O Prêmio Nobel de Química de 2021 foi entregue a dois cientistas que desenvolveram uma técnica chamada organocatálise assimétrica. Apesar de o nome ser complicado e abstrato para quem não é da área, Fernanda Gadini Finelli, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sabe explicar o termo como se fosse dela a descoberta científica. Tanta intimidade com o assunto vem de longa data: Fernanda estudou no laboratório de David MacMillan, um dos vencedores do prêmio, e passou pelo mesmo instituto que Benjamin List, o outro ganhador do Nobel deste ano.
“Fiz meu pós-doutorado no laboratório do MacMillan entre 2009 e 2010. Nessa época a gente já comentava que ele merecia ganhar o Nobel”, conta. Para Fernanda, MacMillan tem a chance de ganhar mais um prêmio Nobel daqui a cerca de dez anos por seus estudos sobre fotocatálise. Até hoje, apenas quatro pessoas e duas instituições ganharam mais de um Nobel.
A pesquisadora brasileira fala que uma das coisas que mais chamaram a sua atenção foi o investimento recebido pelo laboratório. Na época em que ela esteve na Universidade de Princeton, MacMillan trabalhava em três laboratórios fortemente equipados. Havia ainda um novo espaço em construção para a equipe composta por 45 alunos de doutorado e pós-doutorado. “Era muito trabalho. O laboratório funcionava das 8h da manhã à 1h da madrugada”, lembra.
Antes de ir para Princeton, o vencedor do Nobel trabalhava no Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech), um dos mais prestigiados da área. A transferência para a outra universidade se deu mediante uma negociação no nível daquelas feitas por jogadores de futebol. “Foi uma proposta irrecusável não só em termos de salário, mas também de investimento no laboratório. Ele é tratado com muito respeito”, diz a professora da UFRJ. O laboratório de MacMillan tem também parceria com a farmacêutica Merck, que mantém um centro de pesquisa no local.
“Ele é uma pessoa que enxerga à frente. Faz todo mundo pensar e sair do óbvio”, diz Fernanda. Ela conta que o cientista é muito exigente com a equipe e que, além do investimento alto e da visão de futuro, o Nobel é fruto de muito esforço. “Ele não é um gênio que consegue tudo de forma fácil. É muito trabalho."
Na época em que teve a oportunidade de trabalhar com o vencedor do Nobel, Fernanda era financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Ela ganhou uma bolsa que cobriu os custos de sua estadia nos Estados Unidos e a passagem aérea para o país. Em 2018, uma de suas alunas foi convidada para desenvolver pesquisas no laboratório de MacMillan, mas não teve a mesma sorte. Os financiamentos federais para ciência já estavam escassos e ela não conseguiu bolsa para viajar.
Como o convite para a temporada de estudos partiu do próprio MacMillan, a aluna conseguiu financiamento estrangeiro para embarcar para a Universidade de Princeton e se manter por lá. O objetivo era desenvolver uma molécula nova a partir das técnicas do cientista premiado. Ela voltou ao Brasil com o trabalho encaminhado e em seguida conseguiu concluir esta etapa de desenvolvimento do produto que, se tudo der certo, vai virar terapia para uma doença neurodegenerativa.
“A pesquisa científica é lenta no Brasil por falta de investimento. Se o laboratório do MacMillan não tivesse financiado a minha aluna, ela não teria ido”, afirma Fernanda. Ela lembra que quando fez doutorado entre 2004 e 2009 na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) grande parte da turma teve financiamento público para sair do País, estudar com grandes nomes da ciência e ter contato com as melhores tecnologias. Hoje, os ex-colegas estão de volta ao Brasil para aplicar o que aprenderam. “Agora nós estamos passando por um período tão ruim de investimento que não há como competir internacionalmente do jeito que queremos”.
Durante o doutorado, ela passou um período no Instituto Max-Planck de Pesquisa de Carvão, na Alemanha, mesmo local onde Benjamin List atua. Ela não teve contato direto com o pesquisador alemão, mas trabalhou com Alois Fürstner, vizinho de laboratório do vencedor do Nobel.
Entenda a organocatálise assimétrica
A organocatálise assimétrica foi descrita por MacMillan, List e Carlos F. Barbas no início dos anos 2000. Barbas morreu de câncer em 2014, aos 50 anos. “Se estivesse vivo, certamente dividiria o Nobel deste ano”, acredita Fernanda. O Nobel não concede prêmios pós-morte.
A organocatálise é usada para catalisar (acelerar) reações químicas usando materiais orgânicos, como aminoácidos. Fernanda explica que esse tipo de catálise é vantajosa porque é barata, atóxica, estável e mais sustentável, já que usa moléculas abundantes e não deixa resíduos como a catálise metálica.
Outra melhoria trazida pela organocatálise assimétrica é a formação de moléculas orgânicas mais puras. Moléculas orgânicas são aquelas que possuem carbono na composição. Quando esse carbono está ligado a elementos diferentes, o resultado da catálise são enantiômero: moléculas “espelhadas” que possuem os mesmos elementos na composição, mas podem ter funções distintas.
O objetivo do cientista é obter apenas um produto enantiomericamente puro, com apenas um elemento no produto final. A organocatálise assimétrica permite essa separação já no processo de catálise, sem a necessidade de uma peneira ao final.
Fernanda diz que isso foi uma revolução principalmente na indústria farmacêutica. Ela lembra a história do medicamento Talidomida, usado por gestantes. O objetivo do remédio era amenizar enjoos, mas a molécula não era pura. O princípio de um dos elementos era de fato diminuir a náusea, mas o outro causava má-formação do feto. O resultado foi o nascimento de milhares de crianças com má-formação. “A organocatálise está por trás da indústria farmacêutica. Várias etapas da produção de medicamentos são feitas usando essa técnica”, afirma.