoas contrabandeadas no curto intervalo de duas décadas, sob o olhar cúmplice da polícia e das mais altas autoridades do Império. Entre os anos de 1841 e 1850, nada menos que 88% dos africanos embarcados em navios negreiros para a América tiveram como destino o Brasil.”

Caso exemplar

O caso do Camargo é exemplar por algumas razões.

Primeiramente, imagina-se que tenha sido um dos últimos naufrágios de navio escravagista na costa brasileira. Além disso, trata-se de um naufrágio bem documentado pela imprensa. A partir da Lei Eusébio de Queiróz, com a ilegalidade do tráfico, a movimentação dos navios escravagistas deixou de ter registro oficial. Como o caso do Camargo foi excepcional, atraiu a atenção da imprensa.

Imagina-se que tenha sido um dos últimos naufrágios de navio escravagista na costa brasileira Foto: Yuri Sanada

“O caso do Camargo é muito simbólico, porque, como ele foi incendiado e afundado, foi amplamente reconhecido pela imprensa e pela polícia, embora a Marinha não tenha conseguido apreender o navio”, explicou a historiadora Hebe Mattos.

O caso do Camargo é muito simbólico, porque, como ele foi incendiado e afundado, foi amplamente reconhecido pela imprensa e pela polícia

Hebe Mattos, historiadora

Outro ponto importante é que se tratava de um navio de bandeira americana, com um capitão americano, que havia sido roubado nos EUA e levado para Moçambique.

Tão logo desembarcou os primeiros moçambicanos na costa brasileira, Nathaniel Gordon tratou de botar fogo na embarcação e afundá-la quando se viu perseguido pela Marinha brasileira. Ainda assim, o capitão conseguiu escapar – diferentemente de alguns de seus subordinados que foram presos.

“As embarcações americanas tinham muitas vantagens para o tráfico, pois, embora menores, eram mais velozes, conseguiam despistar perseguidores, além de economizar tempo nas viagens, com uma economia essencial de água e suprimentos”, explicou Gilson Rambelli.

“Do ponto de vista político, o pavilhão americano permitia privilégios, como a não permissão de vistoria a bordo, eliminando o perigo de serem presos pelos ingleses.”

Disfarçado de mulher, Gordon voltou para os Estados Unidos. Desta vez, no entanto, não deu tanta sorte. Em seu país de origem, foi preso por pirataria e enforcado em 1862. Com isso, entrou para a história como o único americano enforcado por tráfico. Até então, ninguém jamais tinha sido punido nos EUA por esse crime, mas o governo de Abraham Lincoln estava disposto a mudar isso.

Filmagem

A trama rocambolesca não passou despercebida. Tanto é que todo o trabalho é acompanhado por uma equipe de cinegrafistas e mergulhadores da Aventura Produções, produtora que acompanha as pesquisas para fazer um documentário e, posteriormente, um filme de ficção.

“O capitão Gordon é um personagem importante tanto para o Brasil quanto para os Estados Unidos”, afirmou o documentarista e mergulhador Yuri Sanada. “Há mais de dez anos tenho vontade de contar essa história, de fazer um filme sobre o último navio negreiro a aportar no Brasil e o único traficante de escravos condenado e enforcado.”

A ideia dos especialistas é documentar tudo o que for encontrado no fundo da baía, mas não tirar nada do lugar. O sítio seria transformado em uma área de atração turística e acadêmica e um símbolo do tráfico humano e da tortura. A comunidade local também ganharia um meio de subsistência.

Por isso, descendentes diretos dos escravizados vindos no Camargo e em outros navios escravagistas que aportaram na região, os moradores do quilombo Santa Rita do Bracuí colaboram com os pesquisadores. Eles acreditam que a descoberta de uma prova irrefutável de um crime contra a humanidade pode ajudá-los a preservar sua identidade e divulgar sua história, além de garantir a posse definitiva das terras.

“A história do quilombo é mais antiga do que a vinda do Camargo. Muito antes disso já havia a fazenda (Santa Rita) e muitos escravos”, contou a líder quilombola Marilda de Souza Francisco. “O dono dessa fazenda era José de Souza Breves, um grande escravagista, que trazia escravos para a sua fazenda, mas também para outras da região.”

Estrategicamente localizada na costa, a fazenda Santa Rita servia como uma espécie de entreposto. Muitos escravizados desembarcados ali passavam a noite na fazenda e depois seguiam viagem. Curiosamente, Breves deixou a fazenda em testamento para os moradores da época, mas, até hoje, os quilombolas não têm a posse da terra, embora o quilombo já tenha sido reconhecido (em 1999) e certificado (em 2011). No terreno há ainda ruinas de um alambique, de uma capela e de um cemitério.

“O potencial do lugar é similar ou até mesmo maior que o do Cais do Valongo”, comparou a historiadora Hebe Mattos, se referindo ao porto no centro do Rio de Janeiro, por onde entrou uma grande quantidade de escravizados no País.

“O trabalho tem uma função social, e também política, porque tem um protagonismo afrocentrado”, explicou o arqueólogo Julio César da Silva Martins, também da UFS, integrante do projeto. “E isso é fundamental porque os brancos não alcançam alguns lugares das questões relacionadas aos quilombos.”

Nós vemos o Bracuí como um celeiro histórico desse período de exploração escravocrata

Emerson Luis Ramos, líder quilombola

“Nós vemos o Bracuí como um celeiro histórico desse período de exploração escravocrata”, afirmou o líder quilombola Emerson Luis Ramos. “Agora, com essa pesquisa, buscamos reafirmar a nossa história oral com dados históricos e documentação. A comunidade tem uma história oral muito rica, mas para validar essa dívida histórica, da titularidade do território quilombola, ainda mais num País racista, a pesquisa é muito importante. Queremos mostrar para os mais jovens que é possível viver no território, amar essa terra e defender essa terra.”

RIO - Um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Sergipe e da Universidade Federal Fluminense, com a ajuda de quilombolas da região, localizou, em novembro de 2022, restos de naufrágios de navios escravagistas, na região de Bracuí, em Angra dos Reis, no sul fluminense. A região recebia escravizados, sobretudo de forma irregular, depois da proibição do tráfico. A descoberta marca o início do AfroOrigens, um ambicioso projeto de arqueologia sobre a diáspora africana na costa brasileira.

O grupo de pesquisadores busca, especificamente, identificar os remanescentes do brigue Camargo, um navio de bandeira norte-americana que foi a pique na costa brasileira.

De acordo com documentos históricos, a embarcação foi incendiada e afundada em dezembro de 1852 – portanto dois anos depois da Lei Eusébio de Queiróz, que proibia o tráfico – por seu próprio capitão, Nathaniel Gordon. O comandante queria fugir da repressão da Marinha, logo após desembarcar ilegalmente 503 escravizados vindos de Moçambique. Segundo historiadores, o Camargo pode ter sido um dos últimos a desembarcar africanos contrabandeados no Brasil.

Registros jornalísticos da época apontam um local para o naufrágio do Camargo, mas a tradição oral dos quilombolas indica uma localização diferente, ainda que na mesma região. Arqueólogos marinhos mapearam toda a região da baía de Bracuí e buscam agora identificar os remanescentes do navio.

“Nós analisamos as estruturas construtivas dos restos da embarcação, que tem características próprias. No caso, um brigue, construído no Maine, EUA, no século XIX, tem assinaturas que o diferenciam de outros construídos em outros locais e épocas”, explicou o arqueólogo Gilson Rambelli, do Laboratório de Arqueologia de Ambientes Aquáticos da UFS.

“Além disso algumas amostras da madeira podem ser analisadas e datadas para uma melhor precisão (a madeira pode ser datada pelo método do carbono 14 e também pela dendrocronologia, que consegue analisar os anéis de crescimento das árvores). As pedras utilizadas como lastro no navio também são estudadas. Além desses aspectos relativos à arquitetura naval, ou seja, aos restos do navio, propriamente dito, outros artefatos porventura encontrados junto ao sítio arqueológico podem servir como balizadores de datações relativas do sítio.”

Um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Sergipe e da Universidade Federal Fluminense, com a ajuda de quilombolas da região, localizou, em novembro de 2022, restos de naufrágios de navios escravagistas  Foto: Yuri Sanada

Naufrágios

A ideia do grupo é que o Camargo seja o primeiro de muitos navios escravagistas a serem achados na costa brasileira, uma forma de jogar luz sobre um dos períodos mais sombrios da história do País. Para isso, criaram o AfroOrigens, com o objetivo de mapear não apenas os naufrágios, mas também as áreas dos portos, por onde entravam os escravizados e que, muitas vezes, serviam de entreposto para o tráfico de gente.

“Levantamentos históricos mostram que a costa brasileira está repleta de histórias como a do Camargo, ocultas pela história oficial”, afirma o arqueólogo Luis Felipe Freire Dantas, da UFS, que também participa do projeto. “A arqueologia é uma ferramenta política para pensarmos a reparação dos crimes de tráfico de africanos.”

Levantamentos históricos mostram que a costa brasileira está repleta de histórias como a do Camargo, ocultas pela história oficial

Luis Felipe Freire Dantas, arqueólogo

Vários quilombos na costa brasileira, como o de Bracuí, são herdeiros diretos de portos ilegais e fazendas escravagistas. Ainda assim, há pouquíssimos projetos arqueológicos voltados para a exploração dessas áreas.

“Do sul fluminense ao norte de São Paulo, toda essa área era de desembarque ilegal, havia pequenos portos por toda a costa, ligados a fazendas de café da região”, explicou a historiadora Hebe Mattos, da UFF.

“Eram locais de recuperação e engorda de escravizados para revenda. Havia também cemitérios de pretos novos. Ou seja, existe também ai toda uma arqueologia terrestre que nunca foi feita. Por isso temos tantos quilombos na costa.”

Segundo Hebe Mattos, os quilombolas são os grandes “guardiões da memória” do tráfico ilegal de gente.

“É um processo altamente esquecido, com pouquíssimos registros, pouca literatura”, disse. “Isso vai sendo apagado da memória brasileira.”

Em sua trilogia Escravidão, o jornalista Laurentino Gomes demonstra que o Brasil foi, de longe, o principal destino de traficantes de gente. De um total de 12,5 milhões de africanos embarcados para a América, estima-se que praticamente a metade, 5,8 milhões, tenha vindo para o Brasil. O País foi o último a abolir a escravidão, em 1888.

“Entre 1831, ano em que o tráfico foi declarado legalmente proibido, e 1835 entraram clandestinamente no Brasil cerca de 83 mil africanos escravizados. Era só o começo de uma atividade criminosa que se expandiria de forma assustadora nos anos seguintes”, escreveu Laurentino, no terceiro volume de sua obra.

“Entre 1836 e 1840 foram transplantados mais 255 mil escravos, o triplo do período anterior. Outros 400 mil chegariam até 1850, ano da Lei Eusébio de Queiróz, que, pela segunda e definitiva vez, proibiu o tráfico. No total, cerca de 740 mil pessoas contrabandeadas no curto intervalo de duas décadas, sob o olhar cúmplice da polícia e das mais altas autoridades do Império. Entre os anos de 1841 e 1850, nada menos que 88% dos africanos embarcados em navios negreiros para a América tiveram como destino o Brasil.”

Caso exemplar

O caso do Camargo é exemplar por algumas razões.

Primeiramente, imagina-se que tenha sido um dos últimos naufrágios de navio escravagista na costa brasileira. Além disso, trata-se de um naufrágio bem documentado pela imprensa. A partir da Lei Eusébio de Queiróz, com a ilegalidade do tráfico, a movimentação dos navios escravagistas deixou de ter registro oficial. Como o caso do Camargo foi excepcional, atraiu a atenção da imprensa.

Imagina-se que tenha sido um dos últimos naufrágios de navio escravagista na costa brasileira Foto: Yuri Sanada

“O caso do Camargo é muito simbólico, porque, como ele foi incendiado e afundado, foi amplamente reconhecido pela imprensa e pela polícia, embora a Marinha não tenha conseguido apreender o navio”, explicou a historiadora Hebe Mattos.

O caso do Camargo é muito simbólico, porque, como ele foi incendiado e afundado, foi amplamente reconhecido pela imprensa e pela polícia

Hebe Mattos, historiadora

Outro ponto importante é que se tratava de um navio de bandeira americana, com um capitão americano, que havia sido roubado nos EUA e levado para Moçambique.

Tão logo desembarcou os primeiros moçambicanos na costa brasileira, Nathaniel Gordon tratou de botar fogo na embarcação e afundá-la quando se viu perseguido pela Marinha brasileira. Ainda assim, o capitão conseguiu escapar – diferentemente de alguns de seus subordinados que foram presos.

“As embarcações americanas tinham muitas vantagens para o tráfico, pois, embora menores, eram mais velozes, conseguiam despistar perseguidores, além de economizar tempo nas viagens, com uma economia essencial de água e suprimentos”, explicou Gilson Rambelli.

“Do ponto de vista político, o pavilhão americano permitia privilégios, como a não permissão de vistoria a bordo, eliminando o perigo de serem presos pelos ingleses.”

Disfarçado de mulher, Gordon voltou para os Estados Unidos. Desta vez, no entanto, não deu tanta sorte. Em seu país de origem, foi preso por pirataria e enforcado em 1862. Com isso, entrou para a história como o único americano enforcado por tráfico. Até então, ninguém jamais tinha sido punido nos EUA por esse crime, mas o governo de Abraham Lincoln estava disposto a mudar isso.

Filmagem

A trama rocambolesca não passou despercebida. Tanto é que todo o trabalho é acompanhado por uma equipe de cinegrafistas e mergulhadores da Aventura Produções, produtora que acompanha as pesquisas para fazer um documentário e, posteriormente, um filme de ficção.

“O capitão Gordon é um personagem importante tanto para o Brasil quanto para os Estados Unidos”, afirmou o documentarista e mergulhador Yuri Sanada. “Há mais de dez anos tenho vontade de contar essa história, de fazer um filme sobre o último navio negreiro a aportar no Brasil e o único traficante de escravos condenado e enforcado.”

A ideia dos especialistas é documentar tudo o que for encontrado no fundo da baía, mas não tirar nada do lugar. O sítio seria transformado em uma área de atração turística e acadêmica e um símbolo do tráfico humano e da tortura. A comunidade local também ganharia um meio de subsistência.

Por isso, descendentes diretos dos escravizados vindos no Camargo e em outros navios escravagistas que aportaram na região, os moradores do quilombo Santa Rita do Bracuí colaboram com os pesquisadores. Eles acreditam que a descoberta de uma prova irrefutável de um crime contra a humanidade pode ajudá-los a preservar sua identidade e divulgar sua história, além de garantir a posse definitiva das terras.

“A história do quilombo é mais antiga do que a vinda do Camargo. Muito antes disso já havia a fazenda (Santa Rita) e muitos escravos”, contou a líder quilombola Marilda de Souza Francisco. “O dono dessa fazenda era José de Souza Breves, um grande escravagista, que trazia escravos para a sua fazenda, mas também para outras da região.”

Estrategicamente localizada na costa, a fazenda Santa Rita servia como uma espécie de entreposto. Muitos escravizados desembarcados ali passavam a noite na fazenda e depois seguiam viagem. Curiosamente, Breves deixou a fazenda em testamento para os moradores da época, mas, até hoje, os quilombolas não têm a posse da terra, embora o quilombo já tenha sido reconhecido (em 1999) e certificado (em 2011). No terreno há ainda ruinas de um alambique, de uma capela e de um cemitério.

“O potencial do lugar é similar ou até mesmo maior que o do Cais do Valongo”, comparou a historiadora Hebe Mattos, se referindo ao porto no centro do Rio de Janeiro, por onde entrou uma grande quantidade de escravizados no País.

“O trabalho tem uma função social, e também política, porque tem um protagonismo afrocentrado”, explicou o arqueólogo Julio César da Silva Martins, também da UFS, integrante do projeto. “E isso é fundamental porque os brancos não alcançam alguns lugares das questões relacionadas aos quilombos.”

Nós vemos o Bracuí como um celeiro histórico desse período de exploração escravocrata

Emerson Luis Ramos, líder quilombola

“Nós vemos o Bracuí como um celeiro histórico desse período de exploração escravocrata”, afirmou o líder quilombola Emerson Luis Ramos. “Agora, com essa pesquisa, buscamos reafirmar a nossa história oral com dados históricos e documentação. A comunidade tem uma história oral muito rica, mas para validar essa dívida histórica, da titularidade do território quilombola, ainda mais num País racista, a pesquisa é muito importante. Queremos mostrar para os mais jovens que é possível viver no território, amar essa terra e defender essa terra.”

RIO - Um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Sergipe e da Universidade Federal Fluminense, com a ajuda de quilombolas da região, localizou, em novembro de 2022, restos de naufrágios de navios escravagistas, na região de Bracuí, em Angra dos Reis, no sul fluminense. A região recebia escravizados, sobretudo de forma irregular, depois da proibição do tráfico. A descoberta marca o início do AfroOrigens, um ambicioso projeto de arqueologia sobre a diáspora africana na costa brasileira.

O grupo de pesquisadores busca, especificamente, identificar os remanescentes do brigue Camargo, um navio de bandeira norte-americana que foi a pique na costa brasileira.

De acordo com documentos históricos, a embarcação foi incendiada e afundada em dezembro de 1852 – portanto dois anos depois da Lei Eusébio de Queiróz, que proibia o tráfico – por seu próprio capitão, Nathaniel Gordon. O comandante queria fugir da repressão da Marinha, logo após desembarcar ilegalmente 503 escravizados vindos de Moçambique. Segundo historiadores, o Camargo pode ter sido um dos últimos a desembarcar africanos contrabandeados no Brasil.

Registros jornalísticos da época apontam um local para o naufrágio do Camargo, mas a tradição oral dos quilombolas indica uma localização diferente, ainda que na mesma região. Arqueólogos marinhos mapearam toda a região da baía de Bracuí e buscam agora identificar os remanescentes do navio.

“Nós analisamos as estruturas construtivas dos restos da embarcação, que tem características próprias. No caso, um brigue, construído no Maine, EUA, no século XIX, tem assinaturas que o diferenciam de outros construídos em outros locais e épocas”, explicou o arqueólogo Gilson Rambelli, do Laboratório de Arqueologia de Ambientes Aquáticos da UFS.

“Além disso algumas amostras da madeira podem ser analisadas e datadas para uma melhor precisão (a madeira pode ser datada pelo método do carbono 14 e também pela dendrocronologia, que consegue analisar os anéis de crescimento das árvores). As pedras utilizadas como lastro no navio também são estudadas. Além desses aspectos relativos à arquitetura naval, ou seja, aos restos do navio, propriamente dito, outros artefatos porventura encontrados junto ao sítio arqueológico podem servir como balizadores de datações relativas do sítio.”

Um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Sergipe e da Universidade Federal Fluminense, com a ajuda de quilombolas da região, localizou, em novembro de 2022, restos de naufrágios de navios escravagistas  Foto: Yuri Sanada

Naufrágios

A ideia do grupo é que o Camargo seja o primeiro de muitos navios escravagistas a serem achados na costa brasileira, uma forma de jogar luz sobre um dos períodos mais sombrios da história do País. Para isso, criaram o AfroOrigens, com o objetivo de mapear não apenas os naufrágios, mas também as áreas dos portos, por onde entravam os escravizados e que, muitas vezes, serviam de entreposto para o tráfico de gente.

“Levantamentos históricos mostram que a costa brasileira está repleta de histórias como a do Camargo, ocultas pela história oficial”, afirma o arqueólogo Luis Felipe Freire Dantas, da UFS, que também participa do projeto. “A arqueologia é uma ferramenta política para pensarmos a reparação dos crimes de tráfico de africanos.”

Levantamentos históricos mostram que a costa brasileira está repleta de histórias como a do Camargo, ocultas pela história oficial

Luis Felipe Freire Dantas, arqueólogo

Vários quilombos na costa brasileira, como o de Bracuí, são herdeiros diretos de portos ilegais e fazendas escravagistas. Ainda assim, há pouquíssimos projetos arqueológicos voltados para a exploração dessas áreas.

“Do sul fluminense ao norte de São Paulo, toda essa área era de desembarque ilegal, havia pequenos portos por toda a costa, ligados a fazendas de café da região”, explicou a historiadora Hebe Mattos, da UFF.

“Eram locais de recuperação e engorda de escravizados para revenda. Havia também cemitérios de pretos novos. Ou seja, existe também ai toda uma arqueologia terrestre que nunca foi feita. Por isso temos tantos quilombos na costa.”

Segundo Hebe Mattos, os quilombolas são os grandes “guardiões da memória” do tráfico ilegal de gente.

“É um processo altamente esquecido, com pouquíssimos registros, pouca literatura”, disse. “Isso vai sendo apagado da memória brasileira.”

Em sua trilogia Escravidão, o jornalista Laurentino Gomes demonstra que o Brasil foi, de longe, o principal destino de traficantes de gente. De um total de 12,5 milhões de africanos embarcados para a América, estima-se que praticamente a metade, 5,8 milhões, tenha vindo para o Brasil. O País foi o último a abolir a escravidão, em 1888.

“Entre 1831, ano em que o tráfico foi declarado legalmente proibido, e 1835 entraram clandestinamente no Brasil cerca de 83 mil africanos escravizados. Era só o começo de uma atividade criminosa que se expandiria de forma assustadora nos anos seguintes”, escreveu Laurentino, no terceiro volume de sua obra.

“Entre 1836 e 1840 foram transplantados mais 255 mil escravos, o triplo do período anterior. Outros 400 mil chegariam até 1850, ano da Lei Eusébio de Queiróz, que, pela segunda e definitiva vez, proibiu o tráfico. No total, cerca de 740 mil pessoas contrabandeadas no curto intervalo de duas décadas, sob o olhar cúmplice da polícia e das mais altas autoridades do Império. Entre os anos de 1841 e 1850, nada menos que 88% dos africanos embarcados em navios negreiros para a América tiveram como destino o Brasil.”

Caso exemplar

O caso do Camargo é exemplar por algumas razões.

Primeiramente, imagina-se que tenha sido um dos últimos naufrágios de navio escravagista na costa brasileira. Além disso, trata-se de um naufrágio bem documentado pela imprensa. A partir da Lei Eusébio de Queiróz, com a ilegalidade do tráfico, a movimentação dos navios escravagistas deixou de ter registro oficial. Como o caso do Camargo foi excepcional, atraiu a atenção da imprensa.

Imagina-se que tenha sido um dos últimos naufrágios de navio escravagista na costa brasileira Foto: Yuri Sanada

“O caso do Camargo é muito simbólico, porque, como ele foi incendiado e afundado, foi amplamente reconhecido pela imprensa e pela polícia, embora a Marinha não tenha conseguido apreender o navio”, explicou a historiadora Hebe Mattos.

O caso do Camargo é muito simbólico, porque, como ele foi incendiado e afundado, foi amplamente reconhecido pela imprensa e pela polícia

Hebe Mattos, historiadora

Outro ponto importante é que se tratava de um navio de bandeira americana, com um capitão americano, que havia sido roubado nos EUA e levado para Moçambique.

Tão logo desembarcou os primeiros moçambicanos na costa brasileira, Nathaniel Gordon tratou de botar fogo na embarcação e afundá-la quando se viu perseguido pela Marinha brasileira. Ainda assim, o capitão conseguiu escapar – diferentemente de alguns de seus subordinados que foram presos.

“As embarcações americanas tinham muitas vantagens para o tráfico, pois, embora menores, eram mais velozes, conseguiam despistar perseguidores, além de economizar tempo nas viagens, com uma economia essencial de água e suprimentos”, explicou Gilson Rambelli.

“Do ponto de vista político, o pavilhão americano permitia privilégios, como a não permissão de vistoria a bordo, eliminando o perigo de serem presos pelos ingleses.”

Disfarçado de mulher, Gordon voltou para os Estados Unidos. Desta vez, no entanto, não deu tanta sorte. Em seu país de origem, foi preso por pirataria e enforcado em 1862. Com isso, entrou para a história como o único americano enforcado por tráfico. Até então, ninguém jamais tinha sido punido nos EUA por esse crime, mas o governo de Abraham Lincoln estava disposto a mudar isso.

Filmagem

A trama rocambolesca não passou despercebida. Tanto é que todo o trabalho é acompanhado por uma equipe de cinegrafistas e mergulhadores da Aventura Produções, produtora que acompanha as pesquisas para fazer um documentário e, posteriormente, um filme de ficção.

“O capitão Gordon é um personagem importante tanto para o Brasil quanto para os Estados Unidos”, afirmou o documentarista e mergulhador Yuri Sanada. “Há mais de dez anos tenho vontade de contar essa história, de fazer um filme sobre o último navio negreiro a aportar no Brasil e o único traficante de escravos condenado e enforcado.”

A ideia dos especialistas é documentar tudo o que for encontrado no fundo da baía, mas não tirar nada do lugar. O sítio seria transformado em uma área de atração turística e acadêmica e um símbolo do tráfico humano e da tortura. A comunidade local também ganharia um meio de subsistência.

Por isso, descendentes diretos dos escravizados vindos no Camargo e em outros navios escravagistas que aportaram na região, os moradores do quilombo Santa Rita do Bracuí colaboram com os pesquisadores. Eles acreditam que a descoberta de uma prova irrefutável de um crime contra a humanidade pode ajudá-los a preservar sua identidade e divulgar sua história, além de garantir a posse definitiva das terras.

“A história do quilombo é mais antiga do que a vinda do Camargo. Muito antes disso já havia a fazenda (Santa Rita) e muitos escravos”, contou a líder quilombola Marilda de Souza Francisco. “O dono dessa fazenda era José de Souza Breves, um grande escravagista, que trazia escravos para a sua fazenda, mas também para outras da região.”

Estrategicamente localizada na costa, a fazenda Santa Rita servia como uma espécie de entreposto. Muitos escravizados desembarcados ali passavam a noite na fazenda e depois seguiam viagem. Curiosamente, Breves deixou a fazenda em testamento para os moradores da época, mas, até hoje, os quilombolas não têm a posse da terra, embora o quilombo já tenha sido reconhecido (em 1999) e certificado (em 2011). No terreno há ainda ruinas de um alambique, de uma capela e de um cemitério.

“O potencial do lugar é similar ou até mesmo maior que o do Cais do Valongo”, comparou a historiadora Hebe Mattos, se referindo ao porto no centro do Rio de Janeiro, por onde entrou uma grande quantidade de escravizados no País.

“O trabalho tem uma função social, e também política, porque tem um protagonismo afrocentrado”, explicou o arqueólogo Julio César da Silva Martins, também da UFS, integrante do projeto. “E isso é fundamental porque os brancos não alcançam alguns lugares das questões relacionadas aos quilombos.”

Nós vemos o Bracuí como um celeiro histórico desse período de exploração escravocrata

Emerson Luis Ramos, líder quilombola

“Nós vemos o Bracuí como um celeiro histórico desse período de exploração escravocrata”, afirmou o líder quilombola Emerson Luis Ramos. “Agora, com essa pesquisa, buscamos reafirmar a nossa história oral com dados históricos e documentação. A comunidade tem uma história oral muito rica, mas para validar essa dívida histórica, da titularidade do território quilombola, ainda mais num País racista, a pesquisa é muito importante. Queremos mostrar para os mais jovens que é possível viver no território, amar essa terra e defender essa terra.”

RIO - Um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Sergipe e da Universidade Federal Fluminense, com a ajuda de quilombolas da região, localizou, em novembro de 2022, restos de naufrágios de navios escravagistas, na região de Bracuí, em Angra dos Reis, no sul fluminense. A região recebia escravizados, sobretudo de forma irregular, depois da proibição do tráfico. A descoberta marca o início do AfroOrigens, um ambicioso projeto de arqueologia sobre a diáspora africana na costa brasileira.

O grupo de pesquisadores busca, especificamente, identificar os remanescentes do brigue Camargo, um navio de bandeira norte-americana que foi a pique na costa brasileira.

De acordo com documentos históricos, a embarcação foi incendiada e afundada em dezembro de 1852 – portanto dois anos depois da Lei Eusébio de Queiróz, que proibia o tráfico – por seu próprio capitão, Nathaniel Gordon. O comandante queria fugir da repressão da Marinha, logo após desembarcar ilegalmente 503 escravizados vindos de Moçambique. Segundo historiadores, o Camargo pode ter sido um dos últimos a desembarcar africanos contrabandeados no Brasil.

Registros jornalísticos da época apontam um local para o naufrágio do Camargo, mas a tradição oral dos quilombolas indica uma localização diferente, ainda que na mesma região. Arqueólogos marinhos mapearam toda a região da baía de Bracuí e buscam agora identificar os remanescentes do navio.

“Nós analisamos as estruturas construtivas dos restos da embarcação, que tem características próprias. No caso, um brigue, construído no Maine, EUA, no século XIX, tem assinaturas que o diferenciam de outros construídos em outros locais e épocas”, explicou o arqueólogo Gilson Rambelli, do Laboratório de Arqueologia de Ambientes Aquáticos da UFS.

“Além disso algumas amostras da madeira podem ser analisadas e datadas para uma melhor precisão (a madeira pode ser datada pelo método do carbono 14 e também pela dendrocronologia, que consegue analisar os anéis de crescimento das árvores). As pedras utilizadas como lastro no navio também são estudadas. Além desses aspectos relativos à arquitetura naval, ou seja, aos restos do navio, propriamente dito, outros artefatos porventura encontrados junto ao sítio arqueológico podem servir como balizadores de datações relativas do sítio.”

Um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Sergipe e da Universidade Federal Fluminense, com a ajuda de quilombolas da região, localizou, em novembro de 2022, restos de naufrágios de navios escravagistas  Foto: Yuri Sanada

Naufrágios

A ideia do grupo é que o Camargo seja o primeiro de muitos navios escravagistas a serem achados na costa brasileira, uma forma de jogar luz sobre um dos períodos mais sombrios da história do País. Para isso, criaram o AfroOrigens, com o objetivo de mapear não apenas os naufrágios, mas também as áreas dos portos, por onde entravam os escravizados e que, muitas vezes, serviam de entreposto para o tráfico de gente.

“Levantamentos históricos mostram que a costa brasileira está repleta de histórias como a do Camargo, ocultas pela história oficial”, afirma o arqueólogo Luis Felipe Freire Dantas, da UFS, que também participa do projeto. “A arqueologia é uma ferramenta política para pensarmos a reparação dos crimes de tráfico de africanos.”

Levantamentos históricos mostram que a costa brasileira está repleta de histórias como a do Camargo, ocultas pela história oficial

Luis Felipe Freire Dantas, arqueólogo

Vários quilombos na costa brasileira, como o de Bracuí, são herdeiros diretos de portos ilegais e fazendas escravagistas. Ainda assim, há pouquíssimos projetos arqueológicos voltados para a exploração dessas áreas.

“Do sul fluminense ao norte de São Paulo, toda essa área era de desembarque ilegal, havia pequenos portos por toda a costa, ligados a fazendas de café da região”, explicou a historiadora Hebe Mattos, da UFF.

“Eram locais de recuperação e engorda de escravizados para revenda. Havia também cemitérios de pretos novos. Ou seja, existe também ai toda uma arqueologia terrestre que nunca foi feita. Por isso temos tantos quilombos na costa.”

Segundo Hebe Mattos, os quilombolas são os grandes “guardiões da memória” do tráfico ilegal de gente.

“É um processo altamente esquecido, com pouquíssimos registros, pouca literatura”, disse. “Isso vai sendo apagado da memória brasileira.”

Em sua trilogia Escravidão, o jornalista Laurentino Gomes demonstra que o Brasil foi, de longe, o principal destino de traficantes de gente. De um total de 12,5 milhões de africanos embarcados para a América, estima-se que praticamente a metade, 5,8 milhões, tenha vindo para o Brasil. O País foi o último a abolir a escravidão, em 1888.

“Entre 1831, ano em que o tráfico foi declarado legalmente proibido, e 1835 entraram clandestinamente no Brasil cerca de 83 mil africanos escravizados. Era só o começo de uma atividade criminosa que se expandiria de forma assustadora nos anos seguintes”, escreveu Laurentino, no terceiro volume de sua obra.

“Entre 1836 e 1840 foram transplantados mais 255 mil escravos, o triplo do período anterior. Outros 400 mil chegariam até 1850, ano da Lei Eusébio de Queiróz, que, pela segunda e definitiva vez, proibiu o tráfico. No total, cerca de 740 mil pessoas contrabandeadas no curto intervalo de duas décadas, sob o olhar cúmplice da polícia e das mais altas autoridades do Império. Entre os anos de 1841 e 1850, nada menos que 88% dos africanos embarcados em navios negreiros para a América tiveram como destino o Brasil.”

Caso exemplar

O caso do Camargo é exemplar por algumas razões.

Primeiramente, imagina-se que tenha sido um dos últimos naufrágios de navio escravagista na costa brasileira. Além disso, trata-se de um naufrágio bem documentado pela imprensa. A partir da Lei Eusébio de Queiróz, com a ilegalidade do tráfico, a movimentação dos navios escravagistas deixou de ter registro oficial. Como o caso do Camargo foi excepcional, atraiu a atenção da imprensa.

Imagina-se que tenha sido um dos últimos naufrágios de navio escravagista na costa brasileira Foto: Yuri Sanada

“O caso do Camargo é muito simbólico, porque, como ele foi incendiado e afundado, foi amplamente reconhecido pela imprensa e pela polícia, embora a Marinha não tenha conseguido apreender o navio”, explicou a historiadora Hebe Mattos.

O caso do Camargo é muito simbólico, porque, como ele foi incendiado e afundado, foi amplamente reconhecido pela imprensa e pela polícia

Hebe Mattos, historiadora

Outro ponto importante é que se tratava de um navio de bandeira americana, com um capitão americano, que havia sido roubado nos EUA e levado para Moçambique.

Tão logo desembarcou os primeiros moçambicanos na costa brasileira, Nathaniel Gordon tratou de botar fogo na embarcação e afundá-la quando se viu perseguido pela Marinha brasileira. Ainda assim, o capitão conseguiu escapar – diferentemente de alguns de seus subordinados que foram presos.

“As embarcações americanas tinham muitas vantagens para o tráfico, pois, embora menores, eram mais velozes, conseguiam despistar perseguidores, além de economizar tempo nas viagens, com uma economia essencial de água e suprimentos”, explicou Gilson Rambelli.

“Do ponto de vista político, o pavilhão americano permitia privilégios, como a não permissão de vistoria a bordo, eliminando o perigo de serem presos pelos ingleses.”

Disfarçado de mulher, Gordon voltou para os Estados Unidos. Desta vez, no entanto, não deu tanta sorte. Em seu país de origem, foi preso por pirataria e enforcado em 1862. Com isso, entrou para a história como o único americano enforcado por tráfico. Até então, ninguém jamais tinha sido punido nos EUA por esse crime, mas o governo de Abraham Lincoln estava disposto a mudar isso.

Filmagem

A trama rocambolesca não passou despercebida. Tanto é que todo o trabalho é acompanhado por uma equipe de cinegrafistas e mergulhadores da Aventura Produções, produtora que acompanha as pesquisas para fazer um documentário e, posteriormente, um filme de ficção.

“O capitão Gordon é um personagem importante tanto para o Brasil quanto para os Estados Unidos”, afirmou o documentarista e mergulhador Yuri Sanada. “Há mais de dez anos tenho vontade de contar essa história, de fazer um filme sobre o último navio negreiro a aportar no Brasil e o único traficante de escravos condenado e enforcado.”

A ideia dos especialistas é documentar tudo o que for encontrado no fundo da baía, mas não tirar nada do lugar. O sítio seria transformado em uma área de atração turística e acadêmica e um símbolo do tráfico humano e da tortura. A comunidade local também ganharia um meio de subsistência.

Por isso, descendentes diretos dos escravizados vindos no Camargo e em outros navios escravagistas que aportaram na região, os moradores do quilombo Santa Rita do Bracuí colaboram com os pesquisadores. Eles acreditam que a descoberta de uma prova irrefutável de um crime contra a humanidade pode ajudá-los a preservar sua identidade e divulgar sua história, além de garantir a posse definitiva das terras.

“A história do quilombo é mais antiga do que a vinda do Camargo. Muito antes disso já havia a fazenda (Santa Rita) e muitos escravos”, contou a líder quilombola Marilda de Souza Francisco. “O dono dessa fazenda era José de Souza Breves, um grande escravagista, que trazia escravos para a sua fazenda, mas também para outras da região.”

Estrategicamente localizada na costa, a fazenda Santa Rita servia como uma espécie de entreposto. Muitos escravizados desembarcados ali passavam a noite na fazenda e depois seguiam viagem. Curiosamente, Breves deixou a fazenda em testamento para os moradores da época, mas, até hoje, os quilombolas não têm a posse da terra, embora o quilombo já tenha sido reconhecido (em 1999) e certificado (em 2011). No terreno há ainda ruinas de um alambique, de uma capela e de um cemitério.

“O potencial do lugar é similar ou até mesmo maior que o do Cais do Valongo”, comparou a historiadora Hebe Mattos, se referindo ao porto no centro do Rio de Janeiro, por onde entrou uma grande quantidade de escravizados no País.

“O trabalho tem uma função social, e também política, porque tem um protagonismo afrocentrado”, explicou o arqueólogo Julio César da Silva Martins, também da UFS, integrante do projeto. “E isso é fundamental porque os brancos não alcançam alguns lugares das questões relacionadas aos quilombos.”

Nós vemos o Bracuí como um celeiro histórico desse período de exploração escravocrata

Emerson Luis Ramos, líder quilombola

“Nós vemos o Bracuí como um celeiro histórico desse período de exploração escravocrata”, afirmou o líder quilombola Emerson Luis Ramos. “Agora, com essa pesquisa, buscamos reafirmar a nossa história oral com dados históricos e documentação. A comunidade tem uma história oral muito rica, mas para validar essa dívida histórica, da titularidade do território quilombola, ainda mais num País racista, a pesquisa é muito importante. Queremos mostrar para os mais jovens que é possível viver no território, amar essa terra e defender essa terra.”

RIO - Um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Sergipe e da Universidade Federal Fluminense, com a ajuda de quilombolas da região, localizou, em novembro de 2022, restos de naufrágios de navios escravagistas, na região de Bracuí, em Angra dos Reis, no sul fluminense. A região recebia escravizados, sobretudo de forma irregular, depois da proibição do tráfico. A descoberta marca o início do AfroOrigens, um ambicioso projeto de arqueologia sobre a diáspora africana na costa brasileira.

O grupo de pesquisadores busca, especificamente, identificar os remanescentes do brigue Camargo, um navio de bandeira norte-americana que foi a pique na costa brasileira.

De acordo com documentos históricos, a embarcação foi incendiada e afundada em dezembro de 1852 – portanto dois anos depois da Lei Eusébio de Queiróz, que proibia o tráfico – por seu próprio capitão, Nathaniel Gordon. O comandante queria fugir da repressão da Marinha, logo após desembarcar ilegalmente 503 escravizados vindos de Moçambique. Segundo historiadores, o Camargo pode ter sido um dos últimos a desembarcar africanos contrabandeados no Brasil.

Registros jornalísticos da época apontam um local para o naufrágio do Camargo, mas a tradição oral dos quilombolas indica uma localização diferente, ainda que na mesma região. Arqueólogos marinhos mapearam toda a região da baía de Bracuí e buscam agora identificar os remanescentes do navio.

“Nós analisamos as estruturas construtivas dos restos da embarcação, que tem características próprias. No caso, um brigue, construído no Maine, EUA, no século XIX, tem assinaturas que o diferenciam de outros construídos em outros locais e épocas”, explicou o arqueólogo Gilson Rambelli, do Laboratório de Arqueologia de Ambientes Aquáticos da UFS.

“Além disso algumas amostras da madeira podem ser analisadas e datadas para uma melhor precisão (a madeira pode ser datada pelo método do carbono 14 e também pela dendrocronologia, que consegue analisar os anéis de crescimento das árvores). As pedras utilizadas como lastro no navio também são estudadas. Além desses aspectos relativos à arquitetura naval, ou seja, aos restos do navio, propriamente dito, outros artefatos porventura encontrados junto ao sítio arqueológico podem servir como balizadores de datações relativas do sítio.”

Um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Sergipe e da Universidade Federal Fluminense, com a ajuda de quilombolas da região, localizou, em novembro de 2022, restos de naufrágios de navios escravagistas  Foto: Yuri Sanada

Naufrágios

A ideia do grupo é que o Camargo seja o primeiro de muitos navios escravagistas a serem achados na costa brasileira, uma forma de jogar luz sobre um dos períodos mais sombrios da história do País. Para isso, criaram o AfroOrigens, com o objetivo de mapear não apenas os naufrágios, mas também as áreas dos portos, por onde entravam os escravizados e que, muitas vezes, serviam de entreposto para o tráfico de gente.

“Levantamentos históricos mostram que a costa brasileira está repleta de histórias como a do Camargo, ocultas pela história oficial”, afirma o arqueólogo Luis Felipe Freire Dantas, da UFS, que também participa do projeto. “A arqueologia é uma ferramenta política para pensarmos a reparação dos crimes de tráfico de africanos.”

Levantamentos históricos mostram que a costa brasileira está repleta de histórias como a do Camargo, ocultas pela história oficial

Luis Felipe Freire Dantas, arqueólogo

Vários quilombos na costa brasileira, como o de Bracuí, são herdeiros diretos de portos ilegais e fazendas escravagistas. Ainda assim, há pouquíssimos projetos arqueológicos voltados para a exploração dessas áreas.

“Do sul fluminense ao norte de São Paulo, toda essa área era de desembarque ilegal, havia pequenos portos por toda a costa, ligados a fazendas de café da região”, explicou a historiadora Hebe Mattos, da UFF.

“Eram locais de recuperação e engorda de escravizados para revenda. Havia também cemitérios de pretos novos. Ou seja, existe também ai toda uma arqueologia terrestre que nunca foi feita. Por isso temos tantos quilombos na costa.”

Segundo Hebe Mattos, os quilombolas são os grandes “guardiões da memória” do tráfico ilegal de gente.

“É um processo altamente esquecido, com pouquíssimos registros, pouca literatura”, disse. “Isso vai sendo apagado da memória brasileira.”

Em sua trilogia Escravidão, o jornalista Laurentino Gomes demonstra que o Brasil foi, de longe, o principal destino de traficantes de gente. De um total de 12,5 milhões de africanos embarcados para a América, estima-se que praticamente a metade, 5,8 milhões, tenha vindo para o Brasil. O País foi o último a abolir a escravidão, em 1888.

“Entre 1831, ano em que o tráfico foi declarado legalmente proibido, e 1835 entraram clandestinamente no Brasil cerca de 83 mil africanos escravizados. Era só o começo de uma atividade criminosa que se expandiria de forma assustadora nos anos seguintes”, escreveu Laurentino, no terceiro volume de sua obra.

“Entre 1836 e 1840 foram transplantados mais 255 mil escravos, o triplo do período anterior. Outros 400 mil chegariam até 1850, ano da Lei Eusébio de Queiróz, que, pela segunda e definitiva vez, proibiu o tráfico. No total, cerca de 740 mil pessoas contrabandeadas no curto intervalo de duas décadas, sob o olhar cúmplice da polícia e das mais altas autoridades do Império. Entre os anos de 1841 e 1850, nada menos que 88% dos africanos embarcados em navios negreiros para a América tiveram como destino o Brasil.”

Caso exemplar

O caso do Camargo é exemplar por algumas razões.

Primeiramente, imagina-se que tenha sido um dos últimos naufrágios de navio escravagista na costa brasileira. Além disso, trata-se de um naufrágio bem documentado pela imprensa. A partir da Lei Eusébio de Queiróz, com a ilegalidade do tráfico, a movimentação dos navios escravagistas deixou de ter registro oficial. Como o caso do Camargo foi excepcional, atraiu a atenção da imprensa.

Imagina-se que tenha sido um dos últimos naufrágios de navio escravagista na costa brasileira Foto: Yuri Sanada

“O caso do Camargo é muito simbólico, porque, como ele foi incendiado e afundado, foi amplamente reconhecido pela imprensa e pela polícia, embora a Marinha não tenha conseguido apreender o navio”, explicou a historiadora Hebe Mattos.

O caso do Camargo é muito simbólico, porque, como ele foi incendiado e afundado, foi amplamente reconhecido pela imprensa e pela polícia

Hebe Mattos, historiadora

Outro ponto importante é que se tratava de um navio de bandeira americana, com um capitão americano, que havia sido roubado nos EUA e levado para Moçambique.

Tão logo desembarcou os primeiros moçambicanos na costa brasileira, Nathaniel Gordon tratou de botar fogo na embarcação e afundá-la quando se viu perseguido pela Marinha brasileira. Ainda assim, o capitão conseguiu escapar – diferentemente de alguns de seus subordinados que foram presos.

“As embarcações americanas tinham muitas vantagens para o tráfico, pois, embora menores, eram mais velozes, conseguiam despistar perseguidores, além de economizar tempo nas viagens, com uma economia essencial de água e suprimentos”, explicou Gilson Rambelli.

“Do ponto de vista político, o pavilhão americano permitia privilégios, como a não permissão de vistoria a bordo, eliminando o perigo de serem presos pelos ingleses.”

Disfarçado de mulher, Gordon voltou para os Estados Unidos. Desta vez, no entanto, não deu tanta sorte. Em seu país de origem, foi preso por pirataria e enforcado em 1862. Com isso, entrou para a história como o único americano enforcado por tráfico. Até então, ninguém jamais tinha sido punido nos EUA por esse crime, mas o governo de Abraham Lincoln estava disposto a mudar isso.

Filmagem

A trama rocambolesca não passou despercebida. Tanto é que todo o trabalho é acompanhado por uma equipe de cinegrafistas e mergulhadores da Aventura Produções, produtora que acompanha as pesquisas para fazer um documentário e, posteriormente, um filme de ficção.

“O capitão Gordon é um personagem importante tanto para o Brasil quanto para os Estados Unidos”, afirmou o documentarista e mergulhador Yuri Sanada. “Há mais de dez anos tenho vontade de contar essa história, de fazer um filme sobre o último navio negreiro a aportar no Brasil e o único traficante de escravos condenado e enforcado.”

A ideia dos especialistas é documentar tudo o que for encontrado no fundo da baía, mas não tirar nada do lugar. O sítio seria transformado em uma área de atração turística e acadêmica e um símbolo do tráfico humano e da tortura. A comunidade local também ganharia um meio de subsistência.

Por isso, descendentes diretos dos escravizados vindos no Camargo e em outros navios escravagistas que aportaram na região, os moradores do quilombo Santa Rita do Bracuí colaboram com os pesquisadores. Eles acreditam que a descoberta de uma prova irrefutável de um crime contra a humanidade pode ajudá-los a preservar sua identidade e divulgar sua história, além de garantir a posse definitiva das terras.

“A história do quilombo é mais antiga do que a vinda do Camargo. Muito antes disso já havia a fazenda (Santa Rita) e muitos escravos”, contou a líder quilombola Marilda de Souza Francisco. “O dono dessa fazenda era José de Souza Breves, um grande escravagista, que trazia escravos para a sua fazenda, mas também para outras da região.”

Estrategicamente localizada na costa, a fazenda Santa Rita servia como uma espécie de entreposto. Muitos escravizados desembarcados ali passavam a noite na fazenda e depois seguiam viagem. Curiosamente, Breves deixou a fazenda em testamento para os moradores da época, mas, até hoje, os quilombolas não têm a posse da terra, embora o quilombo já tenha sido reconhecido (em 1999) e certificado (em 2011). No terreno há ainda ruinas de um alambique, de uma capela e de um cemitério.

“O potencial do lugar é similar ou até mesmo maior que o do Cais do Valongo”, comparou a historiadora Hebe Mattos, se referindo ao porto no centro do Rio de Janeiro, por onde entrou uma grande quantidade de escravizados no País.

“O trabalho tem uma função social, e também política, porque tem um protagonismo afrocentrado”, explicou o arqueólogo Julio César da Silva Martins, também da UFS, integrante do projeto. “E isso é fundamental porque os brancos não alcançam alguns lugares das questões relacionadas aos quilombos.”

Nós vemos o Bracuí como um celeiro histórico desse período de exploração escravocrata

Emerson Luis Ramos, líder quilombola

“Nós vemos o Bracuí como um celeiro histórico desse período de exploração escravocrata”, afirmou o líder quilombola Emerson Luis Ramos. “Agora, com essa pesquisa, buscamos reafirmar a nossa história oral com dados históricos e documentação. A comunidade tem uma história oral muito rica, mas para validar essa dívida histórica, da titularidade do território quilombola, ainda mais num País racista, a pesquisa é muito importante. Queremos mostrar para os mais jovens que é possível viver no território, amar essa terra e defender essa terra.”

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