Na manhã de 4 de abril, físicos entraram numa sala de reuniões no terceiro andar do Jefferson Laboratory da Universidade de Harvard. Corria a notícia de que haveria um grande anúncio da colaboração Instrumento Espectroscópico de Energia Escura (DESI, na sigla em inglês), um grupo de físicos que está investigando a energia escura – uma forma misteriosa de energia de repulsão que permeia o universo. A sala de reuniões ficou tão lotada de gente querendo assistir à transmissão ao vivo que algumas pessoas precisaram se sentar no chão. Depois todo mundo decidiu mudar o evento para um salão de palestras bem maior no andar de baixo.
O anúncio do DESI correspondeu à expectativa. Os resultados do grupo indicaram que a energia escura, que a maioria dos físicos há muito considera imutável, na verdade pode estar enfraquecendo.
Desde 1998, sabemos que a expansão do universo está se acelerando. Energia escura é o nome dado ao elemento acelerador. No modelo teórico padrão do cosmos, a energia escura tem uma forma simples: está espalhada uniformemente pelo espaço, mantendo uma densidade constante o tempo todo. A energia escura desse tipo, conhecida como constante cosmológica, não se diluiria à medida que o universo se expande. Em vez disso, conforme o espaço cresce, a quantidade de energia escura cresce com ele. E, assim, essa energia acumulada expande o universo com um entusiasmo cada vez maior.
Mas a constância da energia escura é apenas uma hipótese, que o experimento do DESI se propôs a verificar. A colaboração informou que até então havia mapeado e analisado a localização de 6,4 milhões de galáxias para determinar a velocidade de expansão do universo em função do tempo. (Galáxias mais distantes revelam um universo mais jovem). Se a energia escura for uma constante cosmológica, então a aceleração deve se manter estável. O conjunto de dados do DESI não era grande o suficiente para testar essa hipótese por si só, embora a equipe possa vir a fazer isso depois de mapear um total de 40 milhões de galáxias durante os cinco anos previstos para a pesquisa. Mas, quando os cientistas juntaram seus dados com outras observações astronômicas, os conjuntos combinados sugeriram uma energia escura em evolução.
As descobertas não chegam ao nível de certeza estatística necessário para reivindicar uma descoberta. Por enquanto, o DESI está chamando tudo isso de uma “pista” de que a energia escura talvez esteja enfraquecendo. Mas, de acordo com Nathalie Palanque-Delabrouille, cosmóloga do Lawrence Berkeley National Laboratory e uma das líderes do DESI, “essa pista fica mais forte à medida que começamos a combinar diferentes conjuntos de dados. E todos esses conjuntos parecem estar apontando para a mesma direção”.
Enquanto isso, os teóricos não estão de braços cruzados. A pista do DESI sobre a natureza da energia escura, que compreende 70% do conteúdo de massa e energia do universo, é grande demais para ser ignorada. Imediatamente após a apresentação de 4 de abril, os físicos que se reuniram em Harvard voltaram às suas escrivaninhas para contemplar as implicações do que tinham acabado de ouvir, assim como outros pesquisadores do mundo inteiro. Eles desenharam curvas que ilustravam onde a energia escura poderia estar agora e para onde poderia ir no futuro. “Se os dados continuarem assim, o que isso significa?”, perguntou Alek Bedroya, físico da Universidade de Princeton. “Até que ponto os dados do DESI são compatíveis com nossas conjecturas?”
Parte da intriga em torno das notícias do DESI era que Bedroya e alguns de seus colegas já tinham levantado a hipótese ousada de que a energia escura talvez estivesse se enfraquecendo.
O erro de Einstein
A perplexidade em relação à energia escura remonta a mais de um século. Em 1917, Albert Einstein introduziu a constante cosmológica nas equações de sua teoria geral da relatividade. Ele achava que era necessário manter seu modelo de universo estático – nem se contraindo, nem se expandindo. Mas Einstein tinha sérias dúvidas sobre a constante e a removeu de suas equações, chamando-a de seu “maior erro”, logo depois que Edwin Hubble descobriu, em 1929, que o universo estava de fato se expandindo.
No entanto, Einstein estava certo quando acrescentou sua constante cosmológica – só que ele o tinha feito pelos motivos errados. Em 1984, o físico James Peebles argumentou que essa forma de energia de repulsão era necessária para neutralizar a gravidade e corresponder às observações da geometria em grande escala do universo.
O argumento a favor de uma constante cosmológica, ou algo semelhante, se tornou irrefutável em 1998. Naquele ano, duas equipes independentes mostraram que as supernovas distantes estavam mais longe do que o esperado, indicando que a expansão do universo estava se acelerando. Ninguém sabia se o acelerador era a constante cosmológica de Einstein ou algo mais complicado. Daí o rótulo um tanto vago de “energia escura”.
Seja o que for essa energia, sua densidade é minúscula – tão pequena que os teóricos têm dificuldade de explicá-la. A explicação mais direta sobre o que é essa energia vem da física quântica, que há muito tempo previu que o espaço deve estar repleto de quantidades substanciais de energia. Os campos quânticos que permeiam o espaço flutuam em termos de força, nunca permanecendo exatamente em zero: as partículas surgem continuamente e desaparecem com a mesma rapidez. Essas flutuações quânticas deveriam contribuir para a energia do espaço ambiente. Mas, quando os físicos fazem as contas, eles descobrem que o efeito pode ser até 10120 vezes maior do que a quantidade observada de energia escura.
Isso foi caracterizado como “a pior previsão teórica da história da física”. A discrepância confundiu os físicos durante décadas. Uma possível explicação para aquele valor minúsculo, apresentada pelo falecido ganhador do prêmio Nobel Steven Weinberg, continua sendo uma das melhores suposições até agora. O argumento de Weinberg se baseia na ideia de que nosso universo talvez faça parte de um conjunto maior de universos, hoje conhecido como multiverso. Ele argumentou que a densidade da energia escura pode variar muito nesse conjunto, talvez porque as quantidades positivas e negativas de energia provenientes de flutuações quânticas se cancelem em graus variados. E ele calculou que o valor que observamos neste universo, embora minúsculo, é quase tão grande quanto poderia ser para que as galáxias se formassem antes que a expansão cósmica esticasse toda a matéria. A densidade ultrabaixa da energia escura é uma condição necessária para a existência de seres humanos que ponderam enigmas como este.
Energia escura quintessencial
A ideia de que a energia escura muda com o tempo remonta a um artigo de 1998 dos físicos Robert Caldwell, Rahul Dave e Paul Steinhardt. Eles chamaram de “quintessência” a energia escura desse tipo.
A energia escura quintessencial pode aumentar ou diminuir em densidade. Se ela estiver diminuindo, temos uma bela imagem mental, disse Caldwell, físico do Dartmouth College. Ele descreveu a evolução como “uma bola rolando colina abaixo”. A altitude da bola reflete a densidade da energia escura em determinado momento. (Se a energia escura fosse uma constante cosmológica, a bola estaria em um platô plano).
De acordo com esse modelo, a energia escura também poderia, em tese, aumentar, mas essa situação não parece natural. A imagem mental nesse caso seria a de uma bola rolando colina acima, explicou Steinhardt, físico de Princeton. É “algo que normalmente não se vê”, disse ele. “Seria preciso uma bola ou uma colina com propriedades bem exóticas e talvez uma física bem estranha para que isso acontecesse”. Os físicos chamam essa situação de “regime fantasma”.
O mais intrigante, porém, é que o artigo de abril da equipe do DESI sugeriu que, durante a maior parte da história do nosso universo, a energia escura se manteve rigorosamente dentro desse regime fantasma. De acordo com sua análise, só recentemente ela passou para o reino da quintessência normal.
Alguns cosmólogos consideram que esse cenário é implausível.
Uma semana depois que o DESI divulgou seus dados, Marina Cortês e Andrew Liddle, da Universidade de Lisboa, contestaram a interpretação da energia escura fantasma. Cortês caracterizou a aquisição e o processamento de dados do DESI como “excelentes”, mas disse: “Achamos que é muito mais provável que os dados futuros apoiem a constante cosmológica do que algum modelo esquisito de energia escura fantasma”.
No final de abril, três físicos propuseram um modelo cosmológico que se ajustava aos dados sem entrar no regime fantasma. “Teoricamente, é o que esperaríamos de uma energia escura em evolução”, disse Kim Berghaus, física do Instituto de Tecnologia da Califórnia e coautora do artigo.
Depois, em maio, Steinhardt e o estudante de pós-graduação de Princeton David Shlivko chegaram a uma conclusão semelhante. “Embora o grupo DESI tenha dito que seus dados apontam para a energia escura fantasma”, disse Steinhardt, “nós mostramos que é possível ter um modelo de quintessência sem energia escura fantasma que se encaixe igualmente bem nos dados”.
Steinhardt acredita que a noção de energia escura quintessencial é eminentemente plausível – uma perspectiva mais natural até mesmo do que a constante cosmológica, que ele considera “estranha por causa de sua constância. O mais interessante da energia é que você pode transformá-la de uma forma para outra, com reações subsequentes: se você muda uma coisa, gera efeitos em outras coisas”. Uma constante cosmológica seria uma curiosa exceção, disse Steinhardt. Nenhuma outra forma de energia que conhecemos “é estritamente assim: sempre constante e não afetada por nada mais”.
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A energia escura encontra o pântano
Na verdade, Steinhardt e muitos outros físicos já estavam pensando sobre essa questão quando o grupo DESI fez seu anúncio. Steinhardt estava passando o ano acadêmico em Harvard como parte da Iniciativa Pântano, um programa de pesquisa dedicado a identificar os princípios gerais e as restrições a que deve aderir qualquer teoria quântica da gravidade. A iniciativa, que reuniu cerca de cem pesquisadores do mundo todo, foi liderada pelo físico de Harvard Cumrun Vafa, que teve a ideia do pântano em 2005.
Desde a década de 1980, Vafa tem feito grandes contribuições para a teoria das cordas, que substitui os objetos pontuais da física de partículas por cordas minúsculas. Os estados vibracionais dessas cordas correspondem às diferentes partículas e forças da natureza, inclusive a força da gravidade. A teoria postula que as cordas vibram em dez dimensões espaço-temporais – quatro delas grandes e seis pequenas demais para serem vistas. A disposição geométrica das seis dimensões imperceptivelmente pequenas influencia a quantidade de energia escura no reino macroscópico quadridimensional que habitamos. Independentemente de a teoria das cordas conseguir ou não descrever nosso mundo em um nível fundamental, ela fornece um modelo teórico consistente de como a mecânica quântica e a gravidade poderiam se juntar.
Um aspecto da teoria das cordas, que pode ser visto como uma deficiência, é que ela permite um grande número de arranjos possíveis das seis dimensões minúsculas. Cada um desses arranjos específicos corresponde a um universo com propriedades distintas. O objetivo do programa pântano, disse Vafa, é estudar essas inúmeras possibilidades – juntamente com experimentos mentais sobre buracos negros e gravidade quântica – e tentar identificar princípios gerais a que todos os universos consistentes obedeçam. Esses universos possíveis constituem “a paisagem”. Os universos hipotéticos com propriedades que contradizem os princípios gerais são chamados de “o pântano”. Nosso universo deve estar em solo firme, então os físicos tentam aplicar os princípios que obtiveram em seus estudos para gerar novas conjecturas sobre a realidade.
A primeira análise da energia escura baseada na ideia de pântano foi publicada em 2018. Nela, Vafa e três coautores descobriram que nenhuma das soluções confiáveis para a teoria das cordas que eles conseguiram encontrar, correspondentes a universos com constantes cosmológicas positivas, era estável. Isso significa que a densidade da energia escura “sempre quer cair”, disse Vafa, o que está de acordo com a tendência natural dos sistemas físicos de se moverem para uma energia mais baixa. Ele e seus colegas derivaram uma fórmula que especificava exatamente a velocidade com que a densidade da energia escura deveria cair – uma fórmula que, segundo eles, qualquer universo consistente deveria seguir.
Na época, o trabalho parecia entrar em conflito com o que os físicos achavam que sabiam sobre o universo e sua suposta constante cosmológica. E alguns teóricos das cordas ainda argumentam que universos estáveis com constantes cosmológicas positivas podem existir na teoria das cordas – uma tentativa de construir essa solução apareceu no início deste mês. No entanto, à luz da “pista” do DESI de que a densidade da energia escura está de fato caindo, a conjectura de Vafa e seus coautores agora parece profética.
Censura transplanckiana
Há outro experimento mental que questiona a própria ideia de uma constante cosmológica eternamente imutável.
Digamos que a expansão do universo se acelere a uma taxa constante. Com o tempo, a expansão se torna tão rápida que até mesmo coisas muito pequenas explodem instantaneamente.
Podemos então considerar a menor distância imaginável: o “comprimento de Planck”, que se acredita ser o menor incremento espacial observável. A extremidade oposta da régua cósmica é o horizonte de Hubble, a distância até a borda do universo observável, além da qual não conseguimos enxergar. Em um universo com uma constante cosmológica positiva, é só uma questão de tempo – muito tempo – para que o comprimento de Planck cresça até o tamanho do horizonte de Hubble. De acordo com a conjectura de censura transplanckiana (TCC, na sigla em inglês), formulada por Bedroya e Vafa em 2019 e atualizada no ano passado, isso jamais deveria acontecer.
É uma questão de senso comum, disse Bedroya. “Algo que seja subplanckiano” – e, portanto, fundamentalmente inobservável – “não deveria chegar à escala em que possamos observá-lo”. Tampouco deveria chegar a uma escala que seja grande demais para que possamos observá-lo. “A menor escala de comprimento que faz sentido na sua teoria”, disse ele, “não pode ser maior do que as maiores escalas de comprimento que fazem sentido na sua teoria”.
Supondo que a energia escura seja a constante cosmológica, um cálculo simples pode dizer por quanto tempo a expansão cósmica teria de continuar acelerando antes que o comprimento de Planck começasse a se estender para além do comprimento de Hubble. Esse período de tempo, segundo os cálculos de Bedroya e Vafa, é de no máximo 2 trilhões de anos. A energia escura não poderia se comportar como uma constante cosmológica além desse ponto.
A conjectura TCC possibilita dois cenários diferentes. A energia escura poderia sofrer um declínio lento e constante. A outra possibilidade é que a energia escura permaneça estável por um tempo, como uma bola presa a uma depressão ou vale no meio da colina. Mas de um instante para outro – que ocorrerá em algum momento entre 10 bilhões e 1 trilhão de anos a partir de agora – isso vai mudar. Em um processo chamado tunelamento quântico, a bola vai atravessar o declive que a estava confinando e começar a rolar morro abaixo.
Se os resultados preliminares do DESI se confirmarem, eles se alinhariam com a opção 1.
Para Steinhardt, o fascínio do empreendimento do pântano é a forma como ele se baseia em diferentes ideias para fazer previsões testáveis sobre como o universo deve ser. Agora estamos entrando no regime de medição, observou ele, “onde podemos realmente testar essas previsões. Se elas estiverem corretas, veremos sinais claros de energia escura variável no tempo muito em breve”.
‘O maior problema do universo’
Será que a pista do DESI vai se confirmar? A equipe já coletou mais dois anos de dados de localização de galáxias, e uma análise desse conjunto maior de dados, de acordo com Palanque-Delabrouille, deve ser publicada ainda este ano.
Até lá, muitos cosmólogos estão reticentes. “Com base nas evidências que temos agora, ainda não estou disposta a descartar o modelo [de energia escura constante]”, disse Licia Verde, cosmóloga da Universidade de Barcelona e integrante do DESI.
Mas se a descoberta inicial do DESI for confirmada, ela nos dirá algo crucial sobre a energia escura e seu futuro. “Ainda mais importante”, disse Vafa, “poderemos deduzir que isso está marcando o início do fim do universo. Com ‘fim’ não quero dizer que nada vá acontecer depois disso. Estou dizendo que vai acontecer alguma coisa muito diferente do que temos agora”. Talvez a energia escura caia até se estabelecer em um valor mais estável, possivelmente negativo. E, assim, um novo universo, com novas leis, partículas e forças, substituiria o atual.
“Estamos procurando algum indício desesperadamente”, disse Caldwell. A energia escura é “literalmente o maior problema do universo”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
História original republicada com permissão da Quanta Magazine, uma publicação editorialmente independente apoiada pela Simons Foundation. Leia o conteúdo original em Diminishing Dark Energy May Evade the ‘Swampland’ of Impossible Universes