Opinião|A inteligência artificial vai substituir o técnico que faz o seu exame cardíaco?


Estudo publicado esta semana demonstra que sistemas de AI são melhores que seres humanos para medir a fração de ejeção do coração

Por Fernando Reinach

Nas últimas décadas, robôs industriais substituíram muitos trabalhadores. Numa linha de montagem, um robô programado para colocar e aparafusar as rodas num carro é mais rápido e barato que um ser humano e ainda pode trabalhar 24 horas por dia. Essas máquinas substituíram o trabalho braçal destruindo empregos. Mas também criaram empregos que exigiam menos trabalho físico e mais trabalho intelectual, como o de programar e consertar os robôs.

Agora, com o aparecimento de sistemas cada vez mais sofisticados de inteligência artificial (AI), são os trabalhos que envolvem atividades intelectuais sofisticadas que podem desaparecer. Um deles é o de técnicos especializados em exames de ultrassonografia cardíaca (ecocardiograma). Um estudo publicado esta semana demonstra que sistemas de AI são melhores que seres humanos para medir a fração de ejeção do coração humano, uma medida muito importante usada para avaliar o funcionamento do coração e para decidir qual o tratamento mais adequado para cada paciente.

Nosso coração é basicamente composto por duas bombas. Do lado direito do coração temos uma bomba que recebe o sangue do corpo e o bombeia para o pulmão. Ao sair do pulmão, o sangue chega ao lado esquerdo do coração, um pouco maior que o direito, e responsável por bombear o sangue de volta para todo o corpo, do seu dedão do pé até os recônditos do cérebro. O ventrículo esquerdo é que impulsiona o sangue. Ele pode ser descrito como um saco com paredes feitas de músculo.

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Numa pessoa normal, ele se enche de sangue (aproximadamente 142 mililitros) e, em seguida, contrai e expulsa o sangue em direção ao corpo. Mas ele não expulsa todo o sangue, aproximadamente 47 mililitros ficam no ventrículo e 95 mililitros são bombeados. Isso ocorre a cada batida do coração. Uma medida importante para os médicos é a chamada fração de ejeção, a fração do sangue que está no ventrículo que é bombeada em direção ao corpo. Esse valor em geral é de 0,67 em pessoas normais (95/142). Se o músculo cardíaco está enfraquecido por qualquer motivo (um infarto do miocárdio é um exemplo), a fração de ejeção é menor e o coração tem maior dificuldade em enviar sangue para o corpo.

A fração de ejeção é medida em um exame chamado de ecocardiografia, usando um equipamento de ultrassom que permite filmar em tempo real e ao vivo o ventrículo esquerdo se dilatando e contraindo. De posse do filme, um técnico especializado escolhe as imagens que mostram o coração cheio de sangue (antes da contração) e no ponto máximo da contração. Usando essas imagens, o técnico mede várias distâncias e com base nelas estima o volume da cavidade cheia de sangue (seriam os 142 mililitros em pessoas saudáveis) e da cavidade no final da contração (seriam os 47 mililitros). Com esses números, fica fácil calcular a fração de ejeção.

O problema desse método é que é difícil escolher os pontos que serão usados para calcular as distâncias e, consequentemente, os volumes. Por esse motivo, geralmente um técnico muito experiente escolhe os pontos e faz a medida, e um cardiologista experiente revisa os pontos e os valores e emite o laudo com a fração de ejeção.

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Em estudo, cardiologistas foram incapazes de distinguir se os dados haviam sido obtidos pelo sistema de Inteligência Artificial ou por um técnico. Foto: Kentaro Takahashi/The New York Times

Nos últimos anos, foi desenvolvido um sistema de inteligência artificial que faz tudo isso sozinho. Agora foi publicado um trabalho que compara a precisão obtida utilizando o método tradicional (um técnico experiente de ultrassonografia) com o sistema de AI. Para tanto, foram utilizados 3.769 filmes de ecocardiograma de diferentes pacientes – 274 foram descartados devido a sua baixa qualidade. Dos restantes, 1.755 foram analisados por técnicos muitos experientes (média de 14 anos de experiência) e 1.740 foram analisados pelo sistema de AI.

Feito isso, todos os dados (fotos usadas, pontos escolhidos, medidas determinadas) foram revisados por cardiologistas muito experientes (13 anos de experiência). Uma parte importante do estudo é que os cardiologistas que revisaram os dados não sabiam se as medidas haviam sido feitas pelo sistema da AI ou pelos técnicos experientes. Esses médicos cardiologistas revisavam os dados e os modificavam se identificavam problemas. Quando tudo estava terminado, o segredo de quem havia feito as medidas foi aberto e os dados, comparados.

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O resultado mostra que os cardiologistas eram incapazes de distinguir se os dados haviam sido obtidos pelo sistema de AI ou por um técnico. Além disso, os cardiologistas precisaram rever um número menor dos exames feitos pelos sistemas de AI. E mais, como todos esses exames já tinham sido processados anteriormente, foi possível demonstrar que o sistema de AI faz as medidas tão bem quanto, ou talvez um pouco melhor, que os técnicos experientes.

Esse estudo demonstra que é possível substituir técnicos muito experientes por um sistema da AI, que erra menos, e é mais barato. E utilizar os cardiologistas somente para rever os dados. Ou seja, num futuro próximo a tarefa de escolher a imagem e os pontos para medir deixará de ser feita pelos técnicos. Parte desses empregos desaparecerá.

Esse é um bom exemplo de um sistema de AI que vai substituir o trabalho intelectual de um ser humano com muitos anos de treinamento e experiência. Ele também mostra como é possível comparar de forma objetiva uma atividade intelectual humana com a mesma atividade executada por um sistema de AI. A grande questão é quantos postos de trabalho desaparecerão nos próximos anos nos diversos setores da economia.

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Mais informações: Blinded, randomized trial of sonographer versus AI cardiac function assessment. Nature 2023

Nas últimas décadas, robôs industriais substituíram muitos trabalhadores. Numa linha de montagem, um robô programado para colocar e aparafusar as rodas num carro é mais rápido e barato que um ser humano e ainda pode trabalhar 24 horas por dia. Essas máquinas substituíram o trabalho braçal destruindo empregos. Mas também criaram empregos que exigiam menos trabalho físico e mais trabalho intelectual, como o de programar e consertar os robôs.

Agora, com o aparecimento de sistemas cada vez mais sofisticados de inteligência artificial (AI), são os trabalhos que envolvem atividades intelectuais sofisticadas que podem desaparecer. Um deles é o de técnicos especializados em exames de ultrassonografia cardíaca (ecocardiograma). Um estudo publicado esta semana demonstra que sistemas de AI são melhores que seres humanos para medir a fração de ejeção do coração humano, uma medida muito importante usada para avaliar o funcionamento do coração e para decidir qual o tratamento mais adequado para cada paciente.

Nosso coração é basicamente composto por duas bombas. Do lado direito do coração temos uma bomba que recebe o sangue do corpo e o bombeia para o pulmão. Ao sair do pulmão, o sangue chega ao lado esquerdo do coração, um pouco maior que o direito, e responsável por bombear o sangue de volta para todo o corpo, do seu dedão do pé até os recônditos do cérebro. O ventrículo esquerdo é que impulsiona o sangue. Ele pode ser descrito como um saco com paredes feitas de músculo.

Numa pessoa normal, ele se enche de sangue (aproximadamente 142 mililitros) e, em seguida, contrai e expulsa o sangue em direção ao corpo. Mas ele não expulsa todo o sangue, aproximadamente 47 mililitros ficam no ventrículo e 95 mililitros são bombeados. Isso ocorre a cada batida do coração. Uma medida importante para os médicos é a chamada fração de ejeção, a fração do sangue que está no ventrículo que é bombeada em direção ao corpo. Esse valor em geral é de 0,67 em pessoas normais (95/142). Se o músculo cardíaco está enfraquecido por qualquer motivo (um infarto do miocárdio é um exemplo), a fração de ejeção é menor e o coração tem maior dificuldade em enviar sangue para o corpo.

A fração de ejeção é medida em um exame chamado de ecocardiografia, usando um equipamento de ultrassom que permite filmar em tempo real e ao vivo o ventrículo esquerdo se dilatando e contraindo. De posse do filme, um técnico especializado escolhe as imagens que mostram o coração cheio de sangue (antes da contração) e no ponto máximo da contração. Usando essas imagens, o técnico mede várias distâncias e com base nelas estima o volume da cavidade cheia de sangue (seriam os 142 mililitros em pessoas saudáveis) e da cavidade no final da contração (seriam os 47 mililitros). Com esses números, fica fácil calcular a fração de ejeção.

O problema desse método é que é difícil escolher os pontos que serão usados para calcular as distâncias e, consequentemente, os volumes. Por esse motivo, geralmente um técnico muito experiente escolhe os pontos e faz a medida, e um cardiologista experiente revisa os pontos e os valores e emite o laudo com a fração de ejeção.

Em estudo, cardiologistas foram incapazes de distinguir se os dados haviam sido obtidos pelo sistema de Inteligência Artificial ou por um técnico. Foto: Kentaro Takahashi/The New York Times

Nos últimos anos, foi desenvolvido um sistema de inteligência artificial que faz tudo isso sozinho. Agora foi publicado um trabalho que compara a precisão obtida utilizando o método tradicional (um técnico experiente de ultrassonografia) com o sistema de AI. Para tanto, foram utilizados 3.769 filmes de ecocardiograma de diferentes pacientes – 274 foram descartados devido a sua baixa qualidade. Dos restantes, 1.755 foram analisados por técnicos muitos experientes (média de 14 anos de experiência) e 1.740 foram analisados pelo sistema de AI.

Feito isso, todos os dados (fotos usadas, pontos escolhidos, medidas determinadas) foram revisados por cardiologistas muito experientes (13 anos de experiência). Uma parte importante do estudo é que os cardiologistas que revisaram os dados não sabiam se as medidas haviam sido feitas pelo sistema da AI ou pelos técnicos experientes. Esses médicos cardiologistas revisavam os dados e os modificavam se identificavam problemas. Quando tudo estava terminado, o segredo de quem havia feito as medidas foi aberto e os dados, comparados.

O resultado mostra que os cardiologistas eram incapazes de distinguir se os dados haviam sido obtidos pelo sistema de AI ou por um técnico. Além disso, os cardiologistas precisaram rever um número menor dos exames feitos pelos sistemas de AI. E mais, como todos esses exames já tinham sido processados anteriormente, foi possível demonstrar que o sistema de AI faz as medidas tão bem quanto, ou talvez um pouco melhor, que os técnicos experientes.

Esse estudo demonstra que é possível substituir técnicos muito experientes por um sistema da AI, que erra menos, e é mais barato. E utilizar os cardiologistas somente para rever os dados. Ou seja, num futuro próximo a tarefa de escolher a imagem e os pontos para medir deixará de ser feita pelos técnicos. Parte desses empregos desaparecerá.

Esse é um bom exemplo de um sistema de AI que vai substituir o trabalho intelectual de um ser humano com muitos anos de treinamento e experiência. Ele também mostra como é possível comparar de forma objetiva uma atividade intelectual humana com a mesma atividade executada por um sistema de AI. A grande questão é quantos postos de trabalho desaparecerão nos próximos anos nos diversos setores da economia.

Mais informações: Blinded, randomized trial of sonographer versus AI cardiac function assessment. Nature 2023

Nas últimas décadas, robôs industriais substituíram muitos trabalhadores. Numa linha de montagem, um robô programado para colocar e aparafusar as rodas num carro é mais rápido e barato que um ser humano e ainda pode trabalhar 24 horas por dia. Essas máquinas substituíram o trabalho braçal destruindo empregos. Mas também criaram empregos que exigiam menos trabalho físico e mais trabalho intelectual, como o de programar e consertar os robôs.

Agora, com o aparecimento de sistemas cada vez mais sofisticados de inteligência artificial (AI), são os trabalhos que envolvem atividades intelectuais sofisticadas que podem desaparecer. Um deles é o de técnicos especializados em exames de ultrassonografia cardíaca (ecocardiograma). Um estudo publicado esta semana demonstra que sistemas de AI são melhores que seres humanos para medir a fração de ejeção do coração humano, uma medida muito importante usada para avaliar o funcionamento do coração e para decidir qual o tratamento mais adequado para cada paciente.

Nosso coração é basicamente composto por duas bombas. Do lado direito do coração temos uma bomba que recebe o sangue do corpo e o bombeia para o pulmão. Ao sair do pulmão, o sangue chega ao lado esquerdo do coração, um pouco maior que o direito, e responsável por bombear o sangue de volta para todo o corpo, do seu dedão do pé até os recônditos do cérebro. O ventrículo esquerdo é que impulsiona o sangue. Ele pode ser descrito como um saco com paredes feitas de músculo.

Numa pessoa normal, ele se enche de sangue (aproximadamente 142 mililitros) e, em seguida, contrai e expulsa o sangue em direção ao corpo. Mas ele não expulsa todo o sangue, aproximadamente 47 mililitros ficam no ventrículo e 95 mililitros são bombeados. Isso ocorre a cada batida do coração. Uma medida importante para os médicos é a chamada fração de ejeção, a fração do sangue que está no ventrículo que é bombeada em direção ao corpo. Esse valor em geral é de 0,67 em pessoas normais (95/142). Se o músculo cardíaco está enfraquecido por qualquer motivo (um infarto do miocárdio é um exemplo), a fração de ejeção é menor e o coração tem maior dificuldade em enviar sangue para o corpo.

A fração de ejeção é medida em um exame chamado de ecocardiografia, usando um equipamento de ultrassom que permite filmar em tempo real e ao vivo o ventrículo esquerdo se dilatando e contraindo. De posse do filme, um técnico especializado escolhe as imagens que mostram o coração cheio de sangue (antes da contração) e no ponto máximo da contração. Usando essas imagens, o técnico mede várias distâncias e com base nelas estima o volume da cavidade cheia de sangue (seriam os 142 mililitros em pessoas saudáveis) e da cavidade no final da contração (seriam os 47 mililitros). Com esses números, fica fácil calcular a fração de ejeção.

O problema desse método é que é difícil escolher os pontos que serão usados para calcular as distâncias e, consequentemente, os volumes. Por esse motivo, geralmente um técnico muito experiente escolhe os pontos e faz a medida, e um cardiologista experiente revisa os pontos e os valores e emite o laudo com a fração de ejeção.

Em estudo, cardiologistas foram incapazes de distinguir se os dados haviam sido obtidos pelo sistema de Inteligência Artificial ou por um técnico. Foto: Kentaro Takahashi/The New York Times

Nos últimos anos, foi desenvolvido um sistema de inteligência artificial que faz tudo isso sozinho. Agora foi publicado um trabalho que compara a precisão obtida utilizando o método tradicional (um técnico experiente de ultrassonografia) com o sistema de AI. Para tanto, foram utilizados 3.769 filmes de ecocardiograma de diferentes pacientes – 274 foram descartados devido a sua baixa qualidade. Dos restantes, 1.755 foram analisados por técnicos muitos experientes (média de 14 anos de experiência) e 1.740 foram analisados pelo sistema de AI.

Feito isso, todos os dados (fotos usadas, pontos escolhidos, medidas determinadas) foram revisados por cardiologistas muito experientes (13 anos de experiência). Uma parte importante do estudo é que os cardiologistas que revisaram os dados não sabiam se as medidas haviam sido feitas pelo sistema da AI ou pelos técnicos experientes. Esses médicos cardiologistas revisavam os dados e os modificavam se identificavam problemas. Quando tudo estava terminado, o segredo de quem havia feito as medidas foi aberto e os dados, comparados.

O resultado mostra que os cardiologistas eram incapazes de distinguir se os dados haviam sido obtidos pelo sistema de AI ou por um técnico. Além disso, os cardiologistas precisaram rever um número menor dos exames feitos pelos sistemas de AI. E mais, como todos esses exames já tinham sido processados anteriormente, foi possível demonstrar que o sistema de AI faz as medidas tão bem quanto, ou talvez um pouco melhor, que os técnicos experientes.

Esse estudo demonstra que é possível substituir técnicos muito experientes por um sistema da AI, que erra menos, e é mais barato. E utilizar os cardiologistas somente para rever os dados. Ou seja, num futuro próximo a tarefa de escolher a imagem e os pontos para medir deixará de ser feita pelos técnicos. Parte desses empregos desaparecerá.

Esse é um bom exemplo de um sistema de AI que vai substituir o trabalho intelectual de um ser humano com muitos anos de treinamento e experiência. Ele também mostra como é possível comparar de forma objetiva uma atividade intelectual humana com a mesma atividade executada por um sistema de AI. A grande questão é quantos postos de trabalho desaparecerão nos próximos anos nos diversos setores da economia.

Mais informações: Blinded, randomized trial of sonographer versus AI cardiac function assessment. Nature 2023

Opinião por Fernando Reinach

Biólogo, PHD em Biologia Celular e Molecular pela Cornell University e autor de "A Chegada do Novo Coronavírus no Brasil"; "Folha de Lótus, Escorregador de Mosquito"; e "A Longa Marcha dos Grilos Canibais"

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