A real porcentagem de pessoas já infectadas pelo novo coronavírus começou a ser medida no Brasil. No Estado do Rio Grande do Sul, esse número é de 0,22% da população, na cidade de Ribeirão Preto, 1,2%, e nas áreas mais afetadas da cidade de São Paulo, 5,2%. Esta semana vai ser divulgado um estudo que cobre todo o Brasil. À medida que esse número for subindo, as mortes aumentam, mas fica mais seguro relaxar as medidas de distanciamento. Só por esse motivo vale a pena entender como a famosa imunidade de rebanho funciona durante uma pandemia.
Imagine um país com 100 milhões de habitantes no qual 99 milhões (99%) já foram infectadas pelo coronavírus e possuem algum tipo de imunidade. Imagine agora que uma pessoa infectada chegue ao país e comece a espalhar o vírus. No aeroporto, ela vai ficar próxima de dez pessoas, mas provavelmente todas já são resistentes, no hotel acontece a mesma coisa, e assim por diante. Como essa pessoa transmite o vírus por somente uma ou duas semanas e vai passar parte desse tempo de cama, é bem provável que ela não espirre perto de nenhum dos 1 milhão de pessoas (1%) que ainda não foram infectadas pelo vírus. Nesse caso, ela vai se curar sem infectar nenhuma outra pessoa. Nessas condições os epidemiologistas dizem que aquele 1 milhão de pessoas suscetíveis, que ainda podem pegar o vírus, estão protegidas do contágio pelas 99% que já foram infectadas. Essa proteção oferecida pelos já infectados aos ainda não infectados é o que chamamos de imunidade do rebanho.
Agora imagine o contrário. Nesse país, imaginário somente 1% das pessoas já foram infectadas, as outras 99% estão a mercê do vírus. É possível que nosso viajante hipotético infecte duas ou três pessoas na sua estadia e inicie um novo foco de infecções. Examinando esse exemplo fica claro que cada pessoa já infectada gera uma pequena proteção para todas as outras, mas essa proteção é minúscula. Assim, à medida que mais pessoas são infectadas, e se tornam resistentes, maior a proteção que elas oferecem à população (o rebanho).
Mas qual é a porcentagem das pessoas que precisam ser infectadas para que essa proteção tenha um efeito relevante? Esse número depende da capacidade do vírus de se espalhar. Se ele se espalha facilmente, esse efeito só vai ser sentido quando uma grande parte da população já tiver sido infectada. Por outro lado, se o vírus se espalha com dificuldade, a proteção é observada com uma fração menor da população tendo sido infectada. A facilidade com que um vírus se espalha é medida por um número chamado R0 (o número de pessoas infectada por uma pessoa infectada logo no início da epidemia, antes da implementação das medidas de controle). A formula para calcular a fração da população que precisa ser resistente para observarmos um efeito relevante é a seguinte: IR=1-(1/R0).
No caso do novo coronavírus se acredita que o R0 está entre 2,5 e 3,5, portanto a porcentagem das pessoas que precisam ser infectadas para observarmos um efeito pronunciado da imunidade de rebanho está entre 60% e 71%. Essa conta é válida para populações homogêneas onde todos os indivíduos são idênticos e tem a mesma capacidade de propagação do vírus, ou a mesma susceptibilidade à doença. Já foi demonstrado que esse número pode ser bem menor se a heterogeneidade da população for alta. Esse fenômeno já foi observado em diversas doenças, inclusive na malária aqui no Brasil. Assim, pode ser que venhamos a atingir a imunidade de rebanho antes de 60% da população ter sido infectada.
Esses modelos sugerem que a porcentagem necessária para obtermos a imunidade de rebanho podem ser significativamente menores, se a heterogeneidade da população for alta. Nós sabemos que a população é heterogênea no que se refere a sua susceptibilidade ao vírus (veja o que acontece com crianças e idosos ou a diferença entre homens e mulheres), mas não sabemos o grau de heterogeneidade da população. Assim, é quase certeza que a imunidade do rebanho para o novo coronavírus será atingida antes de 60 ou 70% da população ser infectada, mas ainda não sabemos qual esse número. Isso vai depender de estudos que determinem a heterogeneidade da população.
A porcentagem mais alta de pessoas infectadas no Brasil até agora foi de 5,2% nos seis distritos que possuem mais casos e óbitos da doença em São Paulo. Nessa área de São Paulo, para atingirmos 60% faltam ainda 55 pontos percentuais. Quando olhamos o número 5,2% podemos imaginar que esse número é baixo, pois 95% da população ainda não foi infectada. Mas é bom lembrar que os dados da prefeitura mostram que o número de casos aumentou 1,88 vezes nos últimos 15 dias (passou de 20.464 em 3 de maio para 38.605 em 17 de maio). E isso durante a vigência das medidas de isolamento social.
Se a epidemia continuar a progredir nessa velocidade, teremos 9,7% da população infectada em mais 15 dias, 18,3% em 30 dias e 65% em exatos dois meses. Ou seja, se tudo continuar como está, chegaremos à imunidade de rebanho em dois meses. É claro que se epidemia continuar a progredir nessa velocidade, o número de mortes será enorme e seguramente, muito antes de dois meses, o sistema de saúde estará completamente de joelhos. O interessante é fazer essa mesma conta com os números do Rio Grande do Sul, que tem hoje 0,22% da população infectada. Em dois meses, se os números forem multiplicados por 1,88 a cada duas semanas, o Rio Grande do Sul terá 2,75%. Isso mostra como um crescimento em progressão geométrica engana. O Rio Grande do Sul só atingirá os números que São Paulo tem hoje aproximadamente duas semanas depois de São Paulo atingir 65%.
O que esses resultados mostram é que 5,2% de pessoas infectadas em uma epidemia que se alastra a uma taxa de 1,88 vezes a cada duas semanas é um número extremamente alto.
Mais informações: Individual variation in susceptibility or exposure to SARS-CoV-2 lowers the herd immunity threshold.
*É BIÓLOGO