Compartilhado pela francesa Emmanuelle Charpentier e a americana Jennifer A. Doudna, o Nobel de Química de 2020 agraciou a criação de uma ferramenta para a edição do genoma, a 'tesoura genética" CRISPR/Cas9. O método torna muito mais fácil retirar, acrescentar ou alterar com muita precisão partes do DNA de homens, animais e plantas e, por isso, tem o potencial de revolucionar muitas áreas da ciência.
"O prêmio deste ano é sobre reescrever o código da vida", resumiu o secretário geral da Academia Sueca de Ciências, Goran K. Hansson, antes de anunciar os nomes das ganhadoras na manhã desta quarta-feira, 7.
Pela primeira vez um Nobel foi para duas mulheres. Ao todo, já somados os nomes de Emmanuelle e Jennifer, o Nobel de Química agraciou apenas sete mulheres desde que foi criado, em 1901-- entre elas Marie Curie e sua filha Irene Joliot-Curie. No mesmo período, 178 homens receberam a honraria. "Estou em choque", disse Jennifer, de 56 anos, que é professora da Universidade da Califórnia, em Berkeley.
"Fiquei muito emocionada, muito surpresa, parece que não é real", afirmou Emmanuelle Charpentier, de 51 anos, com a voz embargada. Atualmente, ela é diretora da Unidade de Ciências de Patógenos do Instituto Max Planck, em Berlim.
O artigo das duas cientistas que descreve a descoberta do novo método foi publicado originalmente em 2012, ou seja, há apenas oito anos. Desde então, a ferramenta se popularizou rapidamente no mundo todo, sendo usada atualmente em qualquer laboratório de genética.
"É raro um Nobel ser dado tão pouco tempo depois da descoberta", afirmou a geneticista Mayana Zatz, da USP, que usa a técnica em seu laboratório para estudar xenotransplantes e doenças genéticas. "Só acontece nesses casos em que não há dúvida nenhuma da importância; essa tecnologia vai revolucionar a medicina."
Médicos estão usando a ferramenta para tentar achar a cura para doenças genéticas, como um tipo de cegueira hereditária. Geneticistas como Mayana Zatz tentam tornar possível o transplante de órgãos de porcos geneticamente modificados para seres humanos. Cientistas que trabalham com plantas tentam desenvolver espécies capazes de resistir a secas e inundações. Alguns pesquisadores tentam, até mesmo, trazer de volta à vida animais extintos, no melhor estilo Jurassic Park.
"Essa ferramenta alterou profundamente a maneira como fazemos pesquisa nas ciências básicas", resumiu o diretor dos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA, Francis Collins, que coordenou o projeto genoma humano. "Estou muito feliz de ver a CRISPR/Cas9 sendo recebendo o reconhecimento que todos nós estávamos esperando e de ver duas mulheres laureadas com o Nobel."
A ferramenta, no entanto, transformou-se também em tema controverso na ciência por suas potenciais implicações éticas, sobretudo no que diz respeito a alteração da hereditariedade humana. Em 2018, o cientista chinês He Jiankui anunciou que havia usado a tecnologia para editar os genes de embriões humanos, criando as primeiras crianças geneticamente modificadas.
"Há um poder enorme nessa ferramenta, que afeta todos nós", disse o presidente do Comitê de Química do Nobel, Claes Gustafsson.
Como costuma acontecer na ciência, a descoberta do mecanismo foi acidental. Emmanuelle Charpentier estudava a bactéria Streptococcus pyogenes e acabou descobrindo uma molécula até então desconhecida, a tracrRNA. A proteína fazia parte do antigo sistema imunológico da bactéria e era capaz de desarmar vírus, cortando seu DNA.
Emmanuelle publicou sua descoberta em 2011. No mesmo ano, ela começou a trabalhar com Jennifer Doudna, uma experiente bioquímica com vasto conhecimento em RNA. Juntas, elas conseguiram demonstrar que a proteína seria capaz de cortar qualquer gene, não apenas o de vírus. Elas, então, recriaram as tesouras genéticas em laboratório, simplificando seus componentes de forma a torná-las mais fáceis de usar e mais precisas.
"Esta não é a única ferramenta de edição genética, havia outras antes dela", explicou Martin Bonamino, que é pesquisador do Instituto Nacional do Câncer (Inca) e da Fiocruz e trabalha com engenharia genética. "Mas ela funciona de forma muito diferente de suas antecessoras, é muito mais simples. Por isso todo mundo começou a usar imediatamente. E ela tem tanto impacto porque se aplica às mais diversas áreas."
Desde o início as pesquisadoras reconheceram os potenciais problemas éticos e perigos da tecnologia que tinham criado. Em 2017 Jennifer co-escreveu o livro "A crack in creation", no qual descreve tanto as perspectivas positivas da ferramenta, quanto seus perigos.
"Como comunidade, precisamos reconhecer que estamos usando uma tecnologia muito poderosa", afirmou Jennifer em entrevista nesta quarta-feira. "Espero que esse anúncio ajude a promover essa ideia."
Para Martin Bonamino, a grande discussão atual é estabelecer os limites éticos do uso da ferramenta. "Existe um consenso na comunidade de que atualmente não se deve fazer edição genética em embriões humanos; a ferramenta funciona muito bem, é muito precisa, mas não é infalível. Então, não é um risco aceitável", afirmou. "Mas mesmo que a ferramenta se torne ainda mais precisa, uma segunda camada de discussão seria para determinar em que casos ela poderia ser usada."