Opinião|GPS, cocô de zebra e câmeras: como é decifrado mistério sobre migração de animais na África


Espécies se deslocam em sequência, pois isso permite melhor exploração do alimento disponível

Por Fernando Reinach

A migração das zebras, gnus e gazelas para o norte do Serengeti, na Tanzânia, é deslumbrante. Todo mês de abril, 200 mil zebras iniciam a viagem de 800 km. São seguidas por 1,3 milhão de gnus e, na sequência, por 400 mil gazelas. São acompanhadas de perto pelos carnívoros, como leões, leopardos e hienas. Nessa migração, as três espécies de herbívoros raspam a vegetação que cresceu nos meses anteriores. E os predadores fazem a festa.

O interessante é que a migração não ocorre de forma desordenada, mas segue sempre a mesma ordem: as zebras vão na frente, seguidas pelos gnus e por fim, pelas gazelas. Há décadas os ecologistas tentavam explicar a razão dessa ordem. Até agora existiam três teorias.

Migração na Tanzânia ocorre de maneira sequencial, com as zebras à frente; assim não parece haver competição entre as espécies Foto: MelissaMN - stock.adobe.com
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A primeira é de que, ao se espalhar ao longo do tempo e, portanto, ocupando áreas maiores, as três espécies dificultam a ação dos predadores. A segunda é de que competem pela comida e a ordem seria determinada pelo tamanho do animal. A zebra, com seus 230 kg, dominaria primeiro as áreas de pasto alto, seguida pelos gnus (155 kg), e as gazelas, menores (20 kg), ficariam com o que restou do pasto. A terceira teoria é de que haveria um processo de facilitação, ou colaboração entre as espécies. A zebra, com sua boca grande, comeria as gramíneas mais altas, dando acesso aos gnus e gazelas às plantas mais baixas, rasteiras. Seria uma maneira de otimizar a coleta do alimento.

Agora, um grupo de cientistas publicou um estudo capaz de discriminar entre essas três hipóteses. Para tanto, eles instalaram ao longo da rota de migração 200 câmeras fotográficas ativadas pela presença de animais. A migração foi documentada por 8 anos, entre 2012 e 2020. Os animais presentes em cada foto, devidamente datada, foram identificados e contados por um grupo de 130 mil voluntários de todo o mundo. No último ano, isso foi feito por um sistema de inteligência artificial. Também foram colocados colares com sistemas de GPS em 28 zebras e 54 gnus.

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Com esse sistema, os cientistas puderam saber exatamente onde cada um desses animais estava em cada momento. Finalmente foram coletadas 230 amostras de fezes das três espécies, que foram analisadas para identificar que plantas cada animal havia comido.

Os resultados obtidos analisando as fotografias demonstram que, ao migrar na frente, as zebras são os primeiros animais a pastar nas novas áreas. Os gnus chegam logo atrás e pastam em áreas que já foram rebaixadas pelas zebras.

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Essa observação foi confirmada pelos dados coletados dos colares com GPS. Já o exame das fezes demonstrou que zebras e gnus comem plantas distintas. As abocanhadas pelas zebras são mais altas, estão presentes em maior volume e são menos nutritivas se comparadas às consumidas pelos gnus. À medida que as zebras comem e avançam para o norte, liberam áreas de pastagem mais baixas e com diferentes espécies. Os gnus comem toda a vegetação deixada pelas zebras, quase rapelando a área e colocando pressão para as zebras se moverem em direção a áreas ainda virgens. Após o avanço de zebras e gnus, as plantas devoradas começam a brotar e esses brotos, muito nutritivos, são pequenos demais para serem abocanhados com eficiência por zebras e gnus.

Gazelas têm bocas pequenas, adaptadas para arrancar os brotos Foto: adrenalinapura - stock.adobe.com

É nesse momento, algumas semanas depois, que chegam as gazelas, com suas bocas pequenas e delicadas, adaptadas para arrancar os brotos que estão surgindo. E fazem a festa. É menos comida, mas ela é mais nutritiva. Já os carnívoros permanecem em seus territórios e tentam caçar os membros mais fracos ou desgarrados das três espécies. Eles parecem não acompanhar a migração. É como se permanecessem na beira da estrada atacando a caravana.

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Esses dados indicam que as três espécies fazem a migração em ordem sequencial, pois isso permite uma melhor exploração do alimento disponível. Dessa forma não parece haver competição entre as espécies pelo alimento nem um papel importante dos predadores. É um arranjo que permite o melhor aproveitamento da pastagem. E a hipótese de que as espécies colaboram entre si, uma facilitando a vida da outra, parece ser a explicação correta. Não é bonito?

Mais informações: Interplay of competition and facilitation in grazing succession by migrant Serengeti herbivores. Science vol. 383, pag. 782–788 2024

A migração das zebras, gnus e gazelas para o norte do Serengeti, na Tanzânia, é deslumbrante. Todo mês de abril, 200 mil zebras iniciam a viagem de 800 km. São seguidas por 1,3 milhão de gnus e, na sequência, por 400 mil gazelas. São acompanhadas de perto pelos carnívoros, como leões, leopardos e hienas. Nessa migração, as três espécies de herbívoros raspam a vegetação que cresceu nos meses anteriores. E os predadores fazem a festa.

O interessante é que a migração não ocorre de forma desordenada, mas segue sempre a mesma ordem: as zebras vão na frente, seguidas pelos gnus e por fim, pelas gazelas. Há décadas os ecologistas tentavam explicar a razão dessa ordem. Até agora existiam três teorias.

Migração na Tanzânia ocorre de maneira sequencial, com as zebras à frente; assim não parece haver competição entre as espécies Foto: MelissaMN - stock.adobe.com

A primeira é de que, ao se espalhar ao longo do tempo e, portanto, ocupando áreas maiores, as três espécies dificultam a ação dos predadores. A segunda é de que competem pela comida e a ordem seria determinada pelo tamanho do animal. A zebra, com seus 230 kg, dominaria primeiro as áreas de pasto alto, seguida pelos gnus (155 kg), e as gazelas, menores (20 kg), ficariam com o que restou do pasto. A terceira teoria é de que haveria um processo de facilitação, ou colaboração entre as espécies. A zebra, com sua boca grande, comeria as gramíneas mais altas, dando acesso aos gnus e gazelas às plantas mais baixas, rasteiras. Seria uma maneira de otimizar a coleta do alimento.

Agora, um grupo de cientistas publicou um estudo capaz de discriminar entre essas três hipóteses. Para tanto, eles instalaram ao longo da rota de migração 200 câmeras fotográficas ativadas pela presença de animais. A migração foi documentada por 8 anos, entre 2012 e 2020. Os animais presentes em cada foto, devidamente datada, foram identificados e contados por um grupo de 130 mil voluntários de todo o mundo. No último ano, isso foi feito por um sistema de inteligência artificial. Também foram colocados colares com sistemas de GPS em 28 zebras e 54 gnus.

Com esse sistema, os cientistas puderam saber exatamente onde cada um desses animais estava em cada momento. Finalmente foram coletadas 230 amostras de fezes das três espécies, que foram analisadas para identificar que plantas cada animal havia comido.

Os resultados obtidos analisando as fotografias demonstram que, ao migrar na frente, as zebras são os primeiros animais a pastar nas novas áreas. Os gnus chegam logo atrás e pastam em áreas que já foram rebaixadas pelas zebras.

Essa observação foi confirmada pelos dados coletados dos colares com GPS. Já o exame das fezes demonstrou que zebras e gnus comem plantas distintas. As abocanhadas pelas zebras são mais altas, estão presentes em maior volume e são menos nutritivas se comparadas às consumidas pelos gnus. À medida que as zebras comem e avançam para o norte, liberam áreas de pastagem mais baixas e com diferentes espécies. Os gnus comem toda a vegetação deixada pelas zebras, quase rapelando a área e colocando pressão para as zebras se moverem em direção a áreas ainda virgens. Após o avanço de zebras e gnus, as plantas devoradas começam a brotar e esses brotos, muito nutritivos, são pequenos demais para serem abocanhados com eficiência por zebras e gnus.

Gazelas têm bocas pequenas, adaptadas para arrancar os brotos Foto: adrenalinapura - stock.adobe.com

É nesse momento, algumas semanas depois, que chegam as gazelas, com suas bocas pequenas e delicadas, adaptadas para arrancar os brotos que estão surgindo. E fazem a festa. É menos comida, mas ela é mais nutritiva. Já os carnívoros permanecem em seus territórios e tentam caçar os membros mais fracos ou desgarrados das três espécies. Eles parecem não acompanhar a migração. É como se permanecessem na beira da estrada atacando a caravana.

Esses dados indicam que as três espécies fazem a migração em ordem sequencial, pois isso permite uma melhor exploração do alimento disponível. Dessa forma não parece haver competição entre as espécies pelo alimento nem um papel importante dos predadores. É um arranjo que permite o melhor aproveitamento da pastagem. E a hipótese de que as espécies colaboram entre si, uma facilitando a vida da outra, parece ser a explicação correta. Não é bonito?

Mais informações: Interplay of competition and facilitation in grazing succession by migrant Serengeti herbivores. Science vol. 383, pag. 782–788 2024

A migração das zebras, gnus e gazelas para o norte do Serengeti, na Tanzânia, é deslumbrante. Todo mês de abril, 200 mil zebras iniciam a viagem de 800 km. São seguidas por 1,3 milhão de gnus e, na sequência, por 400 mil gazelas. São acompanhadas de perto pelos carnívoros, como leões, leopardos e hienas. Nessa migração, as três espécies de herbívoros raspam a vegetação que cresceu nos meses anteriores. E os predadores fazem a festa.

O interessante é que a migração não ocorre de forma desordenada, mas segue sempre a mesma ordem: as zebras vão na frente, seguidas pelos gnus e por fim, pelas gazelas. Há décadas os ecologistas tentavam explicar a razão dessa ordem. Até agora existiam três teorias.

Migração na Tanzânia ocorre de maneira sequencial, com as zebras à frente; assim não parece haver competição entre as espécies Foto: MelissaMN - stock.adobe.com

A primeira é de que, ao se espalhar ao longo do tempo e, portanto, ocupando áreas maiores, as três espécies dificultam a ação dos predadores. A segunda é de que competem pela comida e a ordem seria determinada pelo tamanho do animal. A zebra, com seus 230 kg, dominaria primeiro as áreas de pasto alto, seguida pelos gnus (155 kg), e as gazelas, menores (20 kg), ficariam com o que restou do pasto. A terceira teoria é de que haveria um processo de facilitação, ou colaboração entre as espécies. A zebra, com sua boca grande, comeria as gramíneas mais altas, dando acesso aos gnus e gazelas às plantas mais baixas, rasteiras. Seria uma maneira de otimizar a coleta do alimento.

Agora, um grupo de cientistas publicou um estudo capaz de discriminar entre essas três hipóteses. Para tanto, eles instalaram ao longo da rota de migração 200 câmeras fotográficas ativadas pela presença de animais. A migração foi documentada por 8 anos, entre 2012 e 2020. Os animais presentes em cada foto, devidamente datada, foram identificados e contados por um grupo de 130 mil voluntários de todo o mundo. No último ano, isso foi feito por um sistema de inteligência artificial. Também foram colocados colares com sistemas de GPS em 28 zebras e 54 gnus.

Com esse sistema, os cientistas puderam saber exatamente onde cada um desses animais estava em cada momento. Finalmente foram coletadas 230 amostras de fezes das três espécies, que foram analisadas para identificar que plantas cada animal havia comido.

Os resultados obtidos analisando as fotografias demonstram que, ao migrar na frente, as zebras são os primeiros animais a pastar nas novas áreas. Os gnus chegam logo atrás e pastam em áreas que já foram rebaixadas pelas zebras.

Essa observação foi confirmada pelos dados coletados dos colares com GPS. Já o exame das fezes demonstrou que zebras e gnus comem plantas distintas. As abocanhadas pelas zebras são mais altas, estão presentes em maior volume e são menos nutritivas se comparadas às consumidas pelos gnus. À medida que as zebras comem e avançam para o norte, liberam áreas de pastagem mais baixas e com diferentes espécies. Os gnus comem toda a vegetação deixada pelas zebras, quase rapelando a área e colocando pressão para as zebras se moverem em direção a áreas ainda virgens. Após o avanço de zebras e gnus, as plantas devoradas começam a brotar e esses brotos, muito nutritivos, são pequenos demais para serem abocanhados com eficiência por zebras e gnus.

Gazelas têm bocas pequenas, adaptadas para arrancar os brotos Foto: adrenalinapura - stock.adobe.com

É nesse momento, algumas semanas depois, que chegam as gazelas, com suas bocas pequenas e delicadas, adaptadas para arrancar os brotos que estão surgindo. E fazem a festa. É menos comida, mas ela é mais nutritiva. Já os carnívoros permanecem em seus territórios e tentam caçar os membros mais fracos ou desgarrados das três espécies. Eles parecem não acompanhar a migração. É como se permanecessem na beira da estrada atacando a caravana.

Esses dados indicam que as três espécies fazem a migração em ordem sequencial, pois isso permite uma melhor exploração do alimento disponível. Dessa forma não parece haver competição entre as espécies pelo alimento nem um papel importante dos predadores. É um arranjo que permite o melhor aproveitamento da pastagem. E a hipótese de que as espécies colaboram entre si, uma facilitando a vida da outra, parece ser a explicação correta. Não é bonito?

Mais informações: Interplay of competition and facilitation in grazing succession by migrant Serengeti herbivores. Science vol. 383, pag. 782–788 2024

Opinião por Fernando Reinach

Biólogo, PHD em Biologia Celular e Molecular pela Cornell University e autor de "A Chegada do Novo Coronavírus no Brasil"; "Folha de Lótus, Escorregador de Mosquito"; e "A Longa Marcha dos Grilos Canibais"

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