Opinião|Como combater o desmatamento de maneira rápida, barata e eficiente


Satélites usados pelo MapBiomas detectam áreas menores que um quarteirão, mas com os mais modernos uma área de 10 metros quadrados poderia ser detectada; eles têm a função dos radares nas estradas

Por Fernando Reinach
Atualização:

Ninguém gosta dos radares espalhados pelas ruas e estradas, mas é inegável que eles inibem o excesso de velocidade e outras infrações de trânsito. Agora um sistema equivalente vai fazer o mesmo com o desmatamento. Entre 2019 e 2021, os diversos sistemas de monitoramento por satélites (entre eles o do INPE e do MapBiomas) produziram mais de 200 mil alertas de desmatamento, totalizando 4,3 milhões de hectares desmatados. Desses, 98% são ilegais ou irregulares. Somente 7% foram investigados

Basta ver o número de 200 mil para compreender que atuações com visitas aos locais desmatados (geralmente no meio da floresta) são tarefa difícil e impossível de ser feita em larga escala. Da mesma maneira é impossível multar com binóculo e cronômetro todos os carros que trafegam em alta velocidade. A solução é um sistema automático. A novidade é que um sistema desses já foi testado e pode ser implantado rapidamente em nível nacional.

Os radares, a possibilidade de identificar a placa do veículo infrator, e o sistema de pontos na carteira do motorista, garantem que se você passar na frente de um radar em alta velocidade, uma multa chegará automaticamente na sua casa. E se você repetir a proeza pode perder a carta ou tornar seu carro invendável. Esse sistema também acabou com a corrupção nas estradas.

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Área desmatada na região entre Sinop e Brasnorte, em Mato Grosso FOTO TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO 

Agora uma tecnologia semelhante vai infernizar a vida dos desmatadores ilegais e ajudar a preservar nossas florestas. Basta os governos adotarem a cartilha que detalha um sistema que já vem sendo usado experimentalmente em alguns Estados e agora foi publicada pela ONG MapBiomas. Faz tempo que defendo essa ideia, mas agora ela virou realidade.

Funciona assim: satélites revisitam e fotografam semanalmente cada pedaço do território brasileiro. As fotos de cada passagem sobre uma área são comparadas com as fotos tiradas no passado. Se um área de floresta nativa desapareceu entre uma data e outra, essa é uma área de possível desmatamento irregular. Quanto mais poderosos os satélites, menor a área desmatada que pode ser detectada. Hoje os satélites usados pelo MapBiomas detectam áreas menores que um quarteirão, mas com os satélites mais modernos uma área de 10 metros quadrados poderia ser detectada. Esses satélites têm a função dos radares nas estradas.

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O passo seguinte é identificar a área e seu dono ou responsável legal. Isso é feito usando as coordenadas da área desmatada. Os satélites possuem um sistema de GPS capaz de dizer exatamente onde o desmatamento está ocorrendo. Esse sistema é o equivalente a capacidade dos radares de estradas fotografarem o carro e identificarem automaticamente a placa do veículo.

Identificadas as coordenadas geográficas, um computador busca nos bancos de dados do CAR (Cadastro Ambiental Rural) o dono ou responsável pela área. O CAR é um documento obrigatório disponível na internet que indica, em cada propriedade, as coordenadas da propriedade, das áreas de preservação permanente, e das reservas legais. Esse sistema também indica os limites de Terras Indígenas, parques, e outros tipos de ocupação do solo. Lá está o CPF, o CNPJ e o endereço do responsável pela área. Essa parte do sistema é o equivalente ao sistema do Detran que relaciona a placa de um carro ao seu dono e ao endereço do dono.

De posse desses dados os órgãos ambientais podem emitir e enviar automaticamente notificações de embargo no caso do desmatamento não ter sido autorizado e, portanto, depositado no banco de dados dos desmatamentos legais. Esse embargo pode ser contestado, mas na prática ele proíbe qualquer venda da área ou processo de legalização fundiária decorrente de grilagens. Além disso impede que o dono da área tenha acesso a empréstimos ou financiamentos. É o equivalente ao bloqueio do licenciamento ou venda de carros com multas pendentes. O sistema também pode identificar os donos de áreas que ainda não possuem o CAR.

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O guia publicado pelo MapBiomas fornece uma espécie de passo-a-passo de como os órgãos de fiscalização podem usar essas ferramentas já disponíveis. Descreve os cuidados necessários para seu uso, discute a legislação que lastreia seu uso e sua validade perante a justiça. E mostra como alguns Estados já estão usando experimentalmente, e com sucesso, essa metodologia (Mato Grosso, Pará, Goiás, Amazonas e Paraná).

Esse sistema está pronto para ser usado em larga escala em todo o território nacional e, como é praticamente automático, e pode ser feito remotamente (sem visita à área desmatada), é capaz de embargar as quase 65 mil áreas de desmatamento ilegal detectadas a cada ano. Claro que o embargo tem que ser seguido da aplicação de multas e, em muitos casos, de visitas ao local, confisco de equipamentos e prisão em flagrante dos responsáveis. Mas todos acreditam que um embargo rápido, bem calçado em evidências obtidas com satélites, e com força jurídica, tem a capacidade de inibir grande parte dos desmatamentos ilegais.

O único problema dessa metodologia é que grande parte dos desmates detectados ocorre em terras da União ou em reservas administradas pelos governos. Nesses casos a União pode simplesmente ignorar o embargo, não agir e não coibir o desmatamento em suas áreas. Mas nesse caso, como essas terras pertencem a toda a nação, e o governo tem o dever constitucional de protege-las, a solução é processar o governo no Supremo Tribunal Federal com base nos embargos.

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A publicação desse guia demonstra que o Brasil dispõe hoje de leis e um sistema tecnológico que pode diminuir rapidamente o desmate de nossas florestas. Cabe aos novos governantes estaduais e federais implementar rapidamente (a um custo baixíssimo) algo que já esta pronto, já foi testado, e tem bases jurídicas sólidas. Fica a dica para a equipe de transição.

Mais informações: https://mapbiomas.org/embargos-remotos-de-areas-desmatadas-podem-acelerar-fiscalizacao-ambiental-no-brasil

*É BIÓLOGO, PHD EM BIOLOGIA CELULAR E MOLECULAR PELA CORNELL UNIVERSITY E AUTOR DE A CHEGADA DO NOVO CORONAVÍRUS NO BRASIL; FOLHA DE LÓTUS, ESCORREGADOR DE MOSQUITO; E A LONGA MARCHA DOS GRILOS CANIBAIS

Ninguém gosta dos radares espalhados pelas ruas e estradas, mas é inegável que eles inibem o excesso de velocidade e outras infrações de trânsito. Agora um sistema equivalente vai fazer o mesmo com o desmatamento. Entre 2019 e 2021, os diversos sistemas de monitoramento por satélites (entre eles o do INPE e do MapBiomas) produziram mais de 200 mil alertas de desmatamento, totalizando 4,3 milhões de hectares desmatados. Desses, 98% são ilegais ou irregulares. Somente 7% foram investigados

Basta ver o número de 200 mil para compreender que atuações com visitas aos locais desmatados (geralmente no meio da floresta) são tarefa difícil e impossível de ser feita em larga escala. Da mesma maneira é impossível multar com binóculo e cronômetro todos os carros que trafegam em alta velocidade. A solução é um sistema automático. A novidade é que um sistema desses já foi testado e pode ser implantado rapidamente em nível nacional.

Os radares, a possibilidade de identificar a placa do veículo infrator, e o sistema de pontos na carteira do motorista, garantem que se você passar na frente de um radar em alta velocidade, uma multa chegará automaticamente na sua casa. E se você repetir a proeza pode perder a carta ou tornar seu carro invendável. Esse sistema também acabou com a corrupção nas estradas.

Área desmatada na região entre Sinop e Brasnorte, em Mato Grosso FOTO TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO 

Agora uma tecnologia semelhante vai infernizar a vida dos desmatadores ilegais e ajudar a preservar nossas florestas. Basta os governos adotarem a cartilha que detalha um sistema que já vem sendo usado experimentalmente em alguns Estados e agora foi publicada pela ONG MapBiomas. Faz tempo que defendo essa ideia, mas agora ela virou realidade.

Funciona assim: satélites revisitam e fotografam semanalmente cada pedaço do território brasileiro. As fotos de cada passagem sobre uma área são comparadas com as fotos tiradas no passado. Se um área de floresta nativa desapareceu entre uma data e outra, essa é uma área de possível desmatamento irregular. Quanto mais poderosos os satélites, menor a área desmatada que pode ser detectada. Hoje os satélites usados pelo MapBiomas detectam áreas menores que um quarteirão, mas com os satélites mais modernos uma área de 10 metros quadrados poderia ser detectada. Esses satélites têm a função dos radares nas estradas.

O passo seguinte é identificar a área e seu dono ou responsável legal. Isso é feito usando as coordenadas da área desmatada. Os satélites possuem um sistema de GPS capaz de dizer exatamente onde o desmatamento está ocorrendo. Esse sistema é o equivalente a capacidade dos radares de estradas fotografarem o carro e identificarem automaticamente a placa do veículo.

Identificadas as coordenadas geográficas, um computador busca nos bancos de dados do CAR (Cadastro Ambiental Rural) o dono ou responsável pela área. O CAR é um documento obrigatório disponível na internet que indica, em cada propriedade, as coordenadas da propriedade, das áreas de preservação permanente, e das reservas legais. Esse sistema também indica os limites de Terras Indígenas, parques, e outros tipos de ocupação do solo. Lá está o CPF, o CNPJ e o endereço do responsável pela área. Essa parte do sistema é o equivalente ao sistema do Detran que relaciona a placa de um carro ao seu dono e ao endereço do dono.

De posse desses dados os órgãos ambientais podem emitir e enviar automaticamente notificações de embargo no caso do desmatamento não ter sido autorizado e, portanto, depositado no banco de dados dos desmatamentos legais. Esse embargo pode ser contestado, mas na prática ele proíbe qualquer venda da área ou processo de legalização fundiária decorrente de grilagens. Além disso impede que o dono da área tenha acesso a empréstimos ou financiamentos. É o equivalente ao bloqueio do licenciamento ou venda de carros com multas pendentes. O sistema também pode identificar os donos de áreas que ainda não possuem o CAR.

O guia publicado pelo MapBiomas fornece uma espécie de passo-a-passo de como os órgãos de fiscalização podem usar essas ferramentas já disponíveis. Descreve os cuidados necessários para seu uso, discute a legislação que lastreia seu uso e sua validade perante a justiça. E mostra como alguns Estados já estão usando experimentalmente, e com sucesso, essa metodologia (Mato Grosso, Pará, Goiás, Amazonas e Paraná).

Esse sistema está pronto para ser usado em larga escala em todo o território nacional e, como é praticamente automático, e pode ser feito remotamente (sem visita à área desmatada), é capaz de embargar as quase 65 mil áreas de desmatamento ilegal detectadas a cada ano. Claro que o embargo tem que ser seguido da aplicação de multas e, em muitos casos, de visitas ao local, confisco de equipamentos e prisão em flagrante dos responsáveis. Mas todos acreditam que um embargo rápido, bem calçado em evidências obtidas com satélites, e com força jurídica, tem a capacidade de inibir grande parte dos desmatamentos ilegais.

O único problema dessa metodologia é que grande parte dos desmates detectados ocorre em terras da União ou em reservas administradas pelos governos. Nesses casos a União pode simplesmente ignorar o embargo, não agir e não coibir o desmatamento em suas áreas. Mas nesse caso, como essas terras pertencem a toda a nação, e o governo tem o dever constitucional de protege-las, a solução é processar o governo no Supremo Tribunal Federal com base nos embargos.

A publicação desse guia demonstra que o Brasil dispõe hoje de leis e um sistema tecnológico que pode diminuir rapidamente o desmate de nossas florestas. Cabe aos novos governantes estaduais e federais implementar rapidamente (a um custo baixíssimo) algo que já esta pronto, já foi testado, e tem bases jurídicas sólidas. Fica a dica para a equipe de transição.

Mais informações: https://mapbiomas.org/embargos-remotos-de-areas-desmatadas-podem-acelerar-fiscalizacao-ambiental-no-brasil

*É BIÓLOGO, PHD EM BIOLOGIA CELULAR E MOLECULAR PELA CORNELL UNIVERSITY E AUTOR DE A CHEGADA DO NOVO CORONAVÍRUS NO BRASIL; FOLHA DE LÓTUS, ESCORREGADOR DE MOSQUITO; E A LONGA MARCHA DOS GRILOS CANIBAIS

Ninguém gosta dos radares espalhados pelas ruas e estradas, mas é inegável que eles inibem o excesso de velocidade e outras infrações de trânsito. Agora um sistema equivalente vai fazer o mesmo com o desmatamento. Entre 2019 e 2021, os diversos sistemas de monitoramento por satélites (entre eles o do INPE e do MapBiomas) produziram mais de 200 mil alertas de desmatamento, totalizando 4,3 milhões de hectares desmatados. Desses, 98% são ilegais ou irregulares. Somente 7% foram investigados

Basta ver o número de 200 mil para compreender que atuações com visitas aos locais desmatados (geralmente no meio da floresta) são tarefa difícil e impossível de ser feita em larga escala. Da mesma maneira é impossível multar com binóculo e cronômetro todos os carros que trafegam em alta velocidade. A solução é um sistema automático. A novidade é que um sistema desses já foi testado e pode ser implantado rapidamente em nível nacional.

Os radares, a possibilidade de identificar a placa do veículo infrator, e o sistema de pontos na carteira do motorista, garantem que se você passar na frente de um radar em alta velocidade, uma multa chegará automaticamente na sua casa. E se você repetir a proeza pode perder a carta ou tornar seu carro invendável. Esse sistema também acabou com a corrupção nas estradas.

Área desmatada na região entre Sinop e Brasnorte, em Mato Grosso FOTO TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO 

Agora uma tecnologia semelhante vai infernizar a vida dos desmatadores ilegais e ajudar a preservar nossas florestas. Basta os governos adotarem a cartilha que detalha um sistema que já vem sendo usado experimentalmente em alguns Estados e agora foi publicada pela ONG MapBiomas. Faz tempo que defendo essa ideia, mas agora ela virou realidade.

Funciona assim: satélites revisitam e fotografam semanalmente cada pedaço do território brasileiro. As fotos de cada passagem sobre uma área são comparadas com as fotos tiradas no passado. Se um área de floresta nativa desapareceu entre uma data e outra, essa é uma área de possível desmatamento irregular. Quanto mais poderosos os satélites, menor a área desmatada que pode ser detectada. Hoje os satélites usados pelo MapBiomas detectam áreas menores que um quarteirão, mas com os satélites mais modernos uma área de 10 metros quadrados poderia ser detectada. Esses satélites têm a função dos radares nas estradas.

O passo seguinte é identificar a área e seu dono ou responsável legal. Isso é feito usando as coordenadas da área desmatada. Os satélites possuem um sistema de GPS capaz de dizer exatamente onde o desmatamento está ocorrendo. Esse sistema é o equivalente a capacidade dos radares de estradas fotografarem o carro e identificarem automaticamente a placa do veículo.

Identificadas as coordenadas geográficas, um computador busca nos bancos de dados do CAR (Cadastro Ambiental Rural) o dono ou responsável pela área. O CAR é um documento obrigatório disponível na internet que indica, em cada propriedade, as coordenadas da propriedade, das áreas de preservação permanente, e das reservas legais. Esse sistema também indica os limites de Terras Indígenas, parques, e outros tipos de ocupação do solo. Lá está o CPF, o CNPJ e o endereço do responsável pela área. Essa parte do sistema é o equivalente ao sistema do Detran que relaciona a placa de um carro ao seu dono e ao endereço do dono.

De posse desses dados os órgãos ambientais podem emitir e enviar automaticamente notificações de embargo no caso do desmatamento não ter sido autorizado e, portanto, depositado no banco de dados dos desmatamentos legais. Esse embargo pode ser contestado, mas na prática ele proíbe qualquer venda da área ou processo de legalização fundiária decorrente de grilagens. Além disso impede que o dono da área tenha acesso a empréstimos ou financiamentos. É o equivalente ao bloqueio do licenciamento ou venda de carros com multas pendentes. O sistema também pode identificar os donos de áreas que ainda não possuem o CAR.

O guia publicado pelo MapBiomas fornece uma espécie de passo-a-passo de como os órgãos de fiscalização podem usar essas ferramentas já disponíveis. Descreve os cuidados necessários para seu uso, discute a legislação que lastreia seu uso e sua validade perante a justiça. E mostra como alguns Estados já estão usando experimentalmente, e com sucesso, essa metodologia (Mato Grosso, Pará, Goiás, Amazonas e Paraná).

Esse sistema está pronto para ser usado em larga escala em todo o território nacional e, como é praticamente automático, e pode ser feito remotamente (sem visita à área desmatada), é capaz de embargar as quase 65 mil áreas de desmatamento ilegal detectadas a cada ano. Claro que o embargo tem que ser seguido da aplicação de multas e, em muitos casos, de visitas ao local, confisco de equipamentos e prisão em flagrante dos responsáveis. Mas todos acreditam que um embargo rápido, bem calçado em evidências obtidas com satélites, e com força jurídica, tem a capacidade de inibir grande parte dos desmatamentos ilegais.

O único problema dessa metodologia é que grande parte dos desmates detectados ocorre em terras da União ou em reservas administradas pelos governos. Nesses casos a União pode simplesmente ignorar o embargo, não agir e não coibir o desmatamento em suas áreas. Mas nesse caso, como essas terras pertencem a toda a nação, e o governo tem o dever constitucional de protege-las, a solução é processar o governo no Supremo Tribunal Federal com base nos embargos.

A publicação desse guia demonstra que o Brasil dispõe hoje de leis e um sistema tecnológico que pode diminuir rapidamente o desmate de nossas florestas. Cabe aos novos governantes estaduais e federais implementar rapidamente (a um custo baixíssimo) algo que já esta pronto, já foi testado, e tem bases jurídicas sólidas. Fica a dica para a equipe de transição.

Mais informações: https://mapbiomas.org/embargos-remotos-de-areas-desmatadas-podem-acelerar-fiscalizacao-ambiental-no-brasil

*É BIÓLOGO, PHD EM BIOLOGIA CELULAR E MOLECULAR PELA CORNELL UNIVERSITY E AUTOR DE A CHEGADA DO NOVO CORONAVÍRUS NO BRASIL; FOLHA DE LÓTUS, ESCORREGADOR DE MOSQUITO; E A LONGA MARCHA DOS GRILOS CANIBAIS

Ninguém gosta dos radares espalhados pelas ruas e estradas, mas é inegável que eles inibem o excesso de velocidade e outras infrações de trânsito. Agora um sistema equivalente vai fazer o mesmo com o desmatamento. Entre 2019 e 2021, os diversos sistemas de monitoramento por satélites (entre eles o do INPE e do MapBiomas) produziram mais de 200 mil alertas de desmatamento, totalizando 4,3 milhões de hectares desmatados. Desses, 98% são ilegais ou irregulares. Somente 7% foram investigados

Basta ver o número de 200 mil para compreender que atuações com visitas aos locais desmatados (geralmente no meio da floresta) são tarefa difícil e impossível de ser feita em larga escala. Da mesma maneira é impossível multar com binóculo e cronômetro todos os carros que trafegam em alta velocidade. A solução é um sistema automático. A novidade é que um sistema desses já foi testado e pode ser implantado rapidamente em nível nacional.

Os radares, a possibilidade de identificar a placa do veículo infrator, e o sistema de pontos na carteira do motorista, garantem que se você passar na frente de um radar em alta velocidade, uma multa chegará automaticamente na sua casa. E se você repetir a proeza pode perder a carta ou tornar seu carro invendável. Esse sistema também acabou com a corrupção nas estradas.

Área desmatada na região entre Sinop e Brasnorte, em Mato Grosso FOTO TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO 

Agora uma tecnologia semelhante vai infernizar a vida dos desmatadores ilegais e ajudar a preservar nossas florestas. Basta os governos adotarem a cartilha que detalha um sistema que já vem sendo usado experimentalmente em alguns Estados e agora foi publicada pela ONG MapBiomas. Faz tempo que defendo essa ideia, mas agora ela virou realidade.

Funciona assim: satélites revisitam e fotografam semanalmente cada pedaço do território brasileiro. As fotos de cada passagem sobre uma área são comparadas com as fotos tiradas no passado. Se um área de floresta nativa desapareceu entre uma data e outra, essa é uma área de possível desmatamento irregular. Quanto mais poderosos os satélites, menor a área desmatada que pode ser detectada. Hoje os satélites usados pelo MapBiomas detectam áreas menores que um quarteirão, mas com os satélites mais modernos uma área de 10 metros quadrados poderia ser detectada. Esses satélites têm a função dos radares nas estradas.

O passo seguinte é identificar a área e seu dono ou responsável legal. Isso é feito usando as coordenadas da área desmatada. Os satélites possuem um sistema de GPS capaz de dizer exatamente onde o desmatamento está ocorrendo. Esse sistema é o equivalente a capacidade dos radares de estradas fotografarem o carro e identificarem automaticamente a placa do veículo.

Identificadas as coordenadas geográficas, um computador busca nos bancos de dados do CAR (Cadastro Ambiental Rural) o dono ou responsável pela área. O CAR é um documento obrigatório disponível na internet que indica, em cada propriedade, as coordenadas da propriedade, das áreas de preservação permanente, e das reservas legais. Esse sistema também indica os limites de Terras Indígenas, parques, e outros tipos de ocupação do solo. Lá está o CPF, o CNPJ e o endereço do responsável pela área. Essa parte do sistema é o equivalente ao sistema do Detran que relaciona a placa de um carro ao seu dono e ao endereço do dono.

De posse desses dados os órgãos ambientais podem emitir e enviar automaticamente notificações de embargo no caso do desmatamento não ter sido autorizado e, portanto, depositado no banco de dados dos desmatamentos legais. Esse embargo pode ser contestado, mas na prática ele proíbe qualquer venda da área ou processo de legalização fundiária decorrente de grilagens. Além disso impede que o dono da área tenha acesso a empréstimos ou financiamentos. É o equivalente ao bloqueio do licenciamento ou venda de carros com multas pendentes. O sistema também pode identificar os donos de áreas que ainda não possuem o CAR.

O guia publicado pelo MapBiomas fornece uma espécie de passo-a-passo de como os órgãos de fiscalização podem usar essas ferramentas já disponíveis. Descreve os cuidados necessários para seu uso, discute a legislação que lastreia seu uso e sua validade perante a justiça. E mostra como alguns Estados já estão usando experimentalmente, e com sucesso, essa metodologia (Mato Grosso, Pará, Goiás, Amazonas e Paraná).

Esse sistema está pronto para ser usado em larga escala em todo o território nacional e, como é praticamente automático, e pode ser feito remotamente (sem visita à área desmatada), é capaz de embargar as quase 65 mil áreas de desmatamento ilegal detectadas a cada ano. Claro que o embargo tem que ser seguido da aplicação de multas e, em muitos casos, de visitas ao local, confisco de equipamentos e prisão em flagrante dos responsáveis. Mas todos acreditam que um embargo rápido, bem calçado em evidências obtidas com satélites, e com força jurídica, tem a capacidade de inibir grande parte dos desmatamentos ilegais.

O único problema dessa metodologia é que grande parte dos desmates detectados ocorre em terras da União ou em reservas administradas pelos governos. Nesses casos a União pode simplesmente ignorar o embargo, não agir e não coibir o desmatamento em suas áreas. Mas nesse caso, como essas terras pertencem a toda a nação, e o governo tem o dever constitucional de protege-las, a solução é processar o governo no Supremo Tribunal Federal com base nos embargos.

A publicação desse guia demonstra que o Brasil dispõe hoje de leis e um sistema tecnológico que pode diminuir rapidamente o desmate de nossas florestas. Cabe aos novos governantes estaduais e federais implementar rapidamente (a um custo baixíssimo) algo que já esta pronto, já foi testado, e tem bases jurídicas sólidas. Fica a dica para a equipe de transição.

Mais informações: https://mapbiomas.org/embargos-remotos-de-areas-desmatadas-podem-acelerar-fiscalizacao-ambiental-no-brasil

*É BIÓLOGO, PHD EM BIOLOGIA CELULAR E MOLECULAR PELA CORNELL UNIVERSITY E AUTOR DE A CHEGADA DO NOVO CORONAVÍRUS NO BRASIL; FOLHA DE LÓTUS, ESCORREGADOR DE MOSQUITO; E A LONGA MARCHA DOS GRILOS CANIBAIS

Opinião por Fernando Reinach

Biólogo, PHD em Biologia Celular e Molecular pela Cornell University e autor de "A Chegada do Novo Coronavírus no Brasil"; "Folha de Lótus, Escorregador de Mosquito"; e "A Longa Marcha dos Grilos Canibais"

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