Opinião|Dilemas sexuais de uma barata: o que o veneno contra o inseto tem a ver com isso?


O ser humano, ao tentar envenenar as baratas, permitiu a seleção de animais que passaram a odiar açúcar, ficando protegidos do veneno. Mas essa mutação prejudicou a reprodução

Por Fernando Reinach

Esse é um artigo sobre baratas. Você não precisa pular em cima da mesa, sacar o chinelo ou parar de ler. São baratas alemãs, Blattella germanica, e não a Periplaneta americana, que infesta nossos lares. E mais, o artigo tem cenas picantes de sexo.

O sexo nessa barata se dá após um ritual de cortejo. O macho se aproxima da fêmea, vira as costas e separa as asas de maneira sedutora. Se a fêmea mostra algum interesse, o rapaz ativa glândulas que possui no seu dorso e oferece um presente. Uma gota de um líquido doce que as fêmeas adoram surge entre as asas do macho. Ávidas pelo bombom líquido, as fêmeas montam no dorso do macho para degustar a oferenda. Nesse momento o macho se alinha estrategicamente sob a fêmea, estende seu órgão genital, que tem a forma de um gancho virado para cima, e penetra a fêmea.

O sexo nessa barata se dá após um ritual de cortejo. O macho se aproxima da fêmea, vira as costas e separa as asas de maneira sedutora Foto: NCState
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Para executar essa manobra ele precisa de sete segundos. É o tempo que a fêmea leva para saborear o doce. Quando o presente foi consumido, a fêmea tenta se desvencilhar. Mas aí é tarde, o macho já enganchou a genital e ela tem que esperar até que os espermatozoides sejam depositados. Você pode achar que o uso de presentes para atrair fêmeas é lamentável, mas é assim que funciona, e não só entre baratas.

Os seres humanos não gostam de baratas e faz décadas que tentam exterminá-las. Se aproveitam do fato desses insetos adorarem um doce. A arma de extermínio são iscas adoçadas com açúcar, contendo poderosos inseticidas. A barata não aguenta, come a isca, é envenenada e morre. Faz algum tempo que as iscas deixaram de funcionar, pois algumas baratas passaram a desprezá-las.

Ao investigar o motivo, os cientistas descobriram que a repulsa era causada por uma mutação que afeta os receptores que detectam o açúcar. As baratas mutantes têm ojeriza ao açúcar. Como as baratas que gostam de açúcar acabam envenenadas, e as que odeiam açúcar sobrevivem, essa mutação se espalhou rapidamente por toda a Europa.

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Mas se as baratas deixaram de gostar de açúcar, o que estaria ocorrendo durante o ato sexual? O presente ofertado pelos machos já não convencia? Ofertar açúcar para uma barata fêmea que tem ojeriza a açúcar é o mesmo que presentear a namorada com um vidro de óleo de rícino de bacalhau. Os cientistas resolveram investigar o que ocorria colocando juntos machos e fêmeas que detestam açúcar. Quando o macho oferece a gota doce, a fêmea sobe nele e cai de boca na oferenda. Mas assim que sente o gosto de açúcar pula de cima do macho horrorizada. Ou seja, o tempo que ela fica em cima do macho, que normalmente era de sete segundos, fica reduzido a quatro segundos.

Em muitos casos, esse tempo não é suficiente para o macho conseguir enganchar a fêmea. E assim a reprodução da espécie fica menos eficiente. Em suma, os mutantes sobrevivem às tentativas de envenenamento, mas perdem eficácia reprodutiva.

Recentemente os cientistas descobriram machos capazes de manter fêmeas que tem ojeriza a açúcar distraídas pelos sete segundos necessários para que o ato sexual tenha sucesso. O que teria acontecido? Será que a gota secretada pelos macho deixou de ser doce? Para investigar esse fenômeno, os cientistas isolaram as gotas produzidas pelos machos capazes de manter as fêmeas por quatro ou sete segundos. Eles descobriram que a gota doce original contém maltose (um açúcar composto por duas glicoses ligadas entre si). Quando uma fêmea ingere essa gota, a maltose é imediatamente convertida em glicose e ela sente o sabor doce. Se a fêmea gosta de doce fica sete segundos nas costas do macho, se ela tem ojeriza, pula de lá em quatro segundos frustrando o macho.

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Já os machos que surgiram mais recentemente, ao invés de maltose, produzem maltotriose (um açúcar composto por 3 moléculas de glicose ligadas entre si). Esse açúcar leva mais tempo para ser convertida em glicose na boca da fêmea e a fêmea leva mais tempo para perceber o gosto do açúcar. E quando ela percebe já é tarde, os sete segundos se passaram e ela já foi enganchada pelo órgão sexual do macho.

O ser humano, ao tentar envenenar as baratas, permitiu a seleção de animais que passaram a odiar açúcar, ficando protegidos do veneno. Mas essa mutação prejudicou a reprodução, o que permitiu o aparecimento de uma segunda mutação que altera a composição do presente ofertado pelo macho, substituindo a maltose pela maltotriose. Essa segunda mutação resolve o problema criado pela primeira e o resultado é que agora as baratas vivem felizes na Europa, imunes às iscas doces e se reproduzindo tão bem quanto antes. Esse é um bom exemplo de como a pressão seletiva provoca a evolução dos seres vivos.

Mais informações: Gustatory polymorphism mediates a new adaptive courtship strategy. Proc R. Soc. B. https://doi.org/10.1098/rspb.2022.2337 2023

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Fernando Reinach é biólogo

Esse é um artigo sobre baratas. Você não precisa pular em cima da mesa, sacar o chinelo ou parar de ler. São baratas alemãs, Blattella germanica, e não a Periplaneta americana, que infesta nossos lares. E mais, o artigo tem cenas picantes de sexo.

O sexo nessa barata se dá após um ritual de cortejo. O macho se aproxima da fêmea, vira as costas e separa as asas de maneira sedutora. Se a fêmea mostra algum interesse, o rapaz ativa glândulas que possui no seu dorso e oferece um presente. Uma gota de um líquido doce que as fêmeas adoram surge entre as asas do macho. Ávidas pelo bombom líquido, as fêmeas montam no dorso do macho para degustar a oferenda. Nesse momento o macho se alinha estrategicamente sob a fêmea, estende seu órgão genital, que tem a forma de um gancho virado para cima, e penetra a fêmea.

O sexo nessa barata se dá após um ritual de cortejo. O macho se aproxima da fêmea, vira as costas e separa as asas de maneira sedutora Foto: NCState

Para executar essa manobra ele precisa de sete segundos. É o tempo que a fêmea leva para saborear o doce. Quando o presente foi consumido, a fêmea tenta se desvencilhar. Mas aí é tarde, o macho já enganchou a genital e ela tem que esperar até que os espermatozoides sejam depositados. Você pode achar que o uso de presentes para atrair fêmeas é lamentável, mas é assim que funciona, e não só entre baratas.

Os seres humanos não gostam de baratas e faz décadas que tentam exterminá-las. Se aproveitam do fato desses insetos adorarem um doce. A arma de extermínio são iscas adoçadas com açúcar, contendo poderosos inseticidas. A barata não aguenta, come a isca, é envenenada e morre. Faz algum tempo que as iscas deixaram de funcionar, pois algumas baratas passaram a desprezá-las.

Ao investigar o motivo, os cientistas descobriram que a repulsa era causada por uma mutação que afeta os receptores que detectam o açúcar. As baratas mutantes têm ojeriza ao açúcar. Como as baratas que gostam de açúcar acabam envenenadas, e as que odeiam açúcar sobrevivem, essa mutação se espalhou rapidamente por toda a Europa.

Mas se as baratas deixaram de gostar de açúcar, o que estaria ocorrendo durante o ato sexual? O presente ofertado pelos machos já não convencia? Ofertar açúcar para uma barata fêmea que tem ojeriza a açúcar é o mesmo que presentear a namorada com um vidro de óleo de rícino de bacalhau. Os cientistas resolveram investigar o que ocorria colocando juntos machos e fêmeas que detestam açúcar. Quando o macho oferece a gota doce, a fêmea sobe nele e cai de boca na oferenda. Mas assim que sente o gosto de açúcar pula de cima do macho horrorizada. Ou seja, o tempo que ela fica em cima do macho, que normalmente era de sete segundos, fica reduzido a quatro segundos.

Em muitos casos, esse tempo não é suficiente para o macho conseguir enganchar a fêmea. E assim a reprodução da espécie fica menos eficiente. Em suma, os mutantes sobrevivem às tentativas de envenenamento, mas perdem eficácia reprodutiva.

Recentemente os cientistas descobriram machos capazes de manter fêmeas que tem ojeriza a açúcar distraídas pelos sete segundos necessários para que o ato sexual tenha sucesso. O que teria acontecido? Será que a gota secretada pelos macho deixou de ser doce? Para investigar esse fenômeno, os cientistas isolaram as gotas produzidas pelos machos capazes de manter as fêmeas por quatro ou sete segundos. Eles descobriram que a gota doce original contém maltose (um açúcar composto por duas glicoses ligadas entre si). Quando uma fêmea ingere essa gota, a maltose é imediatamente convertida em glicose e ela sente o sabor doce. Se a fêmea gosta de doce fica sete segundos nas costas do macho, se ela tem ojeriza, pula de lá em quatro segundos frustrando o macho.

Já os machos que surgiram mais recentemente, ao invés de maltose, produzem maltotriose (um açúcar composto por 3 moléculas de glicose ligadas entre si). Esse açúcar leva mais tempo para ser convertida em glicose na boca da fêmea e a fêmea leva mais tempo para perceber o gosto do açúcar. E quando ela percebe já é tarde, os sete segundos se passaram e ela já foi enganchada pelo órgão sexual do macho.

O ser humano, ao tentar envenenar as baratas, permitiu a seleção de animais que passaram a odiar açúcar, ficando protegidos do veneno. Mas essa mutação prejudicou a reprodução, o que permitiu o aparecimento de uma segunda mutação que altera a composição do presente ofertado pelo macho, substituindo a maltose pela maltotriose. Essa segunda mutação resolve o problema criado pela primeira e o resultado é que agora as baratas vivem felizes na Europa, imunes às iscas doces e se reproduzindo tão bem quanto antes. Esse é um bom exemplo de como a pressão seletiva provoca a evolução dos seres vivos.

Mais informações: Gustatory polymorphism mediates a new adaptive courtship strategy. Proc R. Soc. B. https://doi.org/10.1098/rspb.2022.2337 2023

Fernando Reinach é biólogo

Esse é um artigo sobre baratas. Você não precisa pular em cima da mesa, sacar o chinelo ou parar de ler. São baratas alemãs, Blattella germanica, e não a Periplaneta americana, que infesta nossos lares. E mais, o artigo tem cenas picantes de sexo.

O sexo nessa barata se dá após um ritual de cortejo. O macho se aproxima da fêmea, vira as costas e separa as asas de maneira sedutora. Se a fêmea mostra algum interesse, o rapaz ativa glândulas que possui no seu dorso e oferece um presente. Uma gota de um líquido doce que as fêmeas adoram surge entre as asas do macho. Ávidas pelo bombom líquido, as fêmeas montam no dorso do macho para degustar a oferenda. Nesse momento o macho se alinha estrategicamente sob a fêmea, estende seu órgão genital, que tem a forma de um gancho virado para cima, e penetra a fêmea.

O sexo nessa barata se dá após um ritual de cortejo. O macho se aproxima da fêmea, vira as costas e separa as asas de maneira sedutora Foto: NCState

Para executar essa manobra ele precisa de sete segundos. É o tempo que a fêmea leva para saborear o doce. Quando o presente foi consumido, a fêmea tenta se desvencilhar. Mas aí é tarde, o macho já enganchou a genital e ela tem que esperar até que os espermatozoides sejam depositados. Você pode achar que o uso de presentes para atrair fêmeas é lamentável, mas é assim que funciona, e não só entre baratas.

Os seres humanos não gostam de baratas e faz décadas que tentam exterminá-las. Se aproveitam do fato desses insetos adorarem um doce. A arma de extermínio são iscas adoçadas com açúcar, contendo poderosos inseticidas. A barata não aguenta, come a isca, é envenenada e morre. Faz algum tempo que as iscas deixaram de funcionar, pois algumas baratas passaram a desprezá-las.

Ao investigar o motivo, os cientistas descobriram que a repulsa era causada por uma mutação que afeta os receptores que detectam o açúcar. As baratas mutantes têm ojeriza ao açúcar. Como as baratas que gostam de açúcar acabam envenenadas, e as que odeiam açúcar sobrevivem, essa mutação se espalhou rapidamente por toda a Europa.

Mas se as baratas deixaram de gostar de açúcar, o que estaria ocorrendo durante o ato sexual? O presente ofertado pelos machos já não convencia? Ofertar açúcar para uma barata fêmea que tem ojeriza a açúcar é o mesmo que presentear a namorada com um vidro de óleo de rícino de bacalhau. Os cientistas resolveram investigar o que ocorria colocando juntos machos e fêmeas que detestam açúcar. Quando o macho oferece a gota doce, a fêmea sobe nele e cai de boca na oferenda. Mas assim que sente o gosto de açúcar pula de cima do macho horrorizada. Ou seja, o tempo que ela fica em cima do macho, que normalmente era de sete segundos, fica reduzido a quatro segundos.

Em muitos casos, esse tempo não é suficiente para o macho conseguir enganchar a fêmea. E assim a reprodução da espécie fica menos eficiente. Em suma, os mutantes sobrevivem às tentativas de envenenamento, mas perdem eficácia reprodutiva.

Recentemente os cientistas descobriram machos capazes de manter fêmeas que tem ojeriza a açúcar distraídas pelos sete segundos necessários para que o ato sexual tenha sucesso. O que teria acontecido? Será que a gota secretada pelos macho deixou de ser doce? Para investigar esse fenômeno, os cientistas isolaram as gotas produzidas pelos machos capazes de manter as fêmeas por quatro ou sete segundos. Eles descobriram que a gota doce original contém maltose (um açúcar composto por duas glicoses ligadas entre si). Quando uma fêmea ingere essa gota, a maltose é imediatamente convertida em glicose e ela sente o sabor doce. Se a fêmea gosta de doce fica sete segundos nas costas do macho, se ela tem ojeriza, pula de lá em quatro segundos frustrando o macho.

Já os machos que surgiram mais recentemente, ao invés de maltose, produzem maltotriose (um açúcar composto por 3 moléculas de glicose ligadas entre si). Esse açúcar leva mais tempo para ser convertida em glicose na boca da fêmea e a fêmea leva mais tempo para perceber o gosto do açúcar. E quando ela percebe já é tarde, os sete segundos se passaram e ela já foi enganchada pelo órgão sexual do macho.

O ser humano, ao tentar envenenar as baratas, permitiu a seleção de animais que passaram a odiar açúcar, ficando protegidos do veneno. Mas essa mutação prejudicou a reprodução, o que permitiu o aparecimento de uma segunda mutação que altera a composição do presente ofertado pelo macho, substituindo a maltose pela maltotriose. Essa segunda mutação resolve o problema criado pela primeira e o resultado é que agora as baratas vivem felizes na Europa, imunes às iscas doces e se reproduzindo tão bem quanto antes. Esse é um bom exemplo de como a pressão seletiva provoca a evolução dos seres vivos.

Mais informações: Gustatory polymorphism mediates a new adaptive courtship strategy. Proc R. Soc. B. https://doi.org/10.1098/rspb.2022.2337 2023

Fernando Reinach é biólogo

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Biólogo, PHD em Biologia Celular e Molecular pela Cornell University e autor de "A Chegada do Novo Coronavírus no Brasil"; "Folha de Lótus, Escorregador de Mosquito"; e "A Longa Marcha dos Grilos Canibais"

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