Opinião|Como ossadas de 9 gerações revelam segredos de cavaleiros que migraram da Ásia para Europa


Um grupo de cientistas escavou completamente 4 grandes cemitérios, distantes 50 a 100 quilômetros um do outro, recuperando praticamente todas as pessoas enterradas

Por Fernando Reinach
Atualização: Correção:

Quando estudei a história de Roma, me contaram que uma das razões da queda do império foram as invasões de bárbaros vindos do Norte, um povo primitivo e violento. Átila, o huno, decepando cabeças foi o que sobrou na minha memória. A verdade é que esses “bárbaros” eram populações vindas da Mongólia, no Norte da China, especializadas no pastoreio (criação da animais a pasto), com uma cultura muito sofisticada.

Estudo recria séculos de história de civilização que migrou da Mongólia para a região onde hoje é a Hungria Foto: Tungalag - stock.adobe.com

Além do Hunos, uma população, os Avar, migrou da Mongólia para o leste europeu e se estabeleceu nas planícies que hoje são ocupadas pela Hungria.

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Eram exímios cavaleiros e há relatos de que eram capazes de usar arcos e flechas galopando nos seus cavalos, sentados de maneira invertida, com o corpo voltado para a traseira do animal. Já vi essa proeza em filmes de faroeste, com indígenas americanos, mas não sei se era prática corrente nas Américas.

Os Avar se instalaram nas planícies da bacia dos Cárpatos no ano 557 e ocuparam a região até 822 quando foram exterminados nas guerras que formaram o Imperio Carolíngeo, sob comando de Carlos Magno.

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Em 626, tentaram invadir Constantinopla sem sucesso e a partir de então se fixaram na planície. Os Avar viviam em tendas e não deixaram grandes cidades, mas deixaram muitos cemitérios onde eram enterrados com seus cavalos e arreios.

A novidade é que um grupo de cientistas escavou completamente 4 grandes cemitérios, distantes 50 a 100 quilômetros um do outro, recuperando praticamente todas as pessoas enterradas. E o mais impressionante é que o genoma de 424 dessas pessoas foi sequenciado a partir dos restos de DNA extraído dos ossos.

Os Avar eram exímios cavaleiros e existem relatos de que eram capazes de usar arcos e flechas galopando nos seus cavalos, sentados de maneira invertida, com o corpo voltado para trás Foto: Reprodução/Nature
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Comparando os genomas, foi possível determinar relações de parentesco entre elas e assim construir um enorme pedigree com mais de 300 pessoas interligadas por laços de casamentos e filiação ao longo de 9 gerações e 250 anos. Este é seguramente o maior pedigree construído a partir de ossadas retiradas de cemitérios e cobre os 250 anos em que os Avar dominaram a região.

Examinando o pedigree e as sequências de DNA, foi possível descobrir muitas coisas sobre essa cultura. Primeiro fica claro que todos eram de descendência mongólica e praticamente não existiu casamento com as populações europeias. Isso não implica que vivessem isolados socialmente, mas demonstra que o isolamento genético era quase perfeito.

Também foi descoberto que os filhos homens de cada casamento eram enterrados junto com a família dos pais enquanto as filhas foram encontradas nos túmulos dos seus maridos. Isso significa que a sociedade era patriarcal e eram as filhas que iam morar com a família do marido.

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Dessa maneira, os laços entre as famílias eram estabelecidos por meio dessa troca de esposas (algo parecido acontecia até recentemente nas famílias reais europeias). Outra descoberta importante é que o tabu que impede o casamento dentro de uma mesma família era muito rígido.

Em todos os casamentos do pedigree, não foi encontrado um caso sequer de casamento entre irmãos ou primos de primeiro e segundo grau. Tantos homens quanto mulheres tiveram filhos com diversos parceiros. No caso dos homens, as segundas ou terceiras parceiras também vinham de outras famílias, não obrigatoriamente da mesma família da primeira mulher.

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Não foi possível determinar se esses casamentos ocorriam de forma concomitante ou sequencial, ou seja, se existia poligamia. Já no caso das mulheres, seus segundo ou terceiro casamento ocorria com irmão ou primos do primeiro marido, ou seja, elas se casavam novamente, mas permaneciam na família do primeiro marido.

É impressionante a quantidade de informações que é possível obter a partir desses enormes pedigrees, informações que só podem ser obtidas sequenciando o genoma de todos os membros de uma comunidade.

E esse estudo deve continuar, pois já foram identificadas 60 mil ossadas, em diversos cemitérios, de pessoas da sociedade Avar na região. Se o sequenciamento de 424 pessoas gerou esse enorme pedigree, o que será possível aprender a partir de 60 mil genomas?

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Outro aspecto interessante desse tipo de investigação, quando comparado com investigações baseadas em relatos históricos, é que nesse tipo de análise todas as pessoas da comunidade são incluídas, não somente os poucos líderes ou pessoas marcantes que sobrevivem nos registros históricos.

É uma maneira mais completa e democrática de investigar os laços sociais e genéticos em populações que já desapareceram.

Mais informações: Network of large pedigrees reveals social practices of Avar communities. Nature https://doi.org/10.1038/s41586-024-07312-4 2024

Veja o pedigree:

Os Avar se instalaram nas planícies da bacia dos Cárpatos no ano 557 e ocuparam a região até 822 Foto: Reprodução/Nature

Quando estudei a história de Roma, me contaram que uma das razões da queda do império foram as invasões de bárbaros vindos do Norte, um povo primitivo e violento. Átila, o huno, decepando cabeças foi o que sobrou na minha memória. A verdade é que esses “bárbaros” eram populações vindas da Mongólia, no Norte da China, especializadas no pastoreio (criação da animais a pasto), com uma cultura muito sofisticada.

Estudo recria séculos de história de civilização que migrou da Mongólia para a região onde hoje é a Hungria Foto: Tungalag - stock.adobe.com

Além do Hunos, uma população, os Avar, migrou da Mongólia para o leste europeu e se estabeleceu nas planícies que hoje são ocupadas pela Hungria.

Eram exímios cavaleiros e há relatos de que eram capazes de usar arcos e flechas galopando nos seus cavalos, sentados de maneira invertida, com o corpo voltado para a traseira do animal. Já vi essa proeza em filmes de faroeste, com indígenas americanos, mas não sei se era prática corrente nas Américas.

Os Avar se instalaram nas planícies da bacia dos Cárpatos no ano 557 e ocuparam a região até 822 quando foram exterminados nas guerras que formaram o Imperio Carolíngeo, sob comando de Carlos Magno.

Em 626, tentaram invadir Constantinopla sem sucesso e a partir de então se fixaram na planície. Os Avar viviam em tendas e não deixaram grandes cidades, mas deixaram muitos cemitérios onde eram enterrados com seus cavalos e arreios.

A novidade é que um grupo de cientistas escavou completamente 4 grandes cemitérios, distantes 50 a 100 quilômetros um do outro, recuperando praticamente todas as pessoas enterradas. E o mais impressionante é que o genoma de 424 dessas pessoas foi sequenciado a partir dos restos de DNA extraído dos ossos.

Os Avar eram exímios cavaleiros e existem relatos de que eram capazes de usar arcos e flechas galopando nos seus cavalos, sentados de maneira invertida, com o corpo voltado para trás Foto: Reprodução/Nature

Comparando os genomas, foi possível determinar relações de parentesco entre elas e assim construir um enorme pedigree com mais de 300 pessoas interligadas por laços de casamentos e filiação ao longo de 9 gerações e 250 anos. Este é seguramente o maior pedigree construído a partir de ossadas retiradas de cemitérios e cobre os 250 anos em que os Avar dominaram a região.

Examinando o pedigree e as sequências de DNA, foi possível descobrir muitas coisas sobre essa cultura. Primeiro fica claro que todos eram de descendência mongólica e praticamente não existiu casamento com as populações europeias. Isso não implica que vivessem isolados socialmente, mas demonstra que o isolamento genético era quase perfeito.

Também foi descoberto que os filhos homens de cada casamento eram enterrados junto com a família dos pais enquanto as filhas foram encontradas nos túmulos dos seus maridos. Isso significa que a sociedade era patriarcal e eram as filhas que iam morar com a família do marido.

Dessa maneira, os laços entre as famílias eram estabelecidos por meio dessa troca de esposas (algo parecido acontecia até recentemente nas famílias reais europeias). Outra descoberta importante é que o tabu que impede o casamento dentro de uma mesma família era muito rígido.

Em todos os casamentos do pedigree, não foi encontrado um caso sequer de casamento entre irmãos ou primos de primeiro e segundo grau. Tantos homens quanto mulheres tiveram filhos com diversos parceiros. No caso dos homens, as segundas ou terceiras parceiras também vinham de outras famílias, não obrigatoriamente da mesma família da primeira mulher.

Não foi possível determinar se esses casamentos ocorriam de forma concomitante ou sequencial, ou seja, se existia poligamia. Já no caso das mulheres, seus segundo ou terceiro casamento ocorria com irmão ou primos do primeiro marido, ou seja, elas se casavam novamente, mas permaneciam na família do primeiro marido.

É impressionante a quantidade de informações que é possível obter a partir desses enormes pedigrees, informações que só podem ser obtidas sequenciando o genoma de todos os membros de uma comunidade.

E esse estudo deve continuar, pois já foram identificadas 60 mil ossadas, em diversos cemitérios, de pessoas da sociedade Avar na região. Se o sequenciamento de 424 pessoas gerou esse enorme pedigree, o que será possível aprender a partir de 60 mil genomas?

Outro aspecto interessante desse tipo de investigação, quando comparado com investigações baseadas em relatos históricos, é que nesse tipo de análise todas as pessoas da comunidade são incluídas, não somente os poucos líderes ou pessoas marcantes que sobrevivem nos registros históricos.

É uma maneira mais completa e democrática de investigar os laços sociais e genéticos em populações que já desapareceram.

Mais informações: Network of large pedigrees reveals social practices of Avar communities. Nature https://doi.org/10.1038/s41586-024-07312-4 2024

Veja o pedigree:

Os Avar se instalaram nas planícies da bacia dos Cárpatos no ano 557 e ocuparam a região até 822 Foto: Reprodução/Nature

Quando estudei a história de Roma, me contaram que uma das razões da queda do império foram as invasões de bárbaros vindos do Norte, um povo primitivo e violento. Átila, o huno, decepando cabeças foi o que sobrou na minha memória. A verdade é que esses “bárbaros” eram populações vindas da Mongólia, no Norte da China, especializadas no pastoreio (criação da animais a pasto), com uma cultura muito sofisticada.

Estudo recria séculos de história de civilização que migrou da Mongólia para a região onde hoje é a Hungria Foto: Tungalag - stock.adobe.com

Além do Hunos, uma população, os Avar, migrou da Mongólia para o leste europeu e se estabeleceu nas planícies que hoje são ocupadas pela Hungria.

Eram exímios cavaleiros e há relatos de que eram capazes de usar arcos e flechas galopando nos seus cavalos, sentados de maneira invertida, com o corpo voltado para a traseira do animal. Já vi essa proeza em filmes de faroeste, com indígenas americanos, mas não sei se era prática corrente nas Américas.

Os Avar se instalaram nas planícies da bacia dos Cárpatos no ano 557 e ocuparam a região até 822 quando foram exterminados nas guerras que formaram o Imperio Carolíngeo, sob comando de Carlos Magno.

Em 626, tentaram invadir Constantinopla sem sucesso e a partir de então se fixaram na planície. Os Avar viviam em tendas e não deixaram grandes cidades, mas deixaram muitos cemitérios onde eram enterrados com seus cavalos e arreios.

A novidade é que um grupo de cientistas escavou completamente 4 grandes cemitérios, distantes 50 a 100 quilômetros um do outro, recuperando praticamente todas as pessoas enterradas. E o mais impressionante é que o genoma de 424 dessas pessoas foi sequenciado a partir dos restos de DNA extraído dos ossos.

Os Avar eram exímios cavaleiros e existem relatos de que eram capazes de usar arcos e flechas galopando nos seus cavalos, sentados de maneira invertida, com o corpo voltado para trás Foto: Reprodução/Nature

Comparando os genomas, foi possível determinar relações de parentesco entre elas e assim construir um enorme pedigree com mais de 300 pessoas interligadas por laços de casamentos e filiação ao longo de 9 gerações e 250 anos. Este é seguramente o maior pedigree construído a partir de ossadas retiradas de cemitérios e cobre os 250 anos em que os Avar dominaram a região.

Examinando o pedigree e as sequências de DNA, foi possível descobrir muitas coisas sobre essa cultura. Primeiro fica claro que todos eram de descendência mongólica e praticamente não existiu casamento com as populações europeias. Isso não implica que vivessem isolados socialmente, mas demonstra que o isolamento genético era quase perfeito.

Também foi descoberto que os filhos homens de cada casamento eram enterrados junto com a família dos pais enquanto as filhas foram encontradas nos túmulos dos seus maridos. Isso significa que a sociedade era patriarcal e eram as filhas que iam morar com a família do marido.

Dessa maneira, os laços entre as famílias eram estabelecidos por meio dessa troca de esposas (algo parecido acontecia até recentemente nas famílias reais europeias). Outra descoberta importante é que o tabu que impede o casamento dentro de uma mesma família era muito rígido.

Em todos os casamentos do pedigree, não foi encontrado um caso sequer de casamento entre irmãos ou primos de primeiro e segundo grau. Tantos homens quanto mulheres tiveram filhos com diversos parceiros. No caso dos homens, as segundas ou terceiras parceiras também vinham de outras famílias, não obrigatoriamente da mesma família da primeira mulher.

Não foi possível determinar se esses casamentos ocorriam de forma concomitante ou sequencial, ou seja, se existia poligamia. Já no caso das mulheres, seus segundo ou terceiro casamento ocorria com irmão ou primos do primeiro marido, ou seja, elas se casavam novamente, mas permaneciam na família do primeiro marido.

É impressionante a quantidade de informações que é possível obter a partir desses enormes pedigrees, informações que só podem ser obtidas sequenciando o genoma de todos os membros de uma comunidade.

E esse estudo deve continuar, pois já foram identificadas 60 mil ossadas, em diversos cemitérios, de pessoas da sociedade Avar na região. Se o sequenciamento de 424 pessoas gerou esse enorme pedigree, o que será possível aprender a partir de 60 mil genomas?

Outro aspecto interessante desse tipo de investigação, quando comparado com investigações baseadas em relatos históricos, é que nesse tipo de análise todas as pessoas da comunidade são incluídas, não somente os poucos líderes ou pessoas marcantes que sobrevivem nos registros históricos.

É uma maneira mais completa e democrática de investigar os laços sociais e genéticos em populações que já desapareceram.

Mais informações: Network of large pedigrees reveals social practices of Avar communities. Nature https://doi.org/10.1038/s41586-024-07312-4 2024

Veja o pedigree:

Os Avar se instalaram nas planícies da bacia dos Cárpatos no ano 557 e ocuparam a região até 822 Foto: Reprodução/Nature
Opinião por Fernando Reinach

Biólogo, PHD em Biologia Celular e Molecular pela Cornell University e autor de "A Chegada do Novo Coronavírus no Brasil"; "Folha de Lótus, Escorregador de Mosquito"; e "A Longa Marcha dos Grilos Canibais"

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