Foi numa mesa de restaurante, no hospital onde estudava em Nova York. Éramos cinco ou seis estudantes de pós-graduação. Tínhamos saído de uma reunião do corpo clínico do hospital. Havíamos discutido os primeiros cem casos de pacientes com o que viria a ser chamado de aids. Esses pacientes, todos homossexuais do Village, haviam morrido de maneira horrível, com todos os tipos de infecções decorrentes da aids. Na época já sabíamos que a doença era transmissível. Não se tinha certeza se havia um vírus associado a ela, não havia teste confiável, e os primeiros medicamentos estavam anos no futuro.
A conversa na mesa era de cunho prático. Com a aids se espalhando rapidamente por Manhattan, debatíamos se deveríamos mudar nossos hábitos sexuais. Éramos de uma geração que havia perdido o medo das doenças sexualmente transmissíveis (na época todas curáveis) e adeptos da pílula anticoncepcional e do amor livre. Havíamos crescido após a revolução sexual dos anos 60.
Parte da mesa argumentava que não mudaria seu comportamento: a probabilidade de um estudante heterossexual contrair a doença em um encontro ocasional era zero. A doença ainda era rara, só afetava homossexuais e só um grupo altamente promíscuo. Como o risco era zero, não iriam se submeter ao desconforto de uma camisinha. O segundo grupo concordava que o risco de contrair a doença era baixíssimo, quase zero, mas não era zero, e a consequência de um contágio era a morte certa após um sofrimento horrendo, como havíamos visto naquela manhã. Estes haviam decidido adotar a camisinha.
Depois de muita discussão chegamos à conclusão que usar ou não camisinha dependia do resultado de uma multiplicação entre dois números desconhecidos. O primeiro era a probabilidade de contrair a doença em um único ato sexual (vamos chamar de P, que varia entre 0 e 1), e o segundo é o valor que atribuímos à nossa vida (vamos chamar de M). Se o produto dessa multiplicação fosse igual a zero, não deveríamos usar camisinha. Para isso ocorrer, P ou M tem de ser zero. Se P é zero, não existe a hipótese de se contaminar, e se M é zero, você acredita que sua vida vale zero e assim o valor de P é irrelevante. Mas, se esse número se aproximasse de M, a camisinha era indispensável. Agora leitor, pegue um papel e faça as contas. Você verá que, se o valor que atribuímos à nossa vida beira o infinito, mesmo valores de P próximos a zero são inaceitáveis.
Tudo isso para dizer que construir barragens para conter resíduos letais próximo da cabeceira de um grande rio é o equivalente a fazer sexo sem camisinha. Ou você tem certeza de que a probabilidade de rompimento é zero, e aí o valor que atribuímos ao rio, sua biodiversidade e seus serviços ambientais é irrelevante, pois eles jamais estarão em risco, ou você sabe que o risco, apesar de baixo, não é zero e sua decisão de permitir ou não a construção desse tipo de barragem vai depender do valor que você atribui à vida desse rio.
No passado, o valor atribuído pela sociedade a um rio era baixo e os benefícios econômicos desse tipo de projeto facilmente justificavam o risco. Mas, à medida que o tempo passa e vamos destruindo nossa querida Terra, o valor que atribuímos aos rios e ao meio ambiente tem aumentado. Por isso, riscos que eram aceitáveis agora são impensáveis. Em outras palavras, provavelmente todas as barragens desse tipo terão de ser desativadas. E essa não é uma decisão muito diferente da que foi tomada pela Alemanha, que com base no que aconteceu em Fukushima, no Japão, resolveu desativar seus reatores nucleares, mesmo sem ter sofrido um único acidente. Eles concluíram que o risco não era zero e as consequência beiravam o infinito.
Pelo mesmo motivo que decidimos pelo uso da camisinha, a Alemanha decidiu desativar seus reatores nucleares e nossas mineradoras terão de desmontar as armadilhas que estão na cabeceira dos rios. O risco desses projetos é baixo, mas o valor do que é ameaçado beira o infinito.