Opinião|Fim do Fundo Amazônia


O rico governo, que não paga sequer bolsas de estudo, disse que o País não precisa da verba

Por Fernando Reinach
Atualização:

Entre os defensores da política do desmate livre de Bolsonaro, circula um argumento antigo. “Os europeus cortaram suas florestas e ficaram ricos. Agora que chegou nossa vez de cortar, querem nos impedir. Se querem preservar a Amazônia, têm de pagar.”

Um argumento curioso. Associa o enriquecimento da Europa não à educação e às políticas econômicas e sociais dos últimos séculos, mas ao simples corte da floresta, como se a pujança da Alemanha se devesse a um bando de lenhadores e seus machados nos arredores de Frankfurt. Faça a conta: a Amazônia Legal tem 5 milhões de km². Se cada um dos 210 milhões de brasileiros desmatarem sua cota, cada brasileiro poderia desmatar 2,4 hectares, duas quadras de 100 por 100 metros. Não resolve o problema de ninguém.

É verdade que a vegetação que recobria a Europa antes da chegada humana foi totalmente destruída, e com ela grande parte da megafauna (grandes mamíferos, como mamutes). Mas isso começou faz mais de 1 milhão de anos com a chegada do Homo erectus. Ele era um bom caçador e há evidências que já controlava o fogo.

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A divulgação das informações de desmatamento tem incomodado profundamente o governo Foto: RAPHAEL ALVES / AFP

Nossa espécie sequer tinha surgido na África. Na Europa, as evidências mais antigas de fogo controlado são de 450 mil anos atrás, 350 mil anos antes da chegada do Homo sapiens. E quando chegamos já fazíamos nossas fogueirinhas com lenha para cozinhar e nos aquecermos na porta das cavernas. Essas populações conheciam a agricultura, desmatavam, mas provavelmente de forma sustentável. O desmate bravo começou por volta de 10 mil anos atrás, quando a agricultura permitiu enorme aumento da população. Lenha para o fogão e desmate para a agricultura dizimaram florestas. 

Muito antes da descoberta do Brasil, praticamente não havia florestas intocadas na Europa. Na época em que essas florestas foram cortadas, o ser humano não sabia que o mundo era redondo, que girava em torno do Sol, que o ambiente é finito. O conceito de que o ambiente é frágil e limitado só surgiu cem anos atrás, quando descobrimos que se não o preservássemos teríamos vida curta no planeta. 

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É ridículo argumentar que um agricultor medieval pode ser comparado conosco no que tange sua responsabilidade com o ambiente. Desmatamos sabendo que isso é suicídio e as florestas restantes são essenciais para continuarmos a produzir alimento. O que é razoável questionar é se a Europa atual faz de fato sua parte, tanto preservando suas florestas quanto garantindo que suas empresas não desmatem ao redor do mundo. Hoje, grande parte do planeta se preocupa com a Amazônia e pressiona o Brasil para conter o desmate. Mas, retrucaria um defensor do desmate livre, que paguem por isso. É isso que Noruega e Alemanha vêm fazendo nos últimos 11 anos. 

Esse pagamento é o Fundo Amazônia. Criado em 2008, ele recebe dinheiro desses dois países e aplica em projetos com o objetivo reduzir o desmatamento, inibindo atividades ilegais e ajudando a desenvolver soluções que permitam a população da Amazônia viver da floresta de modo sustentável. 

Bingo, dirão os defensores do desmate livre: os europeus querem ditar para o Brasil o que fazer. Não é verdade. O fundo é gerido pelo governo brasileiro e o direcionamento de recursos, decidido por duas comissões indicadas pelo governo. Os gestores do fundo podem fazer o que quiserem com o dinheiro, contanto que os projetos sejam para reduzir o desmate. É dinheiro europeu, de graça, sob controle do Brasil. Esse fundo já aprovou 103 projetos, no valor de R$ 1,86 bilhão, e já desembolsou R$ 1,3 bilhão. Bingo novamente, dirão os paranoicos defensores do desmate livre: a verba dever ir toda para ONGs de fachada, braços secretos de governos estrangeiros.

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Novamente não é verdade: 62% da verba liberada até agora foi para o próprio governo brasileiro, universidades, prefeituras e Estados. E, sim, 38% foram para organizações não governamentais. Mas apesar de ser dinheiro de graça, que em grande parte foi para o próprio governo, Bolsonaro demitiu os dois comitês que gerenciam o fundo, paralisando seu funcionamento e anunciou uma auditoria. Disseram querer o dinheiro para outros projetos. É possível que haja projetos melhores, ainda não descobrimos a melhor receita para reduzir o desmate. Mas o fato é que, durante a vigência do fundo, o desmatamento foi reduzido na Amazônia e parte se deve aos projetos do fundo. É claro que no Brasil uma auditoria nunca faz mal a um órgão público. Mas poderia ser feita sem paralisar o fundo. 

Mas não: tudo foi paralisado e a discussão com os doadores azedou. Noruega e Alemanha perderam a confiança e pararam de enviar dinheiro. Se o objetivo dos defensores do desmate livre era facilitar o desmate, conseguiram. E, num final patético, nosso rico governo, que sequer consegue financiar bolsas de estudo, disse que o País não precisa desse dinheiro. Se a história se confirmar e o fundo acabar, ninguém tem direito de argumentar que se os países europeus querem que preservemos a Amazônia terão de pagar por isso. Eles tentaram, mas foram rechaçados pela política de desmate livre do governo Bolsonaro.

Mais informações: Fundoamazonia.gov.br 

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*FERNANDO REINACH É BIÓLOGO

Entre os defensores da política do desmate livre de Bolsonaro, circula um argumento antigo. “Os europeus cortaram suas florestas e ficaram ricos. Agora que chegou nossa vez de cortar, querem nos impedir. Se querem preservar a Amazônia, têm de pagar.”

Um argumento curioso. Associa o enriquecimento da Europa não à educação e às políticas econômicas e sociais dos últimos séculos, mas ao simples corte da floresta, como se a pujança da Alemanha se devesse a um bando de lenhadores e seus machados nos arredores de Frankfurt. Faça a conta: a Amazônia Legal tem 5 milhões de km². Se cada um dos 210 milhões de brasileiros desmatarem sua cota, cada brasileiro poderia desmatar 2,4 hectares, duas quadras de 100 por 100 metros. Não resolve o problema de ninguém.

É verdade que a vegetação que recobria a Europa antes da chegada humana foi totalmente destruída, e com ela grande parte da megafauna (grandes mamíferos, como mamutes). Mas isso começou faz mais de 1 milhão de anos com a chegada do Homo erectus. Ele era um bom caçador e há evidências que já controlava o fogo.

A divulgação das informações de desmatamento tem incomodado profundamente o governo Foto: RAPHAEL ALVES / AFP

Nossa espécie sequer tinha surgido na África. Na Europa, as evidências mais antigas de fogo controlado são de 450 mil anos atrás, 350 mil anos antes da chegada do Homo sapiens. E quando chegamos já fazíamos nossas fogueirinhas com lenha para cozinhar e nos aquecermos na porta das cavernas. Essas populações conheciam a agricultura, desmatavam, mas provavelmente de forma sustentável. O desmate bravo começou por volta de 10 mil anos atrás, quando a agricultura permitiu enorme aumento da população. Lenha para o fogão e desmate para a agricultura dizimaram florestas. 

Muito antes da descoberta do Brasil, praticamente não havia florestas intocadas na Europa. Na época em que essas florestas foram cortadas, o ser humano não sabia que o mundo era redondo, que girava em torno do Sol, que o ambiente é finito. O conceito de que o ambiente é frágil e limitado só surgiu cem anos atrás, quando descobrimos que se não o preservássemos teríamos vida curta no planeta. 

É ridículo argumentar que um agricultor medieval pode ser comparado conosco no que tange sua responsabilidade com o ambiente. Desmatamos sabendo que isso é suicídio e as florestas restantes são essenciais para continuarmos a produzir alimento. O que é razoável questionar é se a Europa atual faz de fato sua parte, tanto preservando suas florestas quanto garantindo que suas empresas não desmatem ao redor do mundo. Hoje, grande parte do planeta se preocupa com a Amazônia e pressiona o Brasil para conter o desmate. Mas, retrucaria um defensor do desmate livre, que paguem por isso. É isso que Noruega e Alemanha vêm fazendo nos últimos 11 anos. 

Esse pagamento é o Fundo Amazônia. Criado em 2008, ele recebe dinheiro desses dois países e aplica em projetos com o objetivo reduzir o desmatamento, inibindo atividades ilegais e ajudando a desenvolver soluções que permitam a população da Amazônia viver da floresta de modo sustentável. 

Bingo, dirão os defensores do desmate livre: os europeus querem ditar para o Brasil o que fazer. Não é verdade. O fundo é gerido pelo governo brasileiro e o direcionamento de recursos, decidido por duas comissões indicadas pelo governo. Os gestores do fundo podem fazer o que quiserem com o dinheiro, contanto que os projetos sejam para reduzir o desmate. É dinheiro europeu, de graça, sob controle do Brasil. Esse fundo já aprovou 103 projetos, no valor de R$ 1,86 bilhão, e já desembolsou R$ 1,3 bilhão. Bingo novamente, dirão os paranoicos defensores do desmate livre: a verba dever ir toda para ONGs de fachada, braços secretos de governos estrangeiros.

Novamente não é verdade: 62% da verba liberada até agora foi para o próprio governo brasileiro, universidades, prefeituras e Estados. E, sim, 38% foram para organizações não governamentais. Mas apesar de ser dinheiro de graça, que em grande parte foi para o próprio governo, Bolsonaro demitiu os dois comitês que gerenciam o fundo, paralisando seu funcionamento e anunciou uma auditoria. Disseram querer o dinheiro para outros projetos. É possível que haja projetos melhores, ainda não descobrimos a melhor receita para reduzir o desmate. Mas o fato é que, durante a vigência do fundo, o desmatamento foi reduzido na Amazônia e parte se deve aos projetos do fundo. É claro que no Brasil uma auditoria nunca faz mal a um órgão público. Mas poderia ser feita sem paralisar o fundo. 

Mas não: tudo foi paralisado e a discussão com os doadores azedou. Noruega e Alemanha perderam a confiança e pararam de enviar dinheiro. Se o objetivo dos defensores do desmate livre era facilitar o desmate, conseguiram. E, num final patético, nosso rico governo, que sequer consegue financiar bolsas de estudo, disse que o País não precisa desse dinheiro. Se a história se confirmar e o fundo acabar, ninguém tem direito de argumentar que se os países europeus querem que preservemos a Amazônia terão de pagar por isso. Eles tentaram, mas foram rechaçados pela política de desmate livre do governo Bolsonaro.

Mais informações: Fundoamazonia.gov.br 

*FERNANDO REINACH É BIÓLOGO

Entre os defensores da política do desmate livre de Bolsonaro, circula um argumento antigo. “Os europeus cortaram suas florestas e ficaram ricos. Agora que chegou nossa vez de cortar, querem nos impedir. Se querem preservar a Amazônia, têm de pagar.”

Um argumento curioso. Associa o enriquecimento da Europa não à educação e às políticas econômicas e sociais dos últimos séculos, mas ao simples corte da floresta, como se a pujança da Alemanha se devesse a um bando de lenhadores e seus machados nos arredores de Frankfurt. Faça a conta: a Amazônia Legal tem 5 milhões de km². Se cada um dos 210 milhões de brasileiros desmatarem sua cota, cada brasileiro poderia desmatar 2,4 hectares, duas quadras de 100 por 100 metros. Não resolve o problema de ninguém.

É verdade que a vegetação que recobria a Europa antes da chegada humana foi totalmente destruída, e com ela grande parte da megafauna (grandes mamíferos, como mamutes). Mas isso começou faz mais de 1 milhão de anos com a chegada do Homo erectus. Ele era um bom caçador e há evidências que já controlava o fogo.

A divulgação das informações de desmatamento tem incomodado profundamente o governo Foto: RAPHAEL ALVES / AFP

Nossa espécie sequer tinha surgido na África. Na Europa, as evidências mais antigas de fogo controlado são de 450 mil anos atrás, 350 mil anos antes da chegada do Homo sapiens. E quando chegamos já fazíamos nossas fogueirinhas com lenha para cozinhar e nos aquecermos na porta das cavernas. Essas populações conheciam a agricultura, desmatavam, mas provavelmente de forma sustentável. O desmate bravo começou por volta de 10 mil anos atrás, quando a agricultura permitiu enorme aumento da população. Lenha para o fogão e desmate para a agricultura dizimaram florestas. 

Muito antes da descoberta do Brasil, praticamente não havia florestas intocadas na Europa. Na época em que essas florestas foram cortadas, o ser humano não sabia que o mundo era redondo, que girava em torno do Sol, que o ambiente é finito. O conceito de que o ambiente é frágil e limitado só surgiu cem anos atrás, quando descobrimos que se não o preservássemos teríamos vida curta no planeta. 

É ridículo argumentar que um agricultor medieval pode ser comparado conosco no que tange sua responsabilidade com o ambiente. Desmatamos sabendo que isso é suicídio e as florestas restantes são essenciais para continuarmos a produzir alimento. O que é razoável questionar é se a Europa atual faz de fato sua parte, tanto preservando suas florestas quanto garantindo que suas empresas não desmatem ao redor do mundo. Hoje, grande parte do planeta se preocupa com a Amazônia e pressiona o Brasil para conter o desmate. Mas, retrucaria um defensor do desmate livre, que paguem por isso. É isso que Noruega e Alemanha vêm fazendo nos últimos 11 anos. 

Esse pagamento é o Fundo Amazônia. Criado em 2008, ele recebe dinheiro desses dois países e aplica em projetos com o objetivo reduzir o desmatamento, inibindo atividades ilegais e ajudando a desenvolver soluções que permitam a população da Amazônia viver da floresta de modo sustentável. 

Bingo, dirão os defensores do desmate livre: os europeus querem ditar para o Brasil o que fazer. Não é verdade. O fundo é gerido pelo governo brasileiro e o direcionamento de recursos, decidido por duas comissões indicadas pelo governo. Os gestores do fundo podem fazer o que quiserem com o dinheiro, contanto que os projetos sejam para reduzir o desmate. É dinheiro europeu, de graça, sob controle do Brasil. Esse fundo já aprovou 103 projetos, no valor de R$ 1,86 bilhão, e já desembolsou R$ 1,3 bilhão. Bingo novamente, dirão os paranoicos defensores do desmate livre: a verba dever ir toda para ONGs de fachada, braços secretos de governos estrangeiros.

Novamente não é verdade: 62% da verba liberada até agora foi para o próprio governo brasileiro, universidades, prefeituras e Estados. E, sim, 38% foram para organizações não governamentais. Mas apesar de ser dinheiro de graça, que em grande parte foi para o próprio governo, Bolsonaro demitiu os dois comitês que gerenciam o fundo, paralisando seu funcionamento e anunciou uma auditoria. Disseram querer o dinheiro para outros projetos. É possível que haja projetos melhores, ainda não descobrimos a melhor receita para reduzir o desmate. Mas o fato é que, durante a vigência do fundo, o desmatamento foi reduzido na Amazônia e parte se deve aos projetos do fundo. É claro que no Brasil uma auditoria nunca faz mal a um órgão público. Mas poderia ser feita sem paralisar o fundo. 

Mas não: tudo foi paralisado e a discussão com os doadores azedou. Noruega e Alemanha perderam a confiança e pararam de enviar dinheiro. Se o objetivo dos defensores do desmate livre era facilitar o desmate, conseguiram. E, num final patético, nosso rico governo, que sequer consegue financiar bolsas de estudo, disse que o País não precisa desse dinheiro. Se a história se confirmar e o fundo acabar, ninguém tem direito de argumentar que se os países europeus querem que preservemos a Amazônia terão de pagar por isso. Eles tentaram, mas foram rechaçados pela política de desmate livre do governo Bolsonaro.

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