Opinião|Marco temporal das reservas indígenas: o Brasil precisa dele?


É necessário decidir o que fazer com as reservas que estão no meio do processo de homologação

Por Fernando Reinach

Apesar de o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF) terem quase se pegado a tapa esta semana, todos concordam que ao chegarem aqui os portugueses se depararam com uma enorme população indígena. Nunca saberemos quantos eram ou que áreas ocupavam, mas representavam 100% da população.

Nos séculos seguintes grande parte dessa população foi exterminada. Parte foi simplesmente assassinada, parte escravizada e morta e parte dizimada pelas doenças que os europeus trouxeram. Hoje, os 1,7 milhão de indígenas remanescentes representam 0,82% da população brasileira.

Foi para reconhecer o direito dessas populações sobre a terra que ocupavam que as Constituições recentes criaram a figura das reservas indígenas. São áreas demarcadas e protegidas, em que essas populações podem preservar seu modo de vida e sua cultura. Nada mais justo frente a toda a atrocidade cometida.

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A demarcação das reservas indígenas segue um processo complicado, com muitas etapas, mas fácil de entender. Ele começa quando um grupo indígena ou a Funai solicita a demarcação. Eles precisam demonstrar que indígenas habitavam a região e solicitam que a área seja transformada em reserva.

Num segundo passo, estudos feitos por arqueólogos e antropólogos precisam confirmar que existem evidências da ocupação passada ou atual da área por essas populações. Num terceiro passo é delimitado o perímetro da área necessária para que a comunidade indígena possa sobreviver e preservar sua cultura.

Indígenas acompanham sessão plenária do STF sobre o marco temporal Foto: Carlos Moura/STF
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Assim, se a comunidade é caçadora ou nômade, uma área maior é reservada para sua sobrevivência. Finalmente, a reserva é demarcada e homologada pelo Presidente da República (Lula homologou oito reservas desde o início do ano). Como nossa Constituição admite que os direitos das populações indígenas precedem os direitos individuais dos que chegaram depois, qualquer propriedade privada localizada no interior de uma nova reserva é desapropriada e seus ocupantes devem ser realocados.

A criação de reservas tem ocorrido sem maiores conflitos, pois grande parte foi criada no interior da região amazônica ou em áreas de vegetação nativa. Hoje 13,8% do território nacional são terras indígenas. São 764 reservas, sendo que 448 já foram homologadas.

Essas reservas são duplamente importantes. Primeiro porque permitem a sobrevivência das comunidades indígenas, e segundo por constituírem um enorme conjunto de áreas onde a vegetação nativa e a biodiversidade do País está protegida e preservada.

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As áreas mais bem preservadas no Brasil estão nessas reservas. A existência, preservação e expansão das reservas precisam ser defendidas com unhas e dentes. Caso no futuro distante elas não forem mais habitadas por populações indígenas, deveriam ser automaticamente transformadas em reservas ecológicas ou parques intocáveis.

O problema é que surgiram casos em que as áreas solicitadas pelas populações indígenas se localizam em áreas já ocupadas com cidades. Para entender o problema, veja um caso hipotético onde eu resolva recuperar meus direitos originais.

Os leitores não sabem, mas minha bisavó era tupi guarani e vivia em São Paulo. Sua filha, minha avó, vivia numa pequena casa na Alameda Campinas. Imagine que eu reúna outros tupis guaranis (eles ocupavam o Pátio do Colégio quando São Paulo foi fundada em 1554 e se estima que mais de 10 mil ainda vivem na cidade) e juntos solicitemos que uma reserva indígena seja criada na colina onde está a Avenida Paulista, e que a reserva se estenda até o Pátio do Colégio e o rio Pinheiros.

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Imagine ainda que nossa alegação seja de que pretendemos retomar nosso modo de vida no território que era ocupado por nossos ancestrais. Conseguir um laudo de antropólogos e arqueólogos demonstrando que nossa tribo vivia na região não deve ser difícil, pois existem cerâmicas e registros históricos dessa ocupação. Nosso pleito terá de ser avaliado.

Pela lei atual, e pela interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal ao que está escrito na Constituição, o governo tem o dever de demarcar essa área como uma nova reserva indígena. Isso porque os direitos de nossa tribo vêm de antes da fundação da cidade e só vivemos espalhados no meio dessa metrópole devido aos colonizadores que tomaram nossas terras.

Como não existe uma data limite para reivindicar esse direito, ele existe até hoje e pode ser exercido em qualquer data futura. É fácil entender o motivo de esse direito causa insegurança jurídica: minha namorada, que mora aqui perto, vai ficar com medo de que minha tribo tome sua casa. Afinal, quando uma reserva é homologada, todos os habitantes anteriores devem ser realocados para fora da reserva.

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É claro que o Executivo e o Judiciário vão arranjar um jeito tortuoso de não conceder uma grande parte da cidade de São Paulo para minha tribo. Entretanto, pela Constituição, o correto é que recebêssemos essa terra. Afinal, não existe dúvida que ela já era nossa antes da chegada dos portugueses. E esse direito foi reafirmado pelo STF essa semana.

Na realidade, esse tipo de conflito já existe em duas terras indígenas aqui perto da avenida Paulista, uma no pico do Jaraguá, outra na região de Interlagos. Foi um caso semelhante, em Santa Catarina, que provocou a discussão sobre o “marco temporal”.

A proposta do marco temporal coloca um limite ao que um grupo indígena pode reivindicar. Pelo projeto aprovado no Congresso essa semana, eu só posso tomar posse da Avenida Paulista e adjacências se conseguir demonstrar que ocupava a área na data da promulgação da Constituição (1988). Esse é o conceito do marco temporal: não adianta eu provar que minha tribo morava ali quando a cidade foi fundada, eu preciso mostrar que estava ali em 1988 ou depois. E que se saiba não existiam aldeias indígenas na Avenida Paulista em 1988.

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Não há dúvida de que uma lei que defina um marco temporal para a implantação de novas reservas indígenas restringe o direito dos povos indígenas. Mas, também é claro que um marco temporal não impede que novas reservas indígenas sejam criadas para proteger as populações que habitam as florestas atualmente ou as que estavam em qualquer cidade depois de 1988, como é o caso das populações indígenas no pico do Jaraguá ou em Interlagos. E em nada afeta as reservas já demarcadas e homologadas.

É claro que é necessário decidir o que fazer com as reservas que estão no meio do processo de homologação. O principal problema da lei recém aprovada é que ela contém artigos que enfraquecem a proteção às reservas. Esses artigos precisam ser vetados.

Me parece que algum tipo de marco temporal é necessário para garantir a boa convivência entre as populações indígenas e o restante dos brasileiros. Como antes da chegada dos portugueses os povos indígenas ocupavam quase todo o Brasil, a ausência de algum tipo de limite temporal permite que, em teoria, todo o território brasileiro seja transformado em reservas indígenas. Pensando bem, do ponto de vista ambiental, talvez não seja uma ideia tão ruim. O problema é decidir onde colocar os outros 214 milhões de brasileiros.

Apesar de o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF) terem quase se pegado a tapa esta semana, todos concordam que ao chegarem aqui os portugueses se depararam com uma enorme população indígena. Nunca saberemos quantos eram ou que áreas ocupavam, mas representavam 100% da população.

Nos séculos seguintes grande parte dessa população foi exterminada. Parte foi simplesmente assassinada, parte escravizada e morta e parte dizimada pelas doenças que os europeus trouxeram. Hoje, os 1,7 milhão de indígenas remanescentes representam 0,82% da população brasileira.

Foi para reconhecer o direito dessas populações sobre a terra que ocupavam que as Constituições recentes criaram a figura das reservas indígenas. São áreas demarcadas e protegidas, em que essas populações podem preservar seu modo de vida e sua cultura. Nada mais justo frente a toda a atrocidade cometida.

A demarcação das reservas indígenas segue um processo complicado, com muitas etapas, mas fácil de entender. Ele começa quando um grupo indígena ou a Funai solicita a demarcação. Eles precisam demonstrar que indígenas habitavam a região e solicitam que a área seja transformada em reserva.

Num segundo passo, estudos feitos por arqueólogos e antropólogos precisam confirmar que existem evidências da ocupação passada ou atual da área por essas populações. Num terceiro passo é delimitado o perímetro da área necessária para que a comunidade indígena possa sobreviver e preservar sua cultura.

Indígenas acompanham sessão plenária do STF sobre o marco temporal Foto: Carlos Moura/STF

Assim, se a comunidade é caçadora ou nômade, uma área maior é reservada para sua sobrevivência. Finalmente, a reserva é demarcada e homologada pelo Presidente da República (Lula homologou oito reservas desde o início do ano). Como nossa Constituição admite que os direitos das populações indígenas precedem os direitos individuais dos que chegaram depois, qualquer propriedade privada localizada no interior de uma nova reserva é desapropriada e seus ocupantes devem ser realocados.

A criação de reservas tem ocorrido sem maiores conflitos, pois grande parte foi criada no interior da região amazônica ou em áreas de vegetação nativa. Hoje 13,8% do território nacional são terras indígenas. São 764 reservas, sendo que 448 já foram homologadas.

Essas reservas são duplamente importantes. Primeiro porque permitem a sobrevivência das comunidades indígenas, e segundo por constituírem um enorme conjunto de áreas onde a vegetação nativa e a biodiversidade do País está protegida e preservada.

As áreas mais bem preservadas no Brasil estão nessas reservas. A existência, preservação e expansão das reservas precisam ser defendidas com unhas e dentes. Caso no futuro distante elas não forem mais habitadas por populações indígenas, deveriam ser automaticamente transformadas em reservas ecológicas ou parques intocáveis.

O problema é que surgiram casos em que as áreas solicitadas pelas populações indígenas se localizam em áreas já ocupadas com cidades. Para entender o problema, veja um caso hipotético onde eu resolva recuperar meus direitos originais.

Os leitores não sabem, mas minha bisavó era tupi guarani e vivia em São Paulo. Sua filha, minha avó, vivia numa pequena casa na Alameda Campinas. Imagine que eu reúna outros tupis guaranis (eles ocupavam o Pátio do Colégio quando São Paulo foi fundada em 1554 e se estima que mais de 10 mil ainda vivem na cidade) e juntos solicitemos que uma reserva indígena seja criada na colina onde está a Avenida Paulista, e que a reserva se estenda até o Pátio do Colégio e o rio Pinheiros.

Imagine ainda que nossa alegação seja de que pretendemos retomar nosso modo de vida no território que era ocupado por nossos ancestrais. Conseguir um laudo de antropólogos e arqueólogos demonstrando que nossa tribo vivia na região não deve ser difícil, pois existem cerâmicas e registros históricos dessa ocupação. Nosso pleito terá de ser avaliado.

Pela lei atual, e pela interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal ao que está escrito na Constituição, o governo tem o dever de demarcar essa área como uma nova reserva indígena. Isso porque os direitos de nossa tribo vêm de antes da fundação da cidade e só vivemos espalhados no meio dessa metrópole devido aos colonizadores que tomaram nossas terras.

Como não existe uma data limite para reivindicar esse direito, ele existe até hoje e pode ser exercido em qualquer data futura. É fácil entender o motivo de esse direito causa insegurança jurídica: minha namorada, que mora aqui perto, vai ficar com medo de que minha tribo tome sua casa. Afinal, quando uma reserva é homologada, todos os habitantes anteriores devem ser realocados para fora da reserva.

É claro que o Executivo e o Judiciário vão arranjar um jeito tortuoso de não conceder uma grande parte da cidade de São Paulo para minha tribo. Entretanto, pela Constituição, o correto é que recebêssemos essa terra. Afinal, não existe dúvida que ela já era nossa antes da chegada dos portugueses. E esse direito foi reafirmado pelo STF essa semana.

Na realidade, esse tipo de conflito já existe em duas terras indígenas aqui perto da avenida Paulista, uma no pico do Jaraguá, outra na região de Interlagos. Foi um caso semelhante, em Santa Catarina, que provocou a discussão sobre o “marco temporal”.

A proposta do marco temporal coloca um limite ao que um grupo indígena pode reivindicar. Pelo projeto aprovado no Congresso essa semana, eu só posso tomar posse da Avenida Paulista e adjacências se conseguir demonstrar que ocupava a área na data da promulgação da Constituição (1988). Esse é o conceito do marco temporal: não adianta eu provar que minha tribo morava ali quando a cidade foi fundada, eu preciso mostrar que estava ali em 1988 ou depois. E que se saiba não existiam aldeias indígenas na Avenida Paulista em 1988.

Não há dúvida de que uma lei que defina um marco temporal para a implantação de novas reservas indígenas restringe o direito dos povos indígenas. Mas, também é claro que um marco temporal não impede que novas reservas indígenas sejam criadas para proteger as populações que habitam as florestas atualmente ou as que estavam em qualquer cidade depois de 1988, como é o caso das populações indígenas no pico do Jaraguá ou em Interlagos. E em nada afeta as reservas já demarcadas e homologadas.

É claro que é necessário decidir o que fazer com as reservas que estão no meio do processo de homologação. O principal problema da lei recém aprovada é que ela contém artigos que enfraquecem a proteção às reservas. Esses artigos precisam ser vetados.

Me parece que algum tipo de marco temporal é necessário para garantir a boa convivência entre as populações indígenas e o restante dos brasileiros. Como antes da chegada dos portugueses os povos indígenas ocupavam quase todo o Brasil, a ausência de algum tipo de limite temporal permite que, em teoria, todo o território brasileiro seja transformado em reservas indígenas. Pensando bem, do ponto de vista ambiental, talvez não seja uma ideia tão ruim. O problema é decidir onde colocar os outros 214 milhões de brasileiros.

Apesar de o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF) terem quase se pegado a tapa esta semana, todos concordam que ao chegarem aqui os portugueses se depararam com uma enorme população indígena. Nunca saberemos quantos eram ou que áreas ocupavam, mas representavam 100% da população.

Nos séculos seguintes grande parte dessa população foi exterminada. Parte foi simplesmente assassinada, parte escravizada e morta e parte dizimada pelas doenças que os europeus trouxeram. Hoje, os 1,7 milhão de indígenas remanescentes representam 0,82% da população brasileira.

Foi para reconhecer o direito dessas populações sobre a terra que ocupavam que as Constituições recentes criaram a figura das reservas indígenas. São áreas demarcadas e protegidas, em que essas populações podem preservar seu modo de vida e sua cultura. Nada mais justo frente a toda a atrocidade cometida.

A demarcação das reservas indígenas segue um processo complicado, com muitas etapas, mas fácil de entender. Ele começa quando um grupo indígena ou a Funai solicita a demarcação. Eles precisam demonstrar que indígenas habitavam a região e solicitam que a área seja transformada em reserva.

Num segundo passo, estudos feitos por arqueólogos e antropólogos precisam confirmar que existem evidências da ocupação passada ou atual da área por essas populações. Num terceiro passo é delimitado o perímetro da área necessária para que a comunidade indígena possa sobreviver e preservar sua cultura.

Indígenas acompanham sessão plenária do STF sobre o marco temporal Foto: Carlos Moura/STF

Assim, se a comunidade é caçadora ou nômade, uma área maior é reservada para sua sobrevivência. Finalmente, a reserva é demarcada e homologada pelo Presidente da República (Lula homologou oito reservas desde o início do ano). Como nossa Constituição admite que os direitos das populações indígenas precedem os direitos individuais dos que chegaram depois, qualquer propriedade privada localizada no interior de uma nova reserva é desapropriada e seus ocupantes devem ser realocados.

A criação de reservas tem ocorrido sem maiores conflitos, pois grande parte foi criada no interior da região amazônica ou em áreas de vegetação nativa. Hoje 13,8% do território nacional são terras indígenas. São 764 reservas, sendo que 448 já foram homologadas.

Essas reservas são duplamente importantes. Primeiro porque permitem a sobrevivência das comunidades indígenas, e segundo por constituírem um enorme conjunto de áreas onde a vegetação nativa e a biodiversidade do País está protegida e preservada.

As áreas mais bem preservadas no Brasil estão nessas reservas. A existência, preservação e expansão das reservas precisam ser defendidas com unhas e dentes. Caso no futuro distante elas não forem mais habitadas por populações indígenas, deveriam ser automaticamente transformadas em reservas ecológicas ou parques intocáveis.

O problema é que surgiram casos em que as áreas solicitadas pelas populações indígenas se localizam em áreas já ocupadas com cidades. Para entender o problema, veja um caso hipotético onde eu resolva recuperar meus direitos originais.

Os leitores não sabem, mas minha bisavó era tupi guarani e vivia em São Paulo. Sua filha, minha avó, vivia numa pequena casa na Alameda Campinas. Imagine que eu reúna outros tupis guaranis (eles ocupavam o Pátio do Colégio quando São Paulo foi fundada em 1554 e se estima que mais de 10 mil ainda vivem na cidade) e juntos solicitemos que uma reserva indígena seja criada na colina onde está a Avenida Paulista, e que a reserva se estenda até o Pátio do Colégio e o rio Pinheiros.

Imagine ainda que nossa alegação seja de que pretendemos retomar nosso modo de vida no território que era ocupado por nossos ancestrais. Conseguir um laudo de antropólogos e arqueólogos demonstrando que nossa tribo vivia na região não deve ser difícil, pois existem cerâmicas e registros históricos dessa ocupação. Nosso pleito terá de ser avaliado.

Pela lei atual, e pela interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal ao que está escrito na Constituição, o governo tem o dever de demarcar essa área como uma nova reserva indígena. Isso porque os direitos de nossa tribo vêm de antes da fundação da cidade e só vivemos espalhados no meio dessa metrópole devido aos colonizadores que tomaram nossas terras.

Como não existe uma data limite para reivindicar esse direito, ele existe até hoje e pode ser exercido em qualquer data futura. É fácil entender o motivo de esse direito causa insegurança jurídica: minha namorada, que mora aqui perto, vai ficar com medo de que minha tribo tome sua casa. Afinal, quando uma reserva é homologada, todos os habitantes anteriores devem ser realocados para fora da reserva.

É claro que o Executivo e o Judiciário vão arranjar um jeito tortuoso de não conceder uma grande parte da cidade de São Paulo para minha tribo. Entretanto, pela Constituição, o correto é que recebêssemos essa terra. Afinal, não existe dúvida que ela já era nossa antes da chegada dos portugueses. E esse direito foi reafirmado pelo STF essa semana.

Na realidade, esse tipo de conflito já existe em duas terras indígenas aqui perto da avenida Paulista, uma no pico do Jaraguá, outra na região de Interlagos. Foi um caso semelhante, em Santa Catarina, que provocou a discussão sobre o “marco temporal”.

A proposta do marco temporal coloca um limite ao que um grupo indígena pode reivindicar. Pelo projeto aprovado no Congresso essa semana, eu só posso tomar posse da Avenida Paulista e adjacências se conseguir demonstrar que ocupava a área na data da promulgação da Constituição (1988). Esse é o conceito do marco temporal: não adianta eu provar que minha tribo morava ali quando a cidade foi fundada, eu preciso mostrar que estava ali em 1988 ou depois. E que se saiba não existiam aldeias indígenas na Avenida Paulista em 1988.

Não há dúvida de que uma lei que defina um marco temporal para a implantação de novas reservas indígenas restringe o direito dos povos indígenas. Mas, também é claro que um marco temporal não impede que novas reservas indígenas sejam criadas para proteger as populações que habitam as florestas atualmente ou as que estavam em qualquer cidade depois de 1988, como é o caso das populações indígenas no pico do Jaraguá ou em Interlagos. E em nada afeta as reservas já demarcadas e homologadas.

É claro que é necessário decidir o que fazer com as reservas que estão no meio do processo de homologação. O principal problema da lei recém aprovada é que ela contém artigos que enfraquecem a proteção às reservas. Esses artigos precisam ser vetados.

Me parece que algum tipo de marco temporal é necessário para garantir a boa convivência entre as populações indígenas e o restante dos brasileiros. Como antes da chegada dos portugueses os povos indígenas ocupavam quase todo o Brasil, a ausência de algum tipo de limite temporal permite que, em teoria, todo o território brasileiro seja transformado em reservas indígenas. Pensando bem, do ponto de vista ambiental, talvez não seja uma ideia tão ruim. O problema é decidir onde colocar os outros 214 milhões de brasileiros.

Apesar de o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF) terem quase se pegado a tapa esta semana, todos concordam que ao chegarem aqui os portugueses se depararam com uma enorme população indígena. Nunca saberemos quantos eram ou que áreas ocupavam, mas representavam 100% da população.

Nos séculos seguintes grande parte dessa população foi exterminada. Parte foi simplesmente assassinada, parte escravizada e morta e parte dizimada pelas doenças que os europeus trouxeram. Hoje, os 1,7 milhão de indígenas remanescentes representam 0,82% da população brasileira.

Foi para reconhecer o direito dessas populações sobre a terra que ocupavam que as Constituições recentes criaram a figura das reservas indígenas. São áreas demarcadas e protegidas, em que essas populações podem preservar seu modo de vida e sua cultura. Nada mais justo frente a toda a atrocidade cometida.

A demarcação das reservas indígenas segue um processo complicado, com muitas etapas, mas fácil de entender. Ele começa quando um grupo indígena ou a Funai solicita a demarcação. Eles precisam demonstrar que indígenas habitavam a região e solicitam que a área seja transformada em reserva.

Num segundo passo, estudos feitos por arqueólogos e antropólogos precisam confirmar que existem evidências da ocupação passada ou atual da área por essas populações. Num terceiro passo é delimitado o perímetro da área necessária para que a comunidade indígena possa sobreviver e preservar sua cultura.

Indígenas acompanham sessão plenária do STF sobre o marco temporal Foto: Carlos Moura/STF

Assim, se a comunidade é caçadora ou nômade, uma área maior é reservada para sua sobrevivência. Finalmente, a reserva é demarcada e homologada pelo Presidente da República (Lula homologou oito reservas desde o início do ano). Como nossa Constituição admite que os direitos das populações indígenas precedem os direitos individuais dos que chegaram depois, qualquer propriedade privada localizada no interior de uma nova reserva é desapropriada e seus ocupantes devem ser realocados.

A criação de reservas tem ocorrido sem maiores conflitos, pois grande parte foi criada no interior da região amazônica ou em áreas de vegetação nativa. Hoje 13,8% do território nacional são terras indígenas. São 764 reservas, sendo que 448 já foram homologadas.

Essas reservas são duplamente importantes. Primeiro porque permitem a sobrevivência das comunidades indígenas, e segundo por constituírem um enorme conjunto de áreas onde a vegetação nativa e a biodiversidade do País está protegida e preservada.

As áreas mais bem preservadas no Brasil estão nessas reservas. A existência, preservação e expansão das reservas precisam ser defendidas com unhas e dentes. Caso no futuro distante elas não forem mais habitadas por populações indígenas, deveriam ser automaticamente transformadas em reservas ecológicas ou parques intocáveis.

O problema é que surgiram casos em que as áreas solicitadas pelas populações indígenas se localizam em áreas já ocupadas com cidades. Para entender o problema, veja um caso hipotético onde eu resolva recuperar meus direitos originais.

Os leitores não sabem, mas minha bisavó era tupi guarani e vivia em São Paulo. Sua filha, minha avó, vivia numa pequena casa na Alameda Campinas. Imagine que eu reúna outros tupis guaranis (eles ocupavam o Pátio do Colégio quando São Paulo foi fundada em 1554 e se estima que mais de 10 mil ainda vivem na cidade) e juntos solicitemos que uma reserva indígena seja criada na colina onde está a Avenida Paulista, e que a reserva se estenda até o Pátio do Colégio e o rio Pinheiros.

Imagine ainda que nossa alegação seja de que pretendemos retomar nosso modo de vida no território que era ocupado por nossos ancestrais. Conseguir um laudo de antropólogos e arqueólogos demonstrando que nossa tribo vivia na região não deve ser difícil, pois existem cerâmicas e registros históricos dessa ocupação. Nosso pleito terá de ser avaliado.

Pela lei atual, e pela interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal ao que está escrito na Constituição, o governo tem o dever de demarcar essa área como uma nova reserva indígena. Isso porque os direitos de nossa tribo vêm de antes da fundação da cidade e só vivemos espalhados no meio dessa metrópole devido aos colonizadores que tomaram nossas terras.

Como não existe uma data limite para reivindicar esse direito, ele existe até hoje e pode ser exercido em qualquer data futura. É fácil entender o motivo de esse direito causa insegurança jurídica: minha namorada, que mora aqui perto, vai ficar com medo de que minha tribo tome sua casa. Afinal, quando uma reserva é homologada, todos os habitantes anteriores devem ser realocados para fora da reserva.

É claro que o Executivo e o Judiciário vão arranjar um jeito tortuoso de não conceder uma grande parte da cidade de São Paulo para minha tribo. Entretanto, pela Constituição, o correto é que recebêssemos essa terra. Afinal, não existe dúvida que ela já era nossa antes da chegada dos portugueses. E esse direito foi reafirmado pelo STF essa semana.

Na realidade, esse tipo de conflito já existe em duas terras indígenas aqui perto da avenida Paulista, uma no pico do Jaraguá, outra na região de Interlagos. Foi um caso semelhante, em Santa Catarina, que provocou a discussão sobre o “marco temporal”.

A proposta do marco temporal coloca um limite ao que um grupo indígena pode reivindicar. Pelo projeto aprovado no Congresso essa semana, eu só posso tomar posse da Avenida Paulista e adjacências se conseguir demonstrar que ocupava a área na data da promulgação da Constituição (1988). Esse é o conceito do marco temporal: não adianta eu provar que minha tribo morava ali quando a cidade foi fundada, eu preciso mostrar que estava ali em 1988 ou depois. E que se saiba não existiam aldeias indígenas na Avenida Paulista em 1988.

Não há dúvida de que uma lei que defina um marco temporal para a implantação de novas reservas indígenas restringe o direito dos povos indígenas. Mas, também é claro que um marco temporal não impede que novas reservas indígenas sejam criadas para proteger as populações que habitam as florestas atualmente ou as que estavam em qualquer cidade depois de 1988, como é o caso das populações indígenas no pico do Jaraguá ou em Interlagos. E em nada afeta as reservas já demarcadas e homologadas.

É claro que é necessário decidir o que fazer com as reservas que estão no meio do processo de homologação. O principal problema da lei recém aprovada é que ela contém artigos que enfraquecem a proteção às reservas. Esses artigos precisam ser vetados.

Me parece que algum tipo de marco temporal é necessário para garantir a boa convivência entre as populações indígenas e o restante dos brasileiros. Como antes da chegada dos portugueses os povos indígenas ocupavam quase todo o Brasil, a ausência de algum tipo de limite temporal permite que, em teoria, todo o território brasileiro seja transformado em reservas indígenas. Pensando bem, do ponto de vista ambiental, talvez não seja uma ideia tão ruim. O problema é decidir onde colocar os outros 214 milhões de brasileiros.

Opinião por Fernando Reinach

Biólogo, PHD em Biologia Celular e Molecular pela Cornell University e autor de "A Chegada do Novo Coronavírus no Brasil"; "Folha de Lótus, Escorregador de Mosquito"; e "A Longa Marcha dos Grilos Canibais"

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