Opinião|Como relações de poder alteram nosso comportamento


Estudo tornou possível medir as diferenças de poder entre pares de indivíduos e quantificar como essa diferença altera o comportamento e o resultado da interação

Por Fernando Reinach

Numa relação entre duas pessoas, sempre que existe uma assimetria no acesso a um bem, se cria uma relação de poder. Pode ser dinheiro, hierarquia ou mesmo conhecimento. Relações de poder afetam a interação entre pessoas e têm consequências práticas: são os casos de abuso econômico, coerção, discriminação racial, abuso sexual, favorecimento, e uma enorme lista de possibilidades que todos vivenciamos por experiencia própria.

A propensão de exercer o poder parece ser uma característica do ser humano, difícil de ser alterada. Apesar de existir um número enorme de estudos que descrevem esses comportamentos, não existem estudos que medem diretamente como o poder altera o comportamento e afeta o resultado de uma interação.

A novidade é um estudo em que foi possível medir as diferenças de poder entre pares de indivíduos e quantificar como essa diferença altera o comportamento e o resultado da interação. O estudo foi feito no sistema de atendimento de emergências de saúde do Exército norte-americano. Esse sistema só atende pacientes que são membros do Exército e todos os médicos do sistema também são membros do Exército.

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Se um militar precisa de um atendimento de emergência, ele é direcionado automaticamente ao primeiro médico disponível, não há possibilidade de escolha e, portanto, o pareamento é aleatório. O paciente é atendido e todo o tratamento (exames solicitados, diagnóstico, tempo de consulta, receitas, retornos, e resultado do tratamento) é registrado em um sistema de computadores.

Estudo tornou possível medir as diferenças de poder entre pares de indivíduos e quantificar como essa diferença altera o comportamento e o resultado da interação Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Nos sistemas de saúde em geral existe uma relação de poder: o paciente tem menos conhecimento que o médico, e tende a delegar as decisões, e a confiar nas recomendações. Por trás dessa relação existe a confiança de que o médico é altruísta e trata todos os seus pacientes da mesma maneira.

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Existe uma suspeita generalizada, e muitos relatos de casos, que mostram que isso não é verdade. O caso mais óbvio ocorre quando um médico trata melhor outro médico, uma pessoa famosa ou uma muito rica. Esse estudo no sistema do Exército demonstrou que esse fenômeno, de fato, sempre ocorre.

Os cientistas tiveram acesso aos dados de 1.547.851 interações médico/paciente, envolvendo 856.357 pacientes distintos e 1.340 médicos. Em todos os casos, tanto médicos quanto pacientes eram militares e, portanto, possuíam patentes militares.

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Um médico tenente podia atender um paciente general ou um paciente sargento. Assim, além do poder do conhecimento (médico sabe mais que paciente), em todos os casos havia o poder hierárquico intrínseco ao Exército (um tenente obedece a um general, mas manda num sargento).

Para cada uma dessas interações os cientistas estabeleceram a diferença hierárquica entre o médico e o paciente. Se ambos eram do mesmo ranking, a diferença de poder era zero. Ela era positiva, e variava de 1 a 3 se o paciente tivesse um ranking superior ao médico (o número reflete a diferença hierárquica). E era negativa quando o paciente tinha um ranking inferior ao médico (de -1 a -5).

Feito isso, os cientistas analisaram como o atendimento, e o resultado do tratamento, variava dependendo da diferença de poder hierárquico entre médicos e pacientes.

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O resultado quantitativo é claríssimo e impressionante. Quanto maior era a diferença de poder hierárquico entre paciente e médico, maior era o esforço do médico em tratar o paciente. Os generais eram mais bem tratados que os sargentos. Essa diferença aparece em vários indicadores: no número de exames solicitados, número de exames complexos e de imagem solicitados, duração da consulta, encaminhamento para especialistas, número de possibilidades diagnósticas, complexidade dos medicamentos receitados e assim por diante.

Os mais poderosos também tinham maior probabilidade de serem convidados a uma segunda consulta de acompanhamento nos próximos 30 dias. E o resultado desse esforço extra dos médicos resultava em uma maior taxa de sucesso na cura das doenças diagnosticadas. Ou seja, apesar das consultas não ocorrerem em um ambiente hierárquico, como num campo de batalha, basta a patente superior para modificar o tipo de tratamento recebido pelo mais poderoso.

Mas, não é só isso que pode ser verificado. Nos dias em que os médicos tinham consultas com pacientes superiores, a qualidade do tratamento dos inferiores era mais baixa. E a discordância racial entre médico e paciente também diminuía a qualidade do tratamento.

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Esse resultado demonstra que o poder extra que um médico tem sobre os pacientes devido às diferenças na quantidade e qualidade do conhecimento desaparece frente ao simples fato de uma pessoa possuir uma patente militar superior. E esse poder hierárquico altera de maneira radical o comportamento dos médicos.

É claro que num ambiente militar a questão da hierarquia é uma forma de poder muito forte e provavelmente outras formas de poder não têm um efeito tão grande no comportamento dos médicos.

Mas, o que me parece mais impressionante é essa tendência quase inata do ser humano a se curvar e reverenciar qualquer forma de poder mesmo que ela não esteja diretamente relacionada à natureza da interação que está ocorrendo. Que eu saiba não existem sociedades ou modelos educacionais que eliminaram totalmente essa nossa necessidade de exercer ou se submeter em relações de poder. Será que é esse nosso destino, sermos animais condenados a mandar e obedecer?

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Mais informações: How power shapes behavior: Evidence from physicians. Science 10.1126/science.adl3835 2024

Numa relação entre duas pessoas, sempre que existe uma assimetria no acesso a um bem, se cria uma relação de poder. Pode ser dinheiro, hierarquia ou mesmo conhecimento. Relações de poder afetam a interação entre pessoas e têm consequências práticas: são os casos de abuso econômico, coerção, discriminação racial, abuso sexual, favorecimento, e uma enorme lista de possibilidades que todos vivenciamos por experiencia própria.

A propensão de exercer o poder parece ser uma característica do ser humano, difícil de ser alterada. Apesar de existir um número enorme de estudos que descrevem esses comportamentos, não existem estudos que medem diretamente como o poder altera o comportamento e afeta o resultado de uma interação.

A novidade é um estudo em que foi possível medir as diferenças de poder entre pares de indivíduos e quantificar como essa diferença altera o comportamento e o resultado da interação. O estudo foi feito no sistema de atendimento de emergências de saúde do Exército norte-americano. Esse sistema só atende pacientes que são membros do Exército e todos os médicos do sistema também são membros do Exército.

Se um militar precisa de um atendimento de emergência, ele é direcionado automaticamente ao primeiro médico disponível, não há possibilidade de escolha e, portanto, o pareamento é aleatório. O paciente é atendido e todo o tratamento (exames solicitados, diagnóstico, tempo de consulta, receitas, retornos, e resultado do tratamento) é registrado em um sistema de computadores.

Estudo tornou possível medir as diferenças de poder entre pares de indivíduos e quantificar como essa diferença altera o comportamento e o resultado da interação Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Nos sistemas de saúde em geral existe uma relação de poder: o paciente tem menos conhecimento que o médico, e tende a delegar as decisões, e a confiar nas recomendações. Por trás dessa relação existe a confiança de que o médico é altruísta e trata todos os seus pacientes da mesma maneira.

Existe uma suspeita generalizada, e muitos relatos de casos, que mostram que isso não é verdade. O caso mais óbvio ocorre quando um médico trata melhor outro médico, uma pessoa famosa ou uma muito rica. Esse estudo no sistema do Exército demonstrou que esse fenômeno, de fato, sempre ocorre.

Os cientistas tiveram acesso aos dados de 1.547.851 interações médico/paciente, envolvendo 856.357 pacientes distintos e 1.340 médicos. Em todos os casos, tanto médicos quanto pacientes eram militares e, portanto, possuíam patentes militares.

Um médico tenente podia atender um paciente general ou um paciente sargento. Assim, além do poder do conhecimento (médico sabe mais que paciente), em todos os casos havia o poder hierárquico intrínseco ao Exército (um tenente obedece a um general, mas manda num sargento).

Para cada uma dessas interações os cientistas estabeleceram a diferença hierárquica entre o médico e o paciente. Se ambos eram do mesmo ranking, a diferença de poder era zero. Ela era positiva, e variava de 1 a 3 se o paciente tivesse um ranking superior ao médico (o número reflete a diferença hierárquica). E era negativa quando o paciente tinha um ranking inferior ao médico (de -1 a -5).

Feito isso, os cientistas analisaram como o atendimento, e o resultado do tratamento, variava dependendo da diferença de poder hierárquico entre médicos e pacientes.

O resultado quantitativo é claríssimo e impressionante. Quanto maior era a diferença de poder hierárquico entre paciente e médico, maior era o esforço do médico em tratar o paciente. Os generais eram mais bem tratados que os sargentos. Essa diferença aparece em vários indicadores: no número de exames solicitados, número de exames complexos e de imagem solicitados, duração da consulta, encaminhamento para especialistas, número de possibilidades diagnósticas, complexidade dos medicamentos receitados e assim por diante.

Os mais poderosos também tinham maior probabilidade de serem convidados a uma segunda consulta de acompanhamento nos próximos 30 dias. E o resultado desse esforço extra dos médicos resultava em uma maior taxa de sucesso na cura das doenças diagnosticadas. Ou seja, apesar das consultas não ocorrerem em um ambiente hierárquico, como num campo de batalha, basta a patente superior para modificar o tipo de tratamento recebido pelo mais poderoso.

Mas, não é só isso que pode ser verificado. Nos dias em que os médicos tinham consultas com pacientes superiores, a qualidade do tratamento dos inferiores era mais baixa. E a discordância racial entre médico e paciente também diminuía a qualidade do tratamento.

Esse resultado demonstra que o poder extra que um médico tem sobre os pacientes devido às diferenças na quantidade e qualidade do conhecimento desaparece frente ao simples fato de uma pessoa possuir uma patente militar superior. E esse poder hierárquico altera de maneira radical o comportamento dos médicos.

É claro que num ambiente militar a questão da hierarquia é uma forma de poder muito forte e provavelmente outras formas de poder não têm um efeito tão grande no comportamento dos médicos.

Mas, o que me parece mais impressionante é essa tendência quase inata do ser humano a se curvar e reverenciar qualquer forma de poder mesmo que ela não esteja diretamente relacionada à natureza da interação que está ocorrendo. Que eu saiba não existem sociedades ou modelos educacionais que eliminaram totalmente essa nossa necessidade de exercer ou se submeter em relações de poder. Será que é esse nosso destino, sermos animais condenados a mandar e obedecer?

Mais informações: How power shapes behavior: Evidence from physicians. Science 10.1126/science.adl3835 2024

Numa relação entre duas pessoas, sempre que existe uma assimetria no acesso a um bem, se cria uma relação de poder. Pode ser dinheiro, hierarquia ou mesmo conhecimento. Relações de poder afetam a interação entre pessoas e têm consequências práticas: são os casos de abuso econômico, coerção, discriminação racial, abuso sexual, favorecimento, e uma enorme lista de possibilidades que todos vivenciamos por experiencia própria.

A propensão de exercer o poder parece ser uma característica do ser humano, difícil de ser alterada. Apesar de existir um número enorme de estudos que descrevem esses comportamentos, não existem estudos que medem diretamente como o poder altera o comportamento e afeta o resultado de uma interação.

A novidade é um estudo em que foi possível medir as diferenças de poder entre pares de indivíduos e quantificar como essa diferença altera o comportamento e o resultado da interação. O estudo foi feito no sistema de atendimento de emergências de saúde do Exército norte-americano. Esse sistema só atende pacientes que são membros do Exército e todos os médicos do sistema também são membros do Exército.

Se um militar precisa de um atendimento de emergência, ele é direcionado automaticamente ao primeiro médico disponível, não há possibilidade de escolha e, portanto, o pareamento é aleatório. O paciente é atendido e todo o tratamento (exames solicitados, diagnóstico, tempo de consulta, receitas, retornos, e resultado do tratamento) é registrado em um sistema de computadores.

Estudo tornou possível medir as diferenças de poder entre pares de indivíduos e quantificar como essa diferença altera o comportamento e o resultado da interação Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Nos sistemas de saúde em geral existe uma relação de poder: o paciente tem menos conhecimento que o médico, e tende a delegar as decisões, e a confiar nas recomendações. Por trás dessa relação existe a confiança de que o médico é altruísta e trata todos os seus pacientes da mesma maneira.

Existe uma suspeita generalizada, e muitos relatos de casos, que mostram que isso não é verdade. O caso mais óbvio ocorre quando um médico trata melhor outro médico, uma pessoa famosa ou uma muito rica. Esse estudo no sistema do Exército demonstrou que esse fenômeno, de fato, sempre ocorre.

Os cientistas tiveram acesso aos dados de 1.547.851 interações médico/paciente, envolvendo 856.357 pacientes distintos e 1.340 médicos. Em todos os casos, tanto médicos quanto pacientes eram militares e, portanto, possuíam patentes militares.

Um médico tenente podia atender um paciente general ou um paciente sargento. Assim, além do poder do conhecimento (médico sabe mais que paciente), em todos os casos havia o poder hierárquico intrínseco ao Exército (um tenente obedece a um general, mas manda num sargento).

Para cada uma dessas interações os cientistas estabeleceram a diferença hierárquica entre o médico e o paciente. Se ambos eram do mesmo ranking, a diferença de poder era zero. Ela era positiva, e variava de 1 a 3 se o paciente tivesse um ranking superior ao médico (o número reflete a diferença hierárquica). E era negativa quando o paciente tinha um ranking inferior ao médico (de -1 a -5).

Feito isso, os cientistas analisaram como o atendimento, e o resultado do tratamento, variava dependendo da diferença de poder hierárquico entre médicos e pacientes.

O resultado quantitativo é claríssimo e impressionante. Quanto maior era a diferença de poder hierárquico entre paciente e médico, maior era o esforço do médico em tratar o paciente. Os generais eram mais bem tratados que os sargentos. Essa diferença aparece em vários indicadores: no número de exames solicitados, número de exames complexos e de imagem solicitados, duração da consulta, encaminhamento para especialistas, número de possibilidades diagnósticas, complexidade dos medicamentos receitados e assim por diante.

Os mais poderosos também tinham maior probabilidade de serem convidados a uma segunda consulta de acompanhamento nos próximos 30 dias. E o resultado desse esforço extra dos médicos resultava em uma maior taxa de sucesso na cura das doenças diagnosticadas. Ou seja, apesar das consultas não ocorrerem em um ambiente hierárquico, como num campo de batalha, basta a patente superior para modificar o tipo de tratamento recebido pelo mais poderoso.

Mas, não é só isso que pode ser verificado. Nos dias em que os médicos tinham consultas com pacientes superiores, a qualidade do tratamento dos inferiores era mais baixa. E a discordância racial entre médico e paciente também diminuía a qualidade do tratamento.

Esse resultado demonstra que o poder extra que um médico tem sobre os pacientes devido às diferenças na quantidade e qualidade do conhecimento desaparece frente ao simples fato de uma pessoa possuir uma patente militar superior. E esse poder hierárquico altera de maneira radical o comportamento dos médicos.

É claro que num ambiente militar a questão da hierarquia é uma forma de poder muito forte e provavelmente outras formas de poder não têm um efeito tão grande no comportamento dos médicos.

Mas, o que me parece mais impressionante é essa tendência quase inata do ser humano a se curvar e reverenciar qualquer forma de poder mesmo que ela não esteja diretamente relacionada à natureza da interação que está ocorrendo. Que eu saiba não existem sociedades ou modelos educacionais que eliminaram totalmente essa nossa necessidade de exercer ou se submeter em relações de poder. Será que é esse nosso destino, sermos animais condenados a mandar e obedecer?

Mais informações: How power shapes behavior: Evidence from physicians. Science 10.1126/science.adl3835 2024

Numa relação entre duas pessoas, sempre que existe uma assimetria no acesso a um bem, se cria uma relação de poder. Pode ser dinheiro, hierarquia ou mesmo conhecimento. Relações de poder afetam a interação entre pessoas e têm consequências práticas: são os casos de abuso econômico, coerção, discriminação racial, abuso sexual, favorecimento, e uma enorme lista de possibilidades que todos vivenciamos por experiencia própria.

A propensão de exercer o poder parece ser uma característica do ser humano, difícil de ser alterada. Apesar de existir um número enorme de estudos que descrevem esses comportamentos, não existem estudos que medem diretamente como o poder altera o comportamento e afeta o resultado de uma interação.

A novidade é um estudo em que foi possível medir as diferenças de poder entre pares de indivíduos e quantificar como essa diferença altera o comportamento e o resultado da interação. O estudo foi feito no sistema de atendimento de emergências de saúde do Exército norte-americano. Esse sistema só atende pacientes que são membros do Exército e todos os médicos do sistema também são membros do Exército.

Se um militar precisa de um atendimento de emergência, ele é direcionado automaticamente ao primeiro médico disponível, não há possibilidade de escolha e, portanto, o pareamento é aleatório. O paciente é atendido e todo o tratamento (exames solicitados, diagnóstico, tempo de consulta, receitas, retornos, e resultado do tratamento) é registrado em um sistema de computadores.

Estudo tornou possível medir as diferenças de poder entre pares de indivíduos e quantificar como essa diferença altera o comportamento e o resultado da interação Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Nos sistemas de saúde em geral existe uma relação de poder: o paciente tem menos conhecimento que o médico, e tende a delegar as decisões, e a confiar nas recomendações. Por trás dessa relação existe a confiança de que o médico é altruísta e trata todos os seus pacientes da mesma maneira.

Existe uma suspeita generalizada, e muitos relatos de casos, que mostram que isso não é verdade. O caso mais óbvio ocorre quando um médico trata melhor outro médico, uma pessoa famosa ou uma muito rica. Esse estudo no sistema do Exército demonstrou que esse fenômeno, de fato, sempre ocorre.

Os cientistas tiveram acesso aos dados de 1.547.851 interações médico/paciente, envolvendo 856.357 pacientes distintos e 1.340 médicos. Em todos os casos, tanto médicos quanto pacientes eram militares e, portanto, possuíam patentes militares.

Um médico tenente podia atender um paciente general ou um paciente sargento. Assim, além do poder do conhecimento (médico sabe mais que paciente), em todos os casos havia o poder hierárquico intrínseco ao Exército (um tenente obedece a um general, mas manda num sargento).

Para cada uma dessas interações os cientistas estabeleceram a diferença hierárquica entre o médico e o paciente. Se ambos eram do mesmo ranking, a diferença de poder era zero. Ela era positiva, e variava de 1 a 3 se o paciente tivesse um ranking superior ao médico (o número reflete a diferença hierárquica). E era negativa quando o paciente tinha um ranking inferior ao médico (de -1 a -5).

Feito isso, os cientistas analisaram como o atendimento, e o resultado do tratamento, variava dependendo da diferença de poder hierárquico entre médicos e pacientes.

O resultado quantitativo é claríssimo e impressionante. Quanto maior era a diferença de poder hierárquico entre paciente e médico, maior era o esforço do médico em tratar o paciente. Os generais eram mais bem tratados que os sargentos. Essa diferença aparece em vários indicadores: no número de exames solicitados, número de exames complexos e de imagem solicitados, duração da consulta, encaminhamento para especialistas, número de possibilidades diagnósticas, complexidade dos medicamentos receitados e assim por diante.

Os mais poderosos também tinham maior probabilidade de serem convidados a uma segunda consulta de acompanhamento nos próximos 30 dias. E o resultado desse esforço extra dos médicos resultava em uma maior taxa de sucesso na cura das doenças diagnosticadas. Ou seja, apesar das consultas não ocorrerem em um ambiente hierárquico, como num campo de batalha, basta a patente superior para modificar o tipo de tratamento recebido pelo mais poderoso.

Mas, não é só isso que pode ser verificado. Nos dias em que os médicos tinham consultas com pacientes superiores, a qualidade do tratamento dos inferiores era mais baixa. E a discordância racial entre médico e paciente também diminuía a qualidade do tratamento.

Esse resultado demonstra que o poder extra que um médico tem sobre os pacientes devido às diferenças na quantidade e qualidade do conhecimento desaparece frente ao simples fato de uma pessoa possuir uma patente militar superior. E esse poder hierárquico altera de maneira radical o comportamento dos médicos.

É claro que num ambiente militar a questão da hierarquia é uma forma de poder muito forte e provavelmente outras formas de poder não têm um efeito tão grande no comportamento dos médicos.

Mas, o que me parece mais impressionante é essa tendência quase inata do ser humano a se curvar e reverenciar qualquer forma de poder mesmo que ela não esteja diretamente relacionada à natureza da interação que está ocorrendo. Que eu saiba não existem sociedades ou modelos educacionais que eliminaram totalmente essa nossa necessidade de exercer ou se submeter em relações de poder. Será que é esse nosso destino, sermos animais condenados a mandar e obedecer?

Mais informações: How power shapes behavior: Evidence from physicians. Science 10.1126/science.adl3835 2024

Opinião por Fernando Reinach

Biólogo, PHD em Biologia Celular e Molecular pela Cornell University e autor de "A Chegada do Novo Coronavírus no Brasil"; "Folha de Lótus, Escorregador de Mosquito"; e "A Longa Marcha dos Grilos Canibais"

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