Descendentes na Bahia se mobilizam para trazer de Harvard crânio de escravo da Revolta dos Malês


Universidade americana guarda há mais de 180 anos cabeça de africano que se rebelou na Bahia

Por Clarissa Pacheco
Atualização:

Um golpe de mosquete colocou fim, em algum momento do histórico 25 de janeiro de 1835, à vida de um homem africano traficado para a Bahia para servir como escravo. Ferido no combate corpo a corpo que marcou a Revolta dos Malês, rebelião liderada por mulçumanos das mais importantes da história do Brasil, ele foi levado ao Hospício de Jerusalém, em Salvador, onde morreu. A história não sabe o nome deste homem, nem o que aconteceu com o corpo dele, embora se suponha que tenha sido sepultado em uma cova comum no Campo da Pólvora, onde outros rebeldes, indigentes e escravos eram enterrados. Já a cabeça foi parar longe: em uma coleção de 150 cabeças humanas, separadas por raça e nação, usadas por alunos de medicina da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos.

Se os documentos que tratam da chegada da cabeça ao país estiverem corretos, estima-se que a relíquia macabra tenha desembarcado na América em 1836. Mas, se depender dos descendentes espirituais do rebelde, ela não ficará em Harvard por mais muito tempo. Na Bahia, a comunidade muçulmana e nigeriana está disposta a brigar para repatriar os restos humanos do homem e lhe conceder um ritual fúnebre apropriado. É o que diz Misbah Akkani, nigeriano muçulmano e iorubá – assim como, provavelmente, o dono do crânio – que hoje integra a representação da Embaixada da Nigéria na Bahia.

“É de suma importância para nós tirar esse crânio de lá e trazer para Bahia, porque a importância dele é aqui no Brasil, onde ele vivia, onde ele foi morto de forma injusta. É importante para provar que aquilo aconteceu aqui, no Campo da Pólvora, onde hoje tem um fórum de Justiça, e onde foram cometidas muitas injustiças contra essas pessoas que simplesmente estavam lutando pelo seu direito de existir”, afirma Akkani.

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Naquele 25 de janeiro de 1835, centenas de escravos e libertos percorreram as ruas de Salvador convencendo outros a se rebelarem contra a escravidão e a imposição do catolicismo. Perderam, mas o medo de que outro levante de escravos acontecesse correu o Brasil.

"Livrinho Malê" encontrado no corpo de um dos rebeldes mortos na revolta. Foto: Acervo do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB)

Comitê na universidade

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Até pouco tempo, os descendentes do negro malê – palavra que, em iorubá, significa muçulmano – não sabiam da existência do crânio ou, pelo menos, não faziam ideia de que ela não estava junto com o corpo de um dos rebeldes do movimento de 1835. O interesse veio à tona após se descobrir que a própria Universidade de Harvard, em resposta a acusações de racismo e colonialismo, decidiu instaurar um comitê para estudar a possibilidade de devolver restos humanos de indígenas e africanos provavelmente escravizados ainda custodiados em suas dependências.

Em janeiro do ano passado, o presidente da Universidade de Harvard, Lawrence Bacow, publicou uma carta em que reconhece o atraso na identificação dos restos humanos de mais de 22 mil nativos americanos que fazem parte do acervo de dois museus da universidade – o Peabody e o Warren –, pede desculpas pelo passado escravista da instituição e dá prioridade à identificação e repatriação dos restos humanos de 15 indivíduos de ascendência africana que ainda estavam vivos em período avançado da escravidão americana. “Esses indivíduos representam um capítulo da nossa história que devemos enfrentar”, escreveu.

Já em junho deste ano, o The Harvard Crimson, jornal estudantil da própria universidade, publicou que um relatório preliminar do comitê identificou, além dessas 15 pessoas, os restos de mais quatro escravizados no Caribe e no Brasil. O homem apontado como um dos rebeldes da Revolta dos Malês, em Salvador, é um deles.

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Procurada, contudo, a universidade disse que não iria se pronunciar até a conclusão do relatório final do comitê, previsto para ser publicado ainda este ano. Nesta quarta-feira, após a publicação da reportagem, um dos pesquisadores consultados enviou o relatório com recomendações, assinado pelo comitê e pelo presidente de Harvard. As recomendações para os restos mortais dos 19 escravizados é de que a universidade procure as comunidades de origem ou os descendentes de linhagem para que sejam feitos “enterro, reintervenção, retorno às comunidades descendentes ou repatriação dos restos mortais”. Não há prazo para que isso aconteça.

Para o historiador João José Reis, que já foi professor visitante em Harvard, esta é a uma oportunidade para a universidade reconhecer seu passado escravista. “Mas isso dependerá de os dirigentes de Harvard se guiarem pelo compromisso por eles assumido de reparar de diversas formas o envolvimento – que não foi pouco – da instituição com a escravidão e o racismo no passado. Essa é a hora de demonstrarem que estão falando sério e não apenas blefando”, diz Reis.

Da Bahia para Harvard

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A cabeça do rebelde malê, hoje custodiada no Peabody Museum de Harvard, chegou aos Estados Unidos como um presente. O advogado norte-americano Gideon T. Snow, que morou por alguns anos em Salvador, enviou a cabeça “lindamente preparada”, como chamou na época, ao médico J. C. Howard, da Sociedade para o Aperfeiçoamento Médico de Boston, já no ano seguinte à Revolta dos Malês, que aconteceu em 1835.

A cabeça do homem de nome desconhecido pertenceu por anos à coleção pessoal de J. C. Howard, até que foi comprada pelo professor John Collins Warren e transferida, com todo o acervo do médico, para a Universidade de Harvard em 1847, e lá ficou.

Como Snow teve acesso à cabeça é um tanto nebuloso, mas há pistas. De acordo com o historiador Christopher Willoughby, que estuda escravidão atlântica, medicina americana e racismo, e atualmente é pesquisador visitante em Harvard, a tradição de coleta de crânios para estudos raciais começou no Iluminismo, mas ganhou novos contornos no século 19, com as rotas comerciais, o colonialismo e a escravidão.

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“De um modo geral, os crânios da coleção de ‘crânios nacionais’ em Harvard foram obtidos por meio de diplomatas, oficiais militares e agentes comerciais em outros países. Muitas vezes, essas pessoas também eram médicos treinados e, portanto, faziam parte de redes sociais e profissionais médicas maiores. Eles enviavam o crânio para um professor ou instituição em uma grande cidade como Harvard. Assim, crânios racializados foram transmitidos pelas rotas comerciais dos impérios e redes comerciais”, destaca Willoghby, antecipando um capítulo de seu próximo livro, Masters of Health: Racial Science and Slavery in U.S. Medical Schools, que será lançado em novembro.

Líder de rua

A informação de que uma das cabeças pertencentes ao Peabody Museum de Harvard é de um homem morto na Revolta dos Malês de 1835 consta no catálogo da coleção da Sociedade para o Aperfeiçoamento Médico de Boston, onde ela chegou, originalmente. No livro que está para ser lançado, o historiador Christopher Willoughby explica que, junto com a cabeça, chegou uma nota escrita por Gideon T. Snow, na qual dizia que o dono dela “era um verdadeiro africano da tribo Nagô” e “um dos chefes” da rebelião. Nagôs era como se chamavam os iorubás na Bahia, principais protagonistas da revolta.

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Mas essa informação pode não ser verdadeira. Segundo Snow, o dono da cabeça “foi morto depois de uma disputa muito desesperada, sendo a coragem desta tribo totalmente igual à sua força hercúlea”. Para João José Reis, a afirmação de que o homem era um líder pode, na verdade, ser uma estratégia para valorizar a relíquia.

“O número de rebeldes se contava às centenas, de modo que não se pode considerar todos os mortos, ou ‘ativos’, como líderes. É possível que o morto em pauta fosse um combatente comum, não descartando que pudesse ser um líder na luta de rua. Não seria, no entanto, um alufá, os mentores intelectuais e líderes muçulmanos de 1835″, alerta João Reis.

Além disso, a despeito dos mais de 70 mortos entre os rebeldes, os alufás receberam punições variadas, desde a prisão até chicotadas para os escravizados. Do total, 16 pessoas foram condenadas à morte e quatro foram efetivamente executadas, mas nenhuma delas era cabeça do movimento.

“Foram escolhidos para uma punição exemplar alguns contra quem havia provas contundentes de terem feito a guerra em 1835, esse foi o critério. Estes e os rebeldes que perderam a vida durante o levante foram enterrados no cemitério do Campo da Pólvora, administrado pela Santa Casa, ao lado de onde ficava o patíbulo, administrado pela Santa Casa”, afirma o historiador.

“Nesse cemitério, os cadáveres eram enterrados em covas comuns e sem cerimônia religiosa. Esse teria sido o destino do cadáver cujo crânio foi parar em Harvard. É possível que o ladrão de cova o tivesse escavado do Campo da Pólvora e criado a história de se tratar de um líder ‘militar’ – que até podia ser – para valorizar o macabro botim”, completa.

Exposição pública

Para Christopher Willoughby, dos muitos crânios que ficaram por anos à disposição dos estudantes de Medicina de Harvard, são poucos aqueles em que é possível recuperar a história de seus donos. Mas é seguro supor, diz um trecho do capítulo do livro dedicado aos casos do negro malê e de um nativo sul-africano, que a maioria deles não desejasse ter suas cabeças expostas –, o que não impediu que seus restos mortais fossem usados para traçar, nas escolas de medicina e fora delas, uma narrativa de supremacia branca.

Por anos, além dos crânios, era comum nos Estados Unidos haver exposições públicas de africanos, indígenas e até crianças com deficiência – vivas. Até uma dissecação pública atraiu pagantes em Nova York. “Em 1836, o professor de cirurgia da Universidade de Columbia, David Rogers, conduziu a dissecação pública de uma mulher anteriormente escravizada, Joice Heth. Mais de mil nova-iorquinos pagaram para vê-la dissecada para avaliar as falsas alegações do (showman) P.T Barnum de que ela tinha 161 anos e tinha sido ama de leite de George Washington”, conta Willoughby.

Tudo isso contribuía para a narrativa de que os africanos, indígenas ou nativos de outros lugares, que não da Europa ou dos Estados Unidos, eram inferiores e até animalescos. O caso do negro malê cuja cabeça foi parar em Harvard é incomum, tanto pela quantidade de informações sobre as atividades dele, quanto pelo apreço que se tinha a ele.

Para o historiador Carlos Silva Jr., professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), a história em torno do dono da cabeça certamente elevou o interesse nele. “O fato de você ter uma pessoa que faleceu tendo participado de um movimento tão impactante e que causou tanto sobressalto na sociedade baiana, mas que ficou conhecido até mesmo em outras partes do mundo, deve ter criado um interesse ainda maior”, diz.

Legislação

Enquanto o comitê designado em Harvard para dar um destino digno aos restos não define o que será de fato feito, pesquisadores e descendentes espirituais do homem malê esperam poder conceder ao ancestral – seja ele um líder da revolta ou mais um entre as centenas de rebeldes da época – um enterro digno.

Na década de 1990, o Congresso dos Estados Unidos aprovou uma lei federal batizada de Native American Graves Protection and Repatriation Act (NAGPRA). A lei prevê a repatriação de restos humanos nativos americanos, objetos funerários, objetos sagrados e objetos do patrimônio cultural. A esperança é que o próprio NAGPRA possa servir de precedente para a repatriação do homem escravizado no Brasil.

Líder do Centro Cultural Islâmico da Bahia, o Sheikh Ahmad Abdul Hameed explica que, uma vez confirmado que o dono do crânio é muçulmano, deverá ser feito um ritual fúnebre islâmico, seguido de um sepultamento. “A cabeça não pode ficar exposta”, destaca o líder religioso, que acrescenta não ter recursos para o traslado. “Esperamos que a Universidade de Harvard financie todos os custos”, disse.

Martine Jean, historiadora pública e fundadora do projeto Ipsavero Consulting, afirma que as pessoas deveriam receber enterros adequados para que possam descansar em paz. “Não são artefatos. São seres humanos que foram objetificados e mercantilizados para servir às necessidades racistas das instituições, sendo a Universidade de Harvard uma das muitas”, afirma ela, que já foi pesquisadora visitante em Harvard.

Christopher Willoughby é otimista quanto à repatriação: “Harvard pode se sentir pressionada a agir, a fim de acompanhar seus pares. Especificamente, o Penn Museum da Universidade da Pensilvânia anunciou sua intenção de repatriar uma coleção gigante de crânios do século 19”, diz.

Para Carlos Silva Jr., não há dúvidas de que o crânio deve ser repatriado, ou para a Nigéria ou para a Bahia. Mas ele não acredita que o processo seja tão simples. “Acho que é preciso uma grande mobilização para garantir que a Universidade de Harvard devolva os restos mortais. Isso deve acontecer não apenas com o crânio dessa pessoa específica, mas com todos esses restos humanos que as universidades guardam, sejam de africanos, sejam de populações indígenas. Não é mais aceitável que mantenhamos essas exposições de corpos humanos”, afirma.

Um golpe de mosquete colocou fim, em algum momento do histórico 25 de janeiro de 1835, à vida de um homem africano traficado para a Bahia para servir como escravo. Ferido no combate corpo a corpo que marcou a Revolta dos Malês, rebelião liderada por mulçumanos das mais importantes da história do Brasil, ele foi levado ao Hospício de Jerusalém, em Salvador, onde morreu. A história não sabe o nome deste homem, nem o que aconteceu com o corpo dele, embora se suponha que tenha sido sepultado em uma cova comum no Campo da Pólvora, onde outros rebeldes, indigentes e escravos eram enterrados. Já a cabeça foi parar longe: em uma coleção de 150 cabeças humanas, separadas por raça e nação, usadas por alunos de medicina da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos.

Se os documentos que tratam da chegada da cabeça ao país estiverem corretos, estima-se que a relíquia macabra tenha desembarcado na América em 1836. Mas, se depender dos descendentes espirituais do rebelde, ela não ficará em Harvard por mais muito tempo. Na Bahia, a comunidade muçulmana e nigeriana está disposta a brigar para repatriar os restos humanos do homem e lhe conceder um ritual fúnebre apropriado. É o que diz Misbah Akkani, nigeriano muçulmano e iorubá – assim como, provavelmente, o dono do crânio – que hoje integra a representação da Embaixada da Nigéria na Bahia.

“É de suma importância para nós tirar esse crânio de lá e trazer para Bahia, porque a importância dele é aqui no Brasil, onde ele vivia, onde ele foi morto de forma injusta. É importante para provar que aquilo aconteceu aqui, no Campo da Pólvora, onde hoje tem um fórum de Justiça, e onde foram cometidas muitas injustiças contra essas pessoas que simplesmente estavam lutando pelo seu direito de existir”, afirma Akkani.

Naquele 25 de janeiro de 1835, centenas de escravos e libertos percorreram as ruas de Salvador convencendo outros a se rebelarem contra a escravidão e a imposição do catolicismo. Perderam, mas o medo de que outro levante de escravos acontecesse correu o Brasil.

"Livrinho Malê" encontrado no corpo de um dos rebeldes mortos na revolta. Foto: Acervo do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB)

Comitê na universidade

Até pouco tempo, os descendentes do negro malê – palavra que, em iorubá, significa muçulmano – não sabiam da existência do crânio ou, pelo menos, não faziam ideia de que ela não estava junto com o corpo de um dos rebeldes do movimento de 1835. O interesse veio à tona após se descobrir que a própria Universidade de Harvard, em resposta a acusações de racismo e colonialismo, decidiu instaurar um comitê para estudar a possibilidade de devolver restos humanos de indígenas e africanos provavelmente escravizados ainda custodiados em suas dependências.

Em janeiro do ano passado, o presidente da Universidade de Harvard, Lawrence Bacow, publicou uma carta em que reconhece o atraso na identificação dos restos humanos de mais de 22 mil nativos americanos que fazem parte do acervo de dois museus da universidade – o Peabody e o Warren –, pede desculpas pelo passado escravista da instituição e dá prioridade à identificação e repatriação dos restos humanos de 15 indivíduos de ascendência africana que ainda estavam vivos em período avançado da escravidão americana. “Esses indivíduos representam um capítulo da nossa história que devemos enfrentar”, escreveu.

Já em junho deste ano, o The Harvard Crimson, jornal estudantil da própria universidade, publicou que um relatório preliminar do comitê identificou, além dessas 15 pessoas, os restos de mais quatro escravizados no Caribe e no Brasil. O homem apontado como um dos rebeldes da Revolta dos Malês, em Salvador, é um deles.

Procurada, contudo, a universidade disse que não iria se pronunciar até a conclusão do relatório final do comitê, previsto para ser publicado ainda este ano. Nesta quarta-feira, após a publicação da reportagem, um dos pesquisadores consultados enviou o relatório com recomendações, assinado pelo comitê e pelo presidente de Harvard. As recomendações para os restos mortais dos 19 escravizados é de que a universidade procure as comunidades de origem ou os descendentes de linhagem para que sejam feitos “enterro, reintervenção, retorno às comunidades descendentes ou repatriação dos restos mortais”. Não há prazo para que isso aconteça.

Para o historiador João José Reis, que já foi professor visitante em Harvard, esta é a uma oportunidade para a universidade reconhecer seu passado escravista. “Mas isso dependerá de os dirigentes de Harvard se guiarem pelo compromisso por eles assumido de reparar de diversas formas o envolvimento – que não foi pouco – da instituição com a escravidão e o racismo no passado. Essa é a hora de demonstrarem que estão falando sério e não apenas blefando”, diz Reis.

Da Bahia para Harvard

A cabeça do rebelde malê, hoje custodiada no Peabody Museum de Harvard, chegou aos Estados Unidos como um presente. O advogado norte-americano Gideon T. Snow, que morou por alguns anos em Salvador, enviou a cabeça “lindamente preparada”, como chamou na época, ao médico J. C. Howard, da Sociedade para o Aperfeiçoamento Médico de Boston, já no ano seguinte à Revolta dos Malês, que aconteceu em 1835.

A cabeça do homem de nome desconhecido pertenceu por anos à coleção pessoal de J. C. Howard, até que foi comprada pelo professor John Collins Warren e transferida, com todo o acervo do médico, para a Universidade de Harvard em 1847, e lá ficou.

Como Snow teve acesso à cabeça é um tanto nebuloso, mas há pistas. De acordo com o historiador Christopher Willoughby, que estuda escravidão atlântica, medicina americana e racismo, e atualmente é pesquisador visitante em Harvard, a tradição de coleta de crânios para estudos raciais começou no Iluminismo, mas ganhou novos contornos no século 19, com as rotas comerciais, o colonialismo e a escravidão.

“De um modo geral, os crânios da coleção de ‘crânios nacionais’ em Harvard foram obtidos por meio de diplomatas, oficiais militares e agentes comerciais em outros países. Muitas vezes, essas pessoas também eram médicos treinados e, portanto, faziam parte de redes sociais e profissionais médicas maiores. Eles enviavam o crânio para um professor ou instituição em uma grande cidade como Harvard. Assim, crânios racializados foram transmitidos pelas rotas comerciais dos impérios e redes comerciais”, destaca Willoghby, antecipando um capítulo de seu próximo livro, Masters of Health: Racial Science and Slavery in U.S. Medical Schools, que será lançado em novembro.

Líder de rua

A informação de que uma das cabeças pertencentes ao Peabody Museum de Harvard é de um homem morto na Revolta dos Malês de 1835 consta no catálogo da coleção da Sociedade para o Aperfeiçoamento Médico de Boston, onde ela chegou, originalmente. No livro que está para ser lançado, o historiador Christopher Willoughby explica que, junto com a cabeça, chegou uma nota escrita por Gideon T. Snow, na qual dizia que o dono dela “era um verdadeiro africano da tribo Nagô” e “um dos chefes” da rebelião. Nagôs era como se chamavam os iorubás na Bahia, principais protagonistas da revolta.

Mas essa informação pode não ser verdadeira. Segundo Snow, o dono da cabeça “foi morto depois de uma disputa muito desesperada, sendo a coragem desta tribo totalmente igual à sua força hercúlea”. Para João José Reis, a afirmação de que o homem era um líder pode, na verdade, ser uma estratégia para valorizar a relíquia.

“O número de rebeldes se contava às centenas, de modo que não se pode considerar todos os mortos, ou ‘ativos’, como líderes. É possível que o morto em pauta fosse um combatente comum, não descartando que pudesse ser um líder na luta de rua. Não seria, no entanto, um alufá, os mentores intelectuais e líderes muçulmanos de 1835″, alerta João Reis.

Além disso, a despeito dos mais de 70 mortos entre os rebeldes, os alufás receberam punições variadas, desde a prisão até chicotadas para os escravizados. Do total, 16 pessoas foram condenadas à morte e quatro foram efetivamente executadas, mas nenhuma delas era cabeça do movimento.

“Foram escolhidos para uma punição exemplar alguns contra quem havia provas contundentes de terem feito a guerra em 1835, esse foi o critério. Estes e os rebeldes que perderam a vida durante o levante foram enterrados no cemitério do Campo da Pólvora, administrado pela Santa Casa, ao lado de onde ficava o patíbulo, administrado pela Santa Casa”, afirma o historiador.

“Nesse cemitério, os cadáveres eram enterrados em covas comuns e sem cerimônia religiosa. Esse teria sido o destino do cadáver cujo crânio foi parar em Harvard. É possível que o ladrão de cova o tivesse escavado do Campo da Pólvora e criado a história de se tratar de um líder ‘militar’ – que até podia ser – para valorizar o macabro botim”, completa.

Exposição pública

Para Christopher Willoughby, dos muitos crânios que ficaram por anos à disposição dos estudantes de Medicina de Harvard, são poucos aqueles em que é possível recuperar a história de seus donos. Mas é seguro supor, diz um trecho do capítulo do livro dedicado aos casos do negro malê e de um nativo sul-africano, que a maioria deles não desejasse ter suas cabeças expostas –, o que não impediu que seus restos mortais fossem usados para traçar, nas escolas de medicina e fora delas, uma narrativa de supremacia branca.

Por anos, além dos crânios, era comum nos Estados Unidos haver exposições públicas de africanos, indígenas e até crianças com deficiência – vivas. Até uma dissecação pública atraiu pagantes em Nova York. “Em 1836, o professor de cirurgia da Universidade de Columbia, David Rogers, conduziu a dissecação pública de uma mulher anteriormente escravizada, Joice Heth. Mais de mil nova-iorquinos pagaram para vê-la dissecada para avaliar as falsas alegações do (showman) P.T Barnum de que ela tinha 161 anos e tinha sido ama de leite de George Washington”, conta Willoughby.

Tudo isso contribuía para a narrativa de que os africanos, indígenas ou nativos de outros lugares, que não da Europa ou dos Estados Unidos, eram inferiores e até animalescos. O caso do negro malê cuja cabeça foi parar em Harvard é incomum, tanto pela quantidade de informações sobre as atividades dele, quanto pelo apreço que se tinha a ele.

Para o historiador Carlos Silva Jr., professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), a história em torno do dono da cabeça certamente elevou o interesse nele. “O fato de você ter uma pessoa que faleceu tendo participado de um movimento tão impactante e que causou tanto sobressalto na sociedade baiana, mas que ficou conhecido até mesmo em outras partes do mundo, deve ter criado um interesse ainda maior”, diz.

Legislação

Enquanto o comitê designado em Harvard para dar um destino digno aos restos não define o que será de fato feito, pesquisadores e descendentes espirituais do homem malê esperam poder conceder ao ancestral – seja ele um líder da revolta ou mais um entre as centenas de rebeldes da época – um enterro digno.

Na década de 1990, o Congresso dos Estados Unidos aprovou uma lei federal batizada de Native American Graves Protection and Repatriation Act (NAGPRA). A lei prevê a repatriação de restos humanos nativos americanos, objetos funerários, objetos sagrados e objetos do patrimônio cultural. A esperança é que o próprio NAGPRA possa servir de precedente para a repatriação do homem escravizado no Brasil.

Líder do Centro Cultural Islâmico da Bahia, o Sheikh Ahmad Abdul Hameed explica que, uma vez confirmado que o dono do crânio é muçulmano, deverá ser feito um ritual fúnebre islâmico, seguido de um sepultamento. “A cabeça não pode ficar exposta”, destaca o líder religioso, que acrescenta não ter recursos para o traslado. “Esperamos que a Universidade de Harvard financie todos os custos”, disse.

Martine Jean, historiadora pública e fundadora do projeto Ipsavero Consulting, afirma que as pessoas deveriam receber enterros adequados para que possam descansar em paz. “Não são artefatos. São seres humanos que foram objetificados e mercantilizados para servir às necessidades racistas das instituições, sendo a Universidade de Harvard uma das muitas”, afirma ela, que já foi pesquisadora visitante em Harvard.

Christopher Willoughby é otimista quanto à repatriação: “Harvard pode se sentir pressionada a agir, a fim de acompanhar seus pares. Especificamente, o Penn Museum da Universidade da Pensilvânia anunciou sua intenção de repatriar uma coleção gigante de crânios do século 19”, diz.

Para Carlos Silva Jr., não há dúvidas de que o crânio deve ser repatriado, ou para a Nigéria ou para a Bahia. Mas ele não acredita que o processo seja tão simples. “Acho que é preciso uma grande mobilização para garantir que a Universidade de Harvard devolva os restos mortais. Isso deve acontecer não apenas com o crânio dessa pessoa específica, mas com todos esses restos humanos que as universidades guardam, sejam de africanos, sejam de populações indígenas. Não é mais aceitável que mantenhamos essas exposições de corpos humanos”, afirma.

Um golpe de mosquete colocou fim, em algum momento do histórico 25 de janeiro de 1835, à vida de um homem africano traficado para a Bahia para servir como escravo. Ferido no combate corpo a corpo que marcou a Revolta dos Malês, rebelião liderada por mulçumanos das mais importantes da história do Brasil, ele foi levado ao Hospício de Jerusalém, em Salvador, onde morreu. A história não sabe o nome deste homem, nem o que aconteceu com o corpo dele, embora se suponha que tenha sido sepultado em uma cova comum no Campo da Pólvora, onde outros rebeldes, indigentes e escravos eram enterrados. Já a cabeça foi parar longe: em uma coleção de 150 cabeças humanas, separadas por raça e nação, usadas por alunos de medicina da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos.

Se os documentos que tratam da chegada da cabeça ao país estiverem corretos, estima-se que a relíquia macabra tenha desembarcado na América em 1836. Mas, se depender dos descendentes espirituais do rebelde, ela não ficará em Harvard por mais muito tempo. Na Bahia, a comunidade muçulmana e nigeriana está disposta a brigar para repatriar os restos humanos do homem e lhe conceder um ritual fúnebre apropriado. É o que diz Misbah Akkani, nigeriano muçulmano e iorubá – assim como, provavelmente, o dono do crânio – que hoje integra a representação da Embaixada da Nigéria na Bahia.

“É de suma importância para nós tirar esse crânio de lá e trazer para Bahia, porque a importância dele é aqui no Brasil, onde ele vivia, onde ele foi morto de forma injusta. É importante para provar que aquilo aconteceu aqui, no Campo da Pólvora, onde hoje tem um fórum de Justiça, e onde foram cometidas muitas injustiças contra essas pessoas que simplesmente estavam lutando pelo seu direito de existir”, afirma Akkani.

Naquele 25 de janeiro de 1835, centenas de escravos e libertos percorreram as ruas de Salvador convencendo outros a se rebelarem contra a escravidão e a imposição do catolicismo. Perderam, mas o medo de que outro levante de escravos acontecesse correu o Brasil.

"Livrinho Malê" encontrado no corpo de um dos rebeldes mortos na revolta. Foto: Acervo do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB)

Comitê na universidade

Até pouco tempo, os descendentes do negro malê – palavra que, em iorubá, significa muçulmano – não sabiam da existência do crânio ou, pelo menos, não faziam ideia de que ela não estava junto com o corpo de um dos rebeldes do movimento de 1835. O interesse veio à tona após se descobrir que a própria Universidade de Harvard, em resposta a acusações de racismo e colonialismo, decidiu instaurar um comitê para estudar a possibilidade de devolver restos humanos de indígenas e africanos provavelmente escravizados ainda custodiados em suas dependências.

Em janeiro do ano passado, o presidente da Universidade de Harvard, Lawrence Bacow, publicou uma carta em que reconhece o atraso na identificação dos restos humanos de mais de 22 mil nativos americanos que fazem parte do acervo de dois museus da universidade – o Peabody e o Warren –, pede desculpas pelo passado escravista da instituição e dá prioridade à identificação e repatriação dos restos humanos de 15 indivíduos de ascendência africana que ainda estavam vivos em período avançado da escravidão americana. “Esses indivíduos representam um capítulo da nossa história que devemos enfrentar”, escreveu.

Já em junho deste ano, o The Harvard Crimson, jornal estudantil da própria universidade, publicou que um relatório preliminar do comitê identificou, além dessas 15 pessoas, os restos de mais quatro escravizados no Caribe e no Brasil. O homem apontado como um dos rebeldes da Revolta dos Malês, em Salvador, é um deles.

Procurada, contudo, a universidade disse que não iria se pronunciar até a conclusão do relatório final do comitê, previsto para ser publicado ainda este ano. Nesta quarta-feira, após a publicação da reportagem, um dos pesquisadores consultados enviou o relatório com recomendações, assinado pelo comitê e pelo presidente de Harvard. As recomendações para os restos mortais dos 19 escravizados é de que a universidade procure as comunidades de origem ou os descendentes de linhagem para que sejam feitos “enterro, reintervenção, retorno às comunidades descendentes ou repatriação dos restos mortais”. Não há prazo para que isso aconteça.

Para o historiador João José Reis, que já foi professor visitante em Harvard, esta é a uma oportunidade para a universidade reconhecer seu passado escravista. “Mas isso dependerá de os dirigentes de Harvard se guiarem pelo compromisso por eles assumido de reparar de diversas formas o envolvimento – que não foi pouco – da instituição com a escravidão e o racismo no passado. Essa é a hora de demonstrarem que estão falando sério e não apenas blefando”, diz Reis.

Da Bahia para Harvard

A cabeça do rebelde malê, hoje custodiada no Peabody Museum de Harvard, chegou aos Estados Unidos como um presente. O advogado norte-americano Gideon T. Snow, que morou por alguns anos em Salvador, enviou a cabeça “lindamente preparada”, como chamou na época, ao médico J. C. Howard, da Sociedade para o Aperfeiçoamento Médico de Boston, já no ano seguinte à Revolta dos Malês, que aconteceu em 1835.

A cabeça do homem de nome desconhecido pertenceu por anos à coleção pessoal de J. C. Howard, até que foi comprada pelo professor John Collins Warren e transferida, com todo o acervo do médico, para a Universidade de Harvard em 1847, e lá ficou.

Como Snow teve acesso à cabeça é um tanto nebuloso, mas há pistas. De acordo com o historiador Christopher Willoughby, que estuda escravidão atlântica, medicina americana e racismo, e atualmente é pesquisador visitante em Harvard, a tradição de coleta de crânios para estudos raciais começou no Iluminismo, mas ganhou novos contornos no século 19, com as rotas comerciais, o colonialismo e a escravidão.

“De um modo geral, os crânios da coleção de ‘crânios nacionais’ em Harvard foram obtidos por meio de diplomatas, oficiais militares e agentes comerciais em outros países. Muitas vezes, essas pessoas também eram médicos treinados e, portanto, faziam parte de redes sociais e profissionais médicas maiores. Eles enviavam o crânio para um professor ou instituição em uma grande cidade como Harvard. Assim, crânios racializados foram transmitidos pelas rotas comerciais dos impérios e redes comerciais”, destaca Willoghby, antecipando um capítulo de seu próximo livro, Masters of Health: Racial Science and Slavery in U.S. Medical Schools, que será lançado em novembro.

Líder de rua

A informação de que uma das cabeças pertencentes ao Peabody Museum de Harvard é de um homem morto na Revolta dos Malês de 1835 consta no catálogo da coleção da Sociedade para o Aperfeiçoamento Médico de Boston, onde ela chegou, originalmente. No livro que está para ser lançado, o historiador Christopher Willoughby explica que, junto com a cabeça, chegou uma nota escrita por Gideon T. Snow, na qual dizia que o dono dela “era um verdadeiro africano da tribo Nagô” e “um dos chefes” da rebelião. Nagôs era como se chamavam os iorubás na Bahia, principais protagonistas da revolta.

Mas essa informação pode não ser verdadeira. Segundo Snow, o dono da cabeça “foi morto depois de uma disputa muito desesperada, sendo a coragem desta tribo totalmente igual à sua força hercúlea”. Para João José Reis, a afirmação de que o homem era um líder pode, na verdade, ser uma estratégia para valorizar a relíquia.

“O número de rebeldes se contava às centenas, de modo que não se pode considerar todos os mortos, ou ‘ativos’, como líderes. É possível que o morto em pauta fosse um combatente comum, não descartando que pudesse ser um líder na luta de rua. Não seria, no entanto, um alufá, os mentores intelectuais e líderes muçulmanos de 1835″, alerta João Reis.

Além disso, a despeito dos mais de 70 mortos entre os rebeldes, os alufás receberam punições variadas, desde a prisão até chicotadas para os escravizados. Do total, 16 pessoas foram condenadas à morte e quatro foram efetivamente executadas, mas nenhuma delas era cabeça do movimento.

“Foram escolhidos para uma punição exemplar alguns contra quem havia provas contundentes de terem feito a guerra em 1835, esse foi o critério. Estes e os rebeldes que perderam a vida durante o levante foram enterrados no cemitério do Campo da Pólvora, administrado pela Santa Casa, ao lado de onde ficava o patíbulo, administrado pela Santa Casa”, afirma o historiador.

“Nesse cemitério, os cadáveres eram enterrados em covas comuns e sem cerimônia religiosa. Esse teria sido o destino do cadáver cujo crânio foi parar em Harvard. É possível que o ladrão de cova o tivesse escavado do Campo da Pólvora e criado a história de se tratar de um líder ‘militar’ – que até podia ser – para valorizar o macabro botim”, completa.

Exposição pública

Para Christopher Willoughby, dos muitos crânios que ficaram por anos à disposição dos estudantes de Medicina de Harvard, são poucos aqueles em que é possível recuperar a história de seus donos. Mas é seguro supor, diz um trecho do capítulo do livro dedicado aos casos do negro malê e de um nativo sul-africano, que a maioria deles não desejasse ter suas cabeças expostas –, o que não impediu que seus restos mortais fossem usados para traçar, nas escolas de medicina e fora delas, uma narrativa de supremacia branca.

Por anos, além dos crânios, era comum nos Estados Unidos haver exposições públicas de africanos, indígenas e até crianças com deficiência – vivas. Até uma dissecação pública atraiu pagantes em Nova York. “Em 1836, o professor de cirurgia da Universidade de Columbia, David Rogers, conduziu a dissecação pública de uma mulher anteriormente escravizada, Joice Heth. Mais de mil nova-iorquinos pagaram para vê-la dissecada para avaliar as falsas alegações do (showman) P.T Barnum de que ela tinha 161 anos e tinha sido ama de leite de George Washington”, conta Willoughby.

Tudo isso contribuía para a narrativa de que os africanos, indígenas ou nativos de outros lugares, que não da Europa ou dos Estados Unidos, eram inferiores e até animalescos. O caso do negro malê cuja cabeça foi parar em Harvard é incomum, tanto pela quantidade de informações sobre as atividades dele, quanto pelo apreço que se tinha a ele.

Para o historiador Carlos Silva Jr., professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), a história em torno do dono da cabeça certamente elevou o interesse nele. “O fato de você ter uma pessoa que faleceu tendo participado de um movimento tão impactante e que causou tanto sobressalto na sociedade baiana, mas que ficou conhecido até mesmo em outras partes do mundo, deve ter criado um interesse ainda maior”, diz.

Legislação

Enquanto o comitê designado em Harvard para dar um destino digno aos restos não define o que será de fato feito, pesquisadores e descendentes espirituais do homem malê esperam poder conceder ao ancestral – seja ele um líder da revolta ou mais um entre as centenas de rebeldes da época – um enterro digno.

Na década de 1990, o Congresso dos Estados Unidos aprovou uma lei federal batizada de Native American Graves Protection and Repatriation Act (NAGPRA). A lei prevê a repatriação de restos humanos nativos americanos, objetos funerários, objetos sagrados e objetos do patrimônio cultural. A esperança é que o próprio NAGPRA possa servir de precedente para a repatriação do homem escravizado no Brasil.

Líder do Centro Cultural Islâmico da Bahia, o Sheikh Ahmad Abdul Hameed explica que, uma vez confirmado que o dono do crânio é muçulmano, deverá ser feito um ritual fúnebre islâmico, seguido de um sepultamento. “A cabeça não pode ficar exposta”, destaca o líder religioso, que acrescenta não ter recursos para o traslado. “Esperamos que a Universidade de Harvard financie todos os custos”, disse.

Martine Jean, historiadora pública e fundadora do projeto Ipsavero Consulting, afirma que as pessoas deveriam receber enterros adequados para que possam descansar em paz. “Não são artefatos. São seres humanos que foram objetificados e mercantilizados para servir às necessidades racistas das instituições, sendo a Universidade de Harvard uma das muitas”, afirma ela, que já foi pesquisadora visitante em Harvard.

Christopher Willoughby é otimista quanto à repatriação: “Harvard pode se sentir pressionada a agir, a fim de acompanhar seus pares. Especificamente, o Penn Museum da Universidade da Pensilvânia anunciou sua intenção de repatriar uma coleção gigante de crânios do século 19”, diz.

Para Carlos Silva Jr., não há dúvidas de que o crânio deve ser repatriado, ou para a Nigéria ou para a Bahia. Mas ele não acredita que o processo seja tão simples. “Acho que é preciso uma grande mobilização para garantir que a Universidade de Harvard devolva os restos mortais. Isso deve acontecer não apenas com o crânio dessa pessoa específica, mas com todos esses restos humanos que as universidades guardam, sejam de africanos, sejam de populações indígenas. Não é mais aceitável que mantenhamos essas exposições de corpos humanos”, afirma.

Um golpe de mosquete colocou fim, em algum momento do histórico 25 de janeiro de 1835, à vida de um homem africano traficado para a Bahia para servir como escravo. Ferido no combate corpo a corpo que marcou a Revolta dos Malês, rebelião liderada por mulçumanos das mais importantes da história do Brasil, ele foi levado ao Hospício de Jerusalém, em Salvador, onde morreu. A história não sabe o nome deste homem, nem o que aconteceu com o corpo dele, embora se suponha que tenha sido sepultado em uma cova comum no Campo da Pólvora, onde outros rebeldes, indigentes e escravos eram enterrados. Já a cabeça foi parar longe: em uma coleção de 150 cabeças humanas, separadas por raça e nação, usadas por alunos de medicina da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos.

Se os documentos que tratam da chegada da cabeça ao país estiverem corretos, estima-se que a relíquia macabra tenha desembarcado na América em 1836. Mas, se depender dos descendentes espirituais do rebelde, ela não ficará em Harvard por mais muito tempo. Na Bahia, a comunidade muçulmana e nigeriana está disposta a brigar para repatriar os restos humanos do homem e lhe conceder um ritual fúnebre apropriado. É o que diz Misbah Akkani, nigeriano muçulmano e iorubá – assim como, provavelmente, o dono do crânio – que hoje integra a representação da Embaixada da Nigéria na Bahia.

“É de suma importância para nós tirar esse crânio de lá e trazer para Bahia, porque a importância dele é aqui no Brasil, onde ele vivia, onde ele foi morto de forma injusta. É importante para provar que aquilo aconteceu aqui, no Campo da Pólvora, onde hoje tem um fórum de Justiça, e onde foram cometidas muitas injustiças contra essas pessoas que simplesmente estavam lutando pelo seu direito de existir”, afirma Akkani.

Naquele 25 de janeiro de 1835, centenas de escravos e libertos percorreram as ruas de Salvador convencendo outros a se rebelarem contra a escravidão e a imposição do catolicismo. Perderam, mas o medo de que outro levante de escravos acontecesse correu o Brasil.

"Livrinho Malê" encontrado no corpo de um dos rebeldes mortos na revolta. Foto: Acervo do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB)

Comitê na universidade

Até pouco tempo, os descendentes do negro malê – palavra que, em iorubá, significa muçulmano – não sabiam da existência do crânio ou, pelo menos, não faziam ideia de que ela não estava junto com o corpo de um dos rebeldes do movimento de 1835. O interesse veio à tona após se descobrir que a própria Universidade de Harvard, em resposta a acusações de racismo e colonialismo, decidiu instaurar um comitê para estudar a possibilidade de devolver restos humanos de indígenas e africanos provavelmente escravizados ainda custodiados em suas dependências.

Em janeiro do ano passado, o presidente da Universidade de Harvard, Lawrence Bacow, publicou uma carta em que reconhece o atraso na identificação dos restos humanos de mais de 22 mil nativos americanos que fazem parte do acervo de dois museus da universidade – o Peabody e o Warren –, pede desculpas pelo passado escravista da instituição e dá prioridade à identificação e repatriação dos restos humanos de 15 indivíduos de ascendência africana que ainda estavam vivos em período avançado da escravidão americana. “Esses indivíduos representam um capítulo da nossa história que devemos enfrentar”, escreveu.

Já em junho deste ano, o The Harvard Crimson, jornal estudantil da própria universidade, publicou que um relatório preliminar do comitê identificou, além dessas 15 pessoas, os restos de mais quatro escravizados no Caribe e no Brasil. O homem apontado como um dos rebeldes da Revolta dos Malês, em Salvador, é um deles.

Procurada, contudo, a universidade disse que não iria se pronunciar até a conclusão do relatório final do comitê, previsto para ser publicado ainda este ano. Nesta quarta-feira, após a publicação da reportagem, um dos pesquisadores consultados enviou o relatório com recomendações, assinado pelo comitê e pelo presidente de Harvard. As recomendações para os restos mortais dos 19 escravizados é de que a universidade procure as comunidades de origem ou os descendentes de linhagem para que sejam feitos “enterro, reintervenção, retorno às comunidades descendentes ou repatriação dos restos mortais”. Não há prazo para que isso aconteça.

Para o historiador João José Reis, que já foi professor visitante em Harvard, esta é a uma oportunidade para a universidade reconhecer seu passado escravista. “Mas isso dependerá de os dirigentes de Harvard se guiarem pelo compromisso por eles assumido de reparar de diversas formas o envolvimento – que não foi pouco – da instituição com a escravidão e o racismo no passado. Essa é a hora de demonstrarem que estão falando sério e não apenas blefando”, diz Reis.

Da Bahia para Harvard

A cabeça do rebelde malê, hoje custodiada no Peabody Museum de Harvard, chegou aos Estados Unidos como um presente. O advogado norte-americano Gideon T. Snow, que morou por alguns anos em Salvador, enviou a cabeça “lindamente preparada”, como chamou na época, ao médico J. C. Howard, da Sociedade para o Aperfeiçoamento Médico de Boston, já no ano seguinte à Revolta dos Malês, que aconteceu em 1835.

A cabeça do homem de nome desconhecido pertenceu por anos à coleção pessoal de J. C. Howard, até que foi comprada pelo professor John Collins Warren e transferida, com todo o acervo do médico, para a Universidade de Harvard em 1847, e lá ficou.

Como Snow teve acesso à cabeça é um tanto nebuloso, mas há pistas. De acordo com o historiador Christopher Willoughby, que estuda escravidão atlântica, medicina americana e racismo, e atualmente é pesquisador visitante em Harvard, a tradição de coleta de crânios para estudos raciais começou no Iluminismo, mas ganhou novos contornos no século 19, com as rotas comerciais, o colonialismo e a escravidão.

“De um modo geral, os crânios da coleção de ‘crânios nacionais’ em Harvard foram obtidos por meio de diplomatas, oficiais militares e agentes comerciais em outros países. Muitas vezes, essas pessoas também eram médicos treinados e, portanto, faziam parte de redes sociais e profissionais médicas maiores. Eles enviavam o crânio para um professor ou instituição em uma grande cidade como Harvard. Assim, crânios racializados foram transmitidos pelas rotas comerciais dos impérios e redes comerciais”, destaca Willoghby, antecipando um capítulo de seu próximo livro, Masters of Health: Racial Science and Slavery in U.S. Medical Schools, que será lançado em novembro.

Líder de rua

A informação de que uma das cabeças pertencentes ao Peabody Museum de Harvard é de um homem morto na Revolta dos Malês de 1835 consta no catálogo da coleção da Sociedade para o Aperfeiçoamento Médico de Boston, onde ela chegou, originalmente. No livro que está para ser lançado, o historiador Christopher Willoughby explica que, junto com a cabeça, chegou uma nota escrita por Gideon T. Snow, na qual dizia que o dono dela “era um verdadeiro africano da tribo Nagô” e “um dos chefes” da rebelião. Nagôs era como se chamavam os iorubás na Bahia, principais protagonistas da revolta.

Mas essa informação pode não ser verdadeira. Segundo Snow, o dono da cabeça “foi morto depois de uma disputa muito desesperada, sendo a coragem desta tribo totalmente igual à sua força hercúlea”. Para João José Reis, a afirmação de que o homem era um líder pode, na verdade, ser uma estratégia para valorizar a relíquia.

“O número de rebeldes se contava às centenas, de modo que não se pode considerar todos os mortos, ou ‘ativos’, como líderes. É possível que o morto em pauta fosse um combatente comum, não descartando que pudesse ser um líder na luta de rua. Não seria, no entanto, um alufá, os mentores intelectuais e líderes muçulmanos de 1835″, alerta João Reis.

Além disso, a despeito dos mais de 70 mortos entre os rebeldes, os alufás receberam punições variadas, desde a prisão até chicotadas para os escravizados. Do total, 16 pessoas foram condenadas à morte e quatro foram efetivamente executadas, mas nenhuma delas era cabeça do movimento.

“Foram escolhidos para uma punição exemplar alguns contra quem havia provas contundentes de terem feito a guerra em 1835, esse foi o critério. Estes e os rebeldes que perderam a vida durante o levante foram enterrados no cemitério do Campo da Pólvora, administrado pela Santa Casa, ao lado de onde ficava o patíbulo, administrado pela Santa Casa”, afirma o historiador.

“Nesse cemitério, os cadáveres eram enterrados em covas comuns e sem cerimônia religiosa. Esse teria sido o destino do cadáver cujo crânio foi parar em Harvard. É possível que o ladrão de cova o tivesse escavado do Campo da Pólvora e criado a história de se tratar de um líder ‘militar’ – que até podia ser – para valorizar o macabro botim”, completa.

Exposição pública

Para Christopher Willoughby, dos muitos crânios que ficaram por anos à disposição dos estudantes de Medicina de Harvard, são poucos aqueles em que é possível recuperar a história de seus donos. Mas é seguro supor, diz um trecho do capítulo do livro dedicado aos casos do negro malê e de um nativo sul-africano, que a maioria deles não desejasse ter suas cabeças expostas –, o que não impediu que seus restos mortais fossem usados para traçar, nas escolas de medicina e fora delas, uma narrativa de supremacia branca.

Por anos, além dos crânios, era comum nos Estados Unidos haver exposições públicas de africanos, indígenas e até crianças com deficiência – vivas. Até uma dissecação pública atraiu pagantes em Nova York. “Em 1836, o professor de cirurgia da Universidade de Columbia, David Rogers, conduziu a dissecação pública de uma mulher anteriormente escravizada, Joice Heth. Mais de mil nova-iorquinos pagaram para vê-la dissecada para avaliar as falsas alegações do (showman) P.T Barnum de que ela tinha 161 anos e tinha sido ama de leite de George Washington”, conta Willoughby.

Tudo isso contribuía para a narrativa de que os africanos, indígenas ou nativos de outros lugares, que não da Europa ou dos Estados Unidos, eram inferiores e até animalescos. O caso do negro malê cuja cabeça foi parar em Harvard é incomum, tanto pela quantidade de informações sobre as atividades dele, quanto pelo apreço que se tinha a ele.

Para o historiador Carlos Silva Jr., professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), a história em torno do dono da cabeça certamente elevou o interesse nele. “O fato de você ter uma pessoa que faleceu tendo participado de um movimento tão impactante e que causou tanto sobressalto na sociedade baiana, mas que ficou conhecido até mesmo em outras partes do mundo, deve ter criado um interesse ainda maior”, diz.

Legislação

Enquanto o comitê designado em Harvard para dar um destino digno aos restos não define o que será de fato feito, pesquisadores e descendentes espirituais do homem malê esperam poder conceder ao ancestral – seja ele um líder da revolta ou mais um entre as centenas de rebeldes da época – um enterro digno.

Na década de 1990, o Congresso dos Estados Unidos aprovou uma lei federal batizada de Native American Graves Protection and Repatriation Act (NAGPRA). A lei prevê a repatriação de restos humanos nativos americanos, objetos funerários, objetos sagrados e objetos do patrimônio cultural. A esperança é que o próprio NAGPRA possa servir de precedente para a repatriação do homem escravizado no Brasil.

Líder do Centro Cultural Islâmico da Bahia, o Sheikh Ahmad Abdul Hameed explica que, uma vez confirmado que o dono do crânio é muçulmano, deverá ser feito um ritual fúnebre islâmico, seguido de um sepultamento. “A cabeça não pode ficar exposta”, destaca o líder religioso, que acrescenta não ter recursos para o traslado. “Esperamos que a Universidade de Harvard financie todos os custos”, disse.

Martine Jean, historiadora pública e fundadora do projeto Ipsavero Consulting, afirma que as pessoas deveriam receber enterros adequados para que possam descansar em paz. “Não são artefatos. São seres humanos que foram objetificados e mercantilizados para servir às necessidades racistas das instituições, sendo a Universidade de Harvard uma das muitas”, afirma ela, que já foi pesquisadora visitante em Harvard.

Christopher Willoughby é otimista quanto à repatriação: “Harvard pode se sentir pressionada a agir, a fim de acompanhar seus pares. Especificamente, o Penn Museum da Universidade da Pensilvânia anunciou sua intenção de repatriar uma coleção gigante de crânios do século 19”, diz.

Para Carlos Silva Jr., não há dúvidas de que o crânio deve ser repatriado, ou para a Nigéria ou para a Bahia. Mas ele não acredita que o processo seja tão simples. “Acho que é preciso uma grande mobilização para garantir que a Universidade de Harvard devolva os restos mortais. Isso deve acontecer não apenas com o crânio dessa pessoa específica, mas com todos esses restos humanos que as universidades guardam, sejam de africanos, sejam de populações indígenas. Não é mais aceitável que mantenhamos essas exposições de corpos humanos”, afirma.

Um golpe de mosquete colocou fim, em algum momento do histórico 25 de janeiro de 1835, à vida de um homem africano traficado para a Bahia para servir como escravo. Ferido no combate corpo a corpo que marcou a Revolta dos Malês, rebelião liderada por mulçumanos das mais importantes da história do Brasil, ele foi levado ao Hospício de Jerusalém, em Salvador, onde morreu. A história não sabe o nome deste homem, nem o que aconteceu com o corpo dele, embora se suponha que tenha sido sepultado em uma cova comum no Campo da Pólvora, onde outros rebeldes, indigentes e escravos eram enterrados. Já a cabeça foi parar longe: em uma coleção de 150 cabeças humanas, separadas por raça e nação, usadas por alunos de medicina da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos.

Se os documentos que tratam da chegada da cabeça ao país estiverem corretos, estima-se que a relíquia macabra tenha desembarcado na América em 1836. Mas, se depender dos descendentes espirituais do rebelde, ela não ficará em Harvard por mais muito tempo. Na Bahia, a comunidade muçulmana e nigeriana está disposta a brigar para repatriar os restos humanos do homem e lhe conceder um ritual fúnebre apropriado. É o que diz Misbah Akkani, nigeriano muçulmano e iorubá – assim como, provavelmente, o dono do crânio – que hoje integra a representação da Embaixada da Nigéria na Bahia.

“É de suma importância para nós tirar esse crânio de lá e trazer para Bahia, porque a importância dele é aqui no Brasil, onde ele vivia, onde ele foi morto de forma injusta. É importante para provar que aquilo aconteceu aqui, no Campo da Pólvora, onde hoje tem um fórum de Justiça, e onde foram cometidas muitas injustiças contra essas pessoas que simplesmente estavam lutando pelo seu direito de existir”, afirma Akkani.

Naquele 25 de janeiro de 1835, centenas de escravos e libertos percorreram as ruas de Salvador convencendo outros a se rebelarem contra a escravidão e a imposição do catolicismo. Perderam, mas o medo de que outro levante de escravos acontecesse correu o Brasil.

"Livrinho Malê" encontrado no corpo de um dos rebeldes mortos na revolta. Foto: Acervo do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB)

Comitê na universidade

Até pouco tempo, os descendentes do negro malê – palavra que, em iorubá, significa muçulmano – não sabiam da existência do crânio ou, pelo menos, não faziam ideia de que ela não estava junto com o corpo de um dos rebeldes do movimento de 1835. O interesse veio à tona após se descobrir que a própria Universidade de Harvard, em resposta a acusações de racismo e colonialismo, decidiu instaurar um comitê para estudar a possibilidade de devolver restos humanos de indígenas e africanos provavelmente escravizados ainda custodiados em suas dependências.

Em janeiro do ano passado, o presidente da Universidade de Harvard, Lawrence Bacow, publicou uma carta em que reconhece o atraso na identificação dos restos humanos de mais de 22 mil nativos americanos que fazem parte do acervo de dois museus da universidade – o Peabody e o Warren –, pede desculpas pelo passado escravista da instituição e dá prioridade à identificação e repatriação dos restos humanos de 15 indivíduos de ascendência africana que ainda estavam vivos em período avançado da escravidão americana. “Esses indivíduos representam um capítulo da nossa história que devemos enfrentar”, escreveu.

Já em junho deste ano, o The Harvard Crimson, jornal estudantil da própria universidade, publicou que um relatório preliminar do comitê identificou, além dessas 15 pessoas, os restos de mais quatro escravizados no Caribe e no Brasil. O homem apontado como um dos rebeldes da Revolta dos Malês, em Salvador, é um deles.

Procurada, contudo, a universidade disse que não iria se pronunciar até a conclusão do relatório final do comitê, previsto para ser publicado ainda este ano. Nesta quarta-feira, após a publicação da reportagem, um dos pesquisadores consultados enviou o relatório com recomendações, assinado pelo comitê e pelo presidente de Harvard. As recomendações para os restos mortais dos 19 escravizados é de que a universidade procure as comunidades de origem ou os descendentes de linhagem para que sejam feitos “enterro, reintervenção, retorno às comunidades descendentes ou repatriação dos restos mortais”. Não há prazo para que isso aconteça.

Para o historiador João José Reis, que já foi professor visitante em Harvard, esta é a uma oportunidade para a universidade reconhecer seu passado escravista. “Mas isso dependerá de os dirigentes de Harvard se guiarem pelo compromisso por eles assumido de reparar de diversas formas o envolvimento – que não foi pouco – da instituição com a escravidão e o racismo no passado. Essa é a hora de demonstrarem que estão falando sério e não apenas blefando”, diz Reis.

Da Bahia para Harvard

A cabeça do rebelde malê, hoje custodiada no Peabody Museum de Harvard, chegou aos Estados Unidos como um presente. O advogado norte-americano Gideon T. Snow, que morou por alguns anos em Salvador, enviou a cabeça “lindamente preparada”, como chamou na época, ao médico J. C. Howard, da Sociedade para o Aperfeiçoamento Médico de Boston, já no ano seguinte à Revolta dos Malês, que aconteceu em 1835.

A cabeça do homem de nome desconhecido pertenceu por anos à coleção pessoal de J. C. Howard, até que foi comprada pelo professor John Collins Warren e transferida, com todo o acervo do médico, para a Universidade de Harvard em 1847, e lá ficou.

Como Snow teve acesso à cabeça é um tanto nebuloso, mas há pistas. De acordo com o historiador Christopher Willoughby, que estuda escravidão atlântica, medicina americana e racismo, e atualmente é pesquisador visitante em Harvard, a tradição de coleta de crânios para estudos raciais começou no Iluminismo, mas ganhou novos contornos no século 19, com as rotas comerciais, o colonialismo e a escravidão.

“De um modo geral, os crânios da coleção de ‘crânios nacionais’ em Harvard foram obtidos por meio de diplomatas, oficiais militares e agentes comerciais em outros países. Muitas vezes, essas pessoas também eram médicos treinados e, portanto, faziam parte de redes sociais e profissionais médicas maiores. Eles enviavam o crânio para um professor ou instituição em uma grande cidade como Harvard. Assim, crânios racializados foram transmitidos pelas rotas comerciais dos impérios e redes comerciais”, destaca Willoghby, antecipando um capítulo de seu próximo livro, Masters of Health: Racial Science and Slavery in U.S. Medical Schools, que será lançado em novembro.

Líder de rua

A informação de que uma das cabeças pertencentes ao Peabody Museum de Harvard é de um homem morto na Revolta dos Malês de 1835 consta no catálogo da coleção da Sociedade para o Aperfeiçoamento Médico de Boston, onde ela chegou, originalmente. No livro que está para ser lançado, o historiador Christopher Willoughby explica que, junto com a cabeça, chegou uma nota escrita por Gideon T. Snow, na qual dizia que o dono dela “era um verdadeiro africano da tribo Nagô” e “um dos chefes” da rebelião. Nagôs era como se chamavam os iorubás na Bahia, principais protagonistas da revolta.

Mas essa informação pode não ser verdadeira. Segundo Snow, o dono da cabeça “foi morto depois de uma disputa muito desesperada, sendo a coragem desta tribo totalmente igual à sua força hercúlea”. Para João José Reis, a afirmação de que o homem era um líder pode, na verdade, ser uma estratégia para valorizar a relíquia.

“O número de rebeldes se contava às centenas, de modo que não se pode considerar todos os mortos, ou ‘ativos’, como líderes. É possível que o morto em pauta fosse um combatente comum, não descartando que pudesse ser um líder na luta de rua. Não seria, no entanto, um alufá, os mentores intelectuais e líderes muçulmanos de 1835″, alerta João Reis.

Além disso, a despeito dos mais de 70 mortos entre os rebeldes, os alufás receberam punições variadas, desde a prisão até chicotadas para os escravizados. Do total, 16 pessoas foram condenadas à morte e quatro foram efetivamente executadas, mas nenhuma delas era cabeça do movimento.

“Foram escolhidos para uma punição exemplar alguns contra quem havia provas contundentes de terem feito a guerra em 1835, esse foi o critério. Estes e os rebeldes que perderam a vida durante o levante foram enterrados no cemitério do Campo da Pólvora, administrado pela Santa Casa, ao lado de onde ficava o patíbulo, administrado pela Santa Casa”, afirma o historiador.

“Nesse cemitério, os cadáveres eram enterrados em covas comuns e sem cerimônia religiosa. Esse teria sido o destino do cadáver cujo crânio foi parar em Harvard. É possível que o ladrão de cova o tivesse escavado do Campo da Pólvora e criado a história de se tratar de um líder ‘militar’ – que até podia ser – para valorizar o macabro botim”, completa.

Exposição pública

Para Christopher Willoughby, dos muitos crânios que ficaram por anos à disposição dos estudantes de Medicina de Harvard, são poucos aqueles em que é possível recuperar a história de seus donos. Mas é seguro supor, diz um trecho do capítulo do livro dedicado aos casos do negro malê e de um nativo sul-africano, que a maioria deles não desejasse ter suas cabeças expostas –, o que não impediu que seus restos mortais fossem usados para traçar, nas escolas de medicina e fora delas, uma narrativa de supremacia branca.

Por anos, além dos crânios, era comum nos Estados Unidos haver exposições públicas de africanos, indígenas e até crianças com deficiência – vivas. Até uma dissecação pública atraiu pagantes em Nova York. “Em 1836, o professor de cirurgia da Universidade de Columbia, David Rogers, conduziu a dissecação pública de uma mulher anteriormente escravizada, Joice Heth. Mais de mil nova-iorquinos pagaram para vê-la dissecada para avaliar as falsas alegações do (showman) P.T Barnum de que ela tinha 161 anos e tinha sido ama de leite de George Washington”, conta Willoughby.

Tudo isso contribuía para a narrativa de que os africanos, indígenas ou nativos de outros lugares, que não da Europa ou dos Estados Unidos, eram inferiores e até animalescos. O caso do negro malê cuja cabeça foi parar em Harvard é incomum, tanto pela quantidade de informações sobre as atividades dele, quanto pelo apreço que se tinha a ele.

Para o historiador Carlos Silva Jr., professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), a história em torno do dono da cabeça certamente elevou o interesse nele. “O fato de você ter uma pessoa que faleceu tendo participado de um movimento tão impactante e que causou tanto sobressalto na sociedade baiana, mas que ficou conhecido até mesmo em outras partes do mundo, deve ter criado um interesse ainda maior”, diz.

Legislação

Enquanto o comitê designado em Harvard para dar um destino digno aos restos não define o que será de fato feito, pesquisadores e descendentes espirituais do homem malê esperam poder conceder ao ancestral – seja ele um líder da revolta ou mais um entre as centenas de rebeldes da época – um enterro digno.

Na década de 1990, o Congresso dos Estados Unidos aprovou uma lei federal batizada de Native American Graves Protection and Repatriation Act (NAGPRA). A lei prevê a repatriação de restos humanos nativos americanos, objetos funerários, objetos sagrados e objetos do patrimônio cultural. A esperança é que o próprio NAGPRA possa servir de precedente para a repatriação do homem escravizado no Brasil.

Líder do Centro Cultural Islâmico da Bahia, o Sheikh Ahmad Abdul Hameed explica que, uma vez confirmado que o dono do crânio é muçulmano, deverá ser feito um ritual fúnebre islâmico, seguido de um sepultamento. “A cabeça não pode ficar exposta”, destaca o líder religioso, que acrescenta não ter recursos para o traslado. “Esperamos que a Universidade de Harvard financie todos os custos”, disse.

Martine Jean, historiadora pública e fundadora do projeto Ipsavero Consulting, afirma que as pessoas deveriam receber enterros adequados para que possam descansar em paz. “Não são artefatos. São seres humanos que foram objetificados e mercantilizados para servir às necessidades racistas das instituições, sendo a Universidade de Harvard uma das muitas”, afirma ela, que já foi pesquisadora visitante em Harvard.

Christopher Willoughby é otimista quanto à repatriação: “Harvard pode se sentir pressionada a agir, a fim de acompanhar seus pares. Especificamente, o Penn Museum da Universidade da Pensilvânia anunciou sua intenção de repatriar uma coleção gigante de crânios do século 19”, diz.

Para Carlos Silva Jr., não há dúvidas de que o crânio deve ser repatriado, ou para a Nigéria ou para a Bahia. Mas ele não acredita que o processo seja tão simples. “Acho que é preciso uma grande mobilização para garantir que a Universidade de Harvard devolva os restos mortais. Isso deve acontecer não apenas com o crânio dessa pessoa específica, mas com todos esses restos humanos que as universidades guardam, sejam de africanos, sejam de populações indígenas. Não é mais aceitável que mantenhamos essas exposições de corpos humanos”, afirma.

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