Na ciência, os dados devem prevalecer sobre a interpretação. Isso é especialmente importante quando a ciência entra em conflito com o desejo de autoritários. Ésquilo dizia que a primeira baixa em uma guerra é a verdade. E na guerra de Bolsonaro contra cientistas que monitoram o desmatamento da Amazônia não foi diferente. Ao saber que os dados do Deter indicavam aumento, Bolsonaro demitiu o diretor do Inpe.
Mas isso não muda os dados. A Tabela 1 mostra as áreas alteradas na Amazônia Legal nos primeiros sete meses de 2019 e compara com os mesmos dados de 2018. Ela inclui as oito classes de destruição da vegetação nativa (consulte site no fim do texto). A Tabela 2 é idêntica à primeira, mas inclui só as áreas de desmate com solo exposto, desmate com vegetação e áreas de mineração. Na Tabela 2, estão excluídas cicatrizes de incêndios florestais e áreas de degradação. Essas são as duas maiores classes de áreas alteradas detectadas pelos satélites e é por isso que as áreas em quilômetros quadrados são bem menores na Tabela 2. Nas duas tabelas, é possível observar que nos primeiros quatro meses de 2019 (Bolsonaro) o desmate caiu ante o mesmo período de 2018 (Temer).
Também é possível ver que nos últimos dois meses, junho e julho, houve grande aumento. Mas as duas tabelas discordam em dois aspectos, o primeiro é o que aconteceu em maio de 2019. A Tabela 1 indica que o desmate cai em maio enquanto a Tabela 2 mostra aumento. Além disso, somando as áreas desmatadas nos sete primeiros meses, a Tabela 1 mostra que, apesar da alta nos dois últimos meses de 2019, houve redução de 7% na área. Já a Tabela 2 mostra aumento de 67%. Esses são os dados crus e nus. Construí a Tabela 1 porque contempla todos os dados do Deter, apesar de algumas categorias, como incêndios, incluírem queimadas naturais e as causadas pelo desmate ativo. Já a Tabela 2 foi usada pela imprensa para anunciar em junho alta no desmate de 90%, e de 278% em julho.
Muitas outras combinações são possíveis e o leitor pode fazer a sua usando os dados no link citado no fim do artigo. Mas é bom lembrar as limitações do Deter. Vamos à interpretação dos dados. Mark Twain popularizou a noção de que há três tipos de mentiras: as mentiras, as mentiras malditas e as estatísticas. Não há qualquer evidência que os dados tenham sido manipulados no Inpe. Assim, Bolsonaro simplesmente mentiu. Se fosse mais esperto, poderia ter usado uma mentira maldita. São as baseadas em dados reais, a mais perigosa das manipulações.
Ele poderia dizer que a área desmatada na Amazônia nos sete meses de seu mandato foi 7% menor que o do mesmo período de 2018 - recuo de 10.158 km² para 9.442 km² (vide Tabela 1). Ou poderia dizer que em cinco dos sete meses do governo o desmate caiu. Nem comento como é possível mentir com estatísticas. A imprensa e muitas organizações que combatem o desmatamento também pecaram. Que eu saiba ninguém citou a redução do desmate por qualquer critério nos primeiros meses de governo. E, ao falar da alta de 90% em junho e 278% em julho, não tiveram o cuidado de explicar como e por que haviam selecionado os dados.
Fiz simulações e a combinação de classes de desmate na Tabela 2 é a que produz os piores resultados para Bolsonaro, mas não descobri a origem dessa escolha. De qualquer modo, é preciso aceitar que no início do governo o desmatamento medido pelo Deter diminuiu. Se a diminuição está dentro das margens de erro das médias não é possível saber (precisamos perguntar aos cientistas do Inpe). Por outro lado, de qualquer maneira que se examine os dados, houve aumento em junho e julho.
O dado de junho talvez seja menos significativo, mas o de julho é absolutamente claro e muito provavelmente maior que os erros nas medidas. Se a alta foi de 146% ou 278% depende de como se olha. Além disso, é sabido que nos cinco primeiros meses o desmate é dificultado pelas chuvas, crescendo rapidamente nas secas. Não há dúvida que o desmate está aumentando e isso vai aparecer nos dados anuais do Prodes.
O poder da boa ciência é ser a única forma de conhecimento onde os dados (que dificilmente são perfeitos) são objetivos e abertos à verificação e sujeitos à interpretação. Na guerra entre obscurantismo e ciência, quem acredita na ciência, e quer preservar a Amazônia, precisa lutar pela continuidade da coleta de dados objetivos. Além disso, temos o dever de fornecer interpretações as mais isentas possível, mesmo que alguns aspectos não nos agradem. Nessa batalha que só começa, todo cuidado é pouco para não cair na tentação de propagar mentiras malditas. Elas nos igualam aos adversários e abrem flanco que pode ser letal para nossa credibilidade.
MAIS INFORMAÇÕES: TERRABRASILIS.DPI.INPE.BR/APP/DASHBOARD/ALERTS/LEGAL/AMAZON/AGGREGATED *É BIÓLOGO