Opinião|No debate sobre a Lei do Aborto, o tempo da gestação importa


Direito à interrupção da gravidez deveria ser expandido para todas as mulheres, independentemente de como ocorreu a fecundação, mas fixando prazo máximo em que poderia ser praticado, o que regra atual não prevê

Por Fernando Reinach
Atualização:

O debate sobre mudanças na Lei do Aborto deixou claro quão injusta e disfuncional é a lei atual, principalmente nos casos de estupro. Muitas vezes a mulher tem de comprovar o estupro e conseguir um médico disposto a executar o procedimento.

Dada a demora no diagnóstico da gravidez (principalmente em adolescentes), a dificuldade em demonstrar o estupro e a recusa dos médicos em realizar o procedimento, a gravidez se estende até a 22ª semana, com casos reportados de 31 semanas.

Nesses casos, o aborto é arriscado, pois existe a possibilidade de a criança já ser viável fora do útero, o que explica em parte a resistência dos médicos. A lei precisa ser mudada, expandindo o direito ao aborto a todas as mulheres, independentemente de como ocorreu a fecundação, e estabelecendo uma data máxima em que ele pode ser praticado.

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A legalização do aborto é polêmica porque exige da sociedade uma decisão sobre como conciliar o direito de dois seres vivos. De um lado, o direito da mãe de controlar e decidir o que se passa em seu corpo. Do outro, o direito do embrião se tornar uma criança.

A maioria dos países onde o aborto é legalizado só permite que ele ocorra até 12 semanas, mas abrem exceções (estupro e razões médicas) que ampliam o prazo até 22 ou 24 semanas. Foto: kriangphoto31/adobe.stock

Do ponto de vista da mulher, uma gravidez indesejada não deveria nunca ser levada adiante, pois a mulher deve ter liberdade de decidir se deseja ou não ter um filho. A gestação, que dura 40 semanas contadas da última menstruação, transforma uma única célula, menor que a ponta de um alfinete, em uma criança recém-nascida.

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Se no início desse período o embrião não passa de um agrupamento de células, logo ele se desenvolve e, a partir de certo ponto, o feto ainda em formação já é capaz de sobreviver no caso de um parto prematuro. Até que momento esse processo pode ser interrompido por um aborto?

É nesse ponto que entra em jogo o direito de sobrevivência do embrião (nome dado para a criança em formação nos primeiros 3 meses) e do feto (nome usado entre os 3 meses e o parto). Do ponto de vista biológico, essa primeira célula já contém o material genético da futura criança e tem o potencial de se tornar uma criança.

Mas isso não significa que ela já seja uma criança com todos os direitos de um recém-nascido. A maioria das pessoas acredita que não existe problema ético em interromper o processo logo no início. É por isso que drogas e dispositivos ditos abortivos são geralmente aceitos e amplamente usados.

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Mas, no final do processo gestacional, é praticamente consenso que o feto presente no útero é uma criança. Por esse motivo, é inaceitável abortar um pouco antes do parto. Na verdade, a interrupção voluntária da gravidez no seu final tem sempre como objetivo salvar a vida da criança ou da mãe.

Em maternidades bem equipadas já é possível a sobrevivência rotineira de fetos que nascem após 26 semanas de gestação. Dificilmente fetos de 20 a 22 semanas sobrevivem, mas o recorde é uma criança de 20 semanas. Essa data varia de maternidade para maternidade e depende do uso de tecnologias sofisticadas.

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Portanto, ao longo da gestação, uma célula minúscula, ao se transformar em uma criança, adquire gradualmente características que justificam seu direito de sobreviver. É por isso que a maioria dos países em que o aborto é legalizado somente permite que ele ocorra até 12 semanas, mas abrem exceções (estupro e razões médicas) que ampliam o prazo até 22 ou 24 semanas.

Como pode ser visto, se no início da gravidez o direito da mulher se sobrepõe ao direito do embrião, no final da gravidez o direito do feto deve se sobrepor aos desejos da mãe.

Por esse motivo, o aborto só deveria ser permitido durante a janela temporal em que o direito da mulher de decidir sobre seu corpo é claramente preponderante sobre o direito do embrião de continuar seu desenvolvimento, mesmo nos casos em que não houve estupro.

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Para os defensores radicais da ilegalidade do aborto, o direito de sobrevivência do embrião começa no dia da fecundação independentemente da vontade da mãe. Já para defensores radicais do direito ao aborto, o direito a sobrevivência do feto só começa a existir no nascimento.

Na minha opinião, essas duas posturas são insustentáveis, pois proteger uma pequena massa de células não faz sentido ético ou biológico. Como também não faz nenhum sentido legalizar o aborto de uma criança quase totalmente formada. Nesse sentido, a lei brasileira atual, que formalmente permite o aborto de fetos oriundos de um estupro, é uma aberração, pois permite o aborto sem qualquer limite temporal.

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A questão que todas as sociedades enfrentam é onde traçar a linha que determina até quando o aborto deve ser permitido. É importante entender o embasamento científico usado para definir essas datas.

Os nove meses de uma gestação podem ser divididos em três períodos de três meses cada (em média cada mês dura 4,3 semanas). Apesar de o processo ser contínuo (nos links abaixo você pode observar o que ocorre em cada dia, semana ou mês da gestação), essa divisão foi criada pois ajuda a entender o que ocorre ao longo do tempo.

No primeiro trimestre (as primeiras 13 semanas), o óvulo fecundado começa a se dividir antes de chegar ao útero. Chegando no útero ele se fixa e a placenta, que vai alimentar o embrião, se forma e cresce. Um primórdio de cordão umbilical se forma e é por ele que o alimento vindo da mãe vai chegar ao embrião. As membranas que vão envolver o embrião se formam. Todos esses passos ocorrem em preparação para a formação do embrião. Esses tecidos, compostos por células do embrião, morrem após o parto (placenta, membrana amniótica e cordão umbilical).

No embrião propriamente dito, o número de células aumenta muito e elas já se organizam e migram para as regiões que vão dar origem aos diferentes órgãos, como o cérebro, o intestino, os olhos e o aparelho digestivo. Mas, nenhum desses órgãos já está totalmente formado e podemos dizer, de uma forma simplificada, que eles ainda não funcionam. O coração bate, mas a circulação ainda é primitiva.

No final do primeiro trimestre, as atividades preparatórias já terminaram. Todas essas estruturas têm aproximadamente 60 milímetros de diâmetro, sendo que a maior parte desse volume é ocupado pela placenta. É nesse momento que termina a fase embrionária. É até esse momento que o aborto é permitido na maioria dos países.

Parlamentares discutiram projeto de lei sobre aborto nas últimas semanas Foto: Reprodução

Nos próximos três meses, o embrião já é denominado de feto, pois toma a forma de uma criança. O período de organização do embrião já terminou e nesses três meses os órgãos assumem sua forma definitiva e começam a funcionar. Ao final desse período já se passaram 26 semanas e o feto pode sobreviver fora do útero com auxílio das tecnologias modernas.

No terceiro trimestre, da semana 26 até a 39, o que ocorre é o crescimento rápido do feto e o fim da sua maturação, em preparação para o nascimento.

Essa descrição ilustra porque um embrião de 13 semanas ainda não é uma criança formada e sequer é chamado de feto, e porque esse é o limite aproximado em que o aborto é legalizado na maioria dos países. Mostra também porque é problemático aceitar o aborto no segundo e no terceiro trimestres.

Na minha opinião e na de muitos religiosos e especialistas em ética, durante a fase embrionária o direito de decidir da mãe claramente é superior ao direito do embrião de continuar seu desenvolvimento contra a vontade da mãe. Além disso, em algum ponto no segundo trimestre podemos argumentar que a situação se inverte e temos de considerar a possibilidade de defender o direito ao desenvolvimento do feto. E, no terceiro trimestre, o direito de sobreviver do feto tem de prevalecer sobre a vontade da mãe de abortar em condições que levem à morte do feto. Interrupções no 3º trimestre só deveriam ocorrer com o objetivo de salvar o feto ou a mãe

Por todos esses motivos, minha opinião é que uma Lei do Aborto deveria permitir a todas as mulheres (não somente as estupradas) a abortarem, sem que exista qualquer tipo de questionamento sobre seus motivos, até o fim do primeiro trimestre, ou seja até as 12 semanas. Mulheres menores de idade, quer tenham sido vítimas de estupro ou não, deveriam ter o direito de abortar até as 22 semanas. Abortos após a semana 22 deveriam ser proibidos e só poderiam ser feitos em casos excepcionais.

Nesse formato, o Judiciário só seria envolvido nos casos específicos em que menores queiram abortar após a semana 22 ou que adultos desejem abortar após a semana 12. Essa proposta deixa de tratar separadamente os casos de estupro, pois o prazo estendido para menores de idade contempla grande parte desses casos.

O não envolvimento do Judiciário deve agilizar o processo no caso de estupro de menores, permitindo que o aborto ocorra mais cedo. E o mais importante: essa proposta estende o direito ao aborto a todas as mulheres, não somente a aquelas que foram estupradas.

Veja aqui o que ocorre no embrião e no feto, dia a dia, durante a gestação:

No original, em inglês:

https://embryology.med.unsw.edu.au/embryology/index.php/Timeline_human_development

Em português:

https://embryology-med-unsw-edu-au.translate.goog/index.php?title=Timeline_human_development&_x_tr_sl=auto&_x_tr_tl=pt&_x_tr_hl=en

O debate sobre mudanças na Lei do Aborto deixou claro quão injusta e disfuncional é a lei atual, principalmente nos casos de estupro. Muitas vezes a mulher tem de comprovar o estupro e conseguir um médico disposto a executar o procedimento.

Dada a demora no diagnóstico da gravidez (principalmente em adolescentes), a dificuldade em demonstrar o estupro e a recusa dos médicos em realizar o procedimento, a gravidez se estende até a 22ª semana, com casos reportados de 31 semanas.

Nesses casos, o aborto é arriscado, pois existe a possibilidade de a criança já ser viável fora do útero, o que explica em parte a resistência dos médicos. A lei precisa ser mudada, expandindo o direito ao aborto a todas as mulheres, independentemente de como ocorreu a fecundação, e estabelecendo uma data máxima em que ele pode ser praticado.

A legalização do aborto é polêmica porque exige da sociedade uma decisão sobre como conciliar o direito de dois seres vivos. De um lado, o direito da mãe de controlar e decidir o que se passa em seu corpo. Do outro, o direito do embrião se tornar uma criança.

A maioria dos países onde o aborto é legalizado só permite que ele ocorra até 12 semanas, mas abrem exceções (estupro e razões médicas) que ampliam o prazo até 22 ou 24 semanas. Foto: kriangphoto31/adobe.stock

Do ponto de vista da mulher, uma gravidez indesejada não deveria nunca ser levada adiante, pois a mulher deve ter liberdade de decidir se deseja ou não ter um filho. A gestação, que dura 40 semanas contadas da última menstruação, transforma uma única célula, menor que a ponta de um alfinete, em uma criança recém-nascida.

Se no início desse período o embrião não passa de um agrupamento de células, logo ele se desenvolve e, a partir de certo ponto, o feto ainda em formação já é capaz de sobreviver no caso de um parto prematuro. Até que momento esse processo pode ser interrompido por um aborto?

É nesse ponto que entra em jogo o direito de sobrevivência do embrião (nome dado para a criança em formação nos primeiros 3 meses) e do feto (nome usado entre os 3 meses e o parto). Do ponto de vista biológico, essa primeira célula já contém o material genético da futura criança e tem o potencial de se tornar uma criança.

Mas isso não significa que ela já seja uma criança com todos os direitos de um recém-nascido. A maioria das pessoas acredita que não existe problema ético em interromper o processo logo no início. É por isso que drogas e dispositivos ditos abortivos são geralmente aceitos e amplamente usados.

Mas, no final do processo gestacional, é praticamente consenso que o feto presente no útero é uma criança. Por esse motivo, é inaceitável abortar um pouco antes do parto. Na verdade, a interrupção voluntária da gravidez no seu final tem sempre como objetivo salvar a vida da criança ou da mãe.

Em maternidades bem equipadas já é possível a sobrevivência rotineira de fetos que nascem após 26 semanas de gestação. Dificilmente fetos de 20 a 22 semanas sobrevivem, mas o recorde é uma criança de 20 semanas. Essa data varia de maternidade para maternidade e depende do uso de tecnologias sofisticadas.

Portanto, ao longo da gestação, uma célula minúscula, ao se transformar em uma criança, adquire gradualmente características que justificam seu direito de sobreviver. É por isso que a maioria dos países em que o aborto é legalizado somente permite que ele ocorra até 12 semanas, mas abrem exceções (estupro e razões médicas) que ampliam o prazo até 22 ou 24 semanas.

Como pode ser visto, se no início da gravidez o direito da mulher se sobrepõe ao direito do embrião, no final da gravidez o direito do feto deve se sobrepor aos desejos da mãe.

Por esse motivo, o aborto só deveria ser permitido durante a janela temporal em que o direito da mulher de decidir sobre seu corpo é claramente preponderante sobre o direito do embrião de continuar seu desenvolvimento, mesmo nos casos em que não houve estupro.

Para os defensores radicais da ilegalidade do aborto, o direito de sobrevivência do embrião começa no dia da fecundação independentemente da vontade da mãe. Já para defensores radicais do direito ao aborto, o direito a sobrevivência do feto só começa a existir no nascimento.

Na minha opinião, essas duas posturas são insustentáveis, pois proteger uma pequena massa de células não faz sentido ético ou biológico. Como também não faz nenhum sentido legalizar o aborto de uma criança quase totalmente formada. Nesse sentido, a lei brasileira atual, que formalmente permite o aborto de fetos oriundos de um estupro, é uma aberração, pois permite o aborto sem qualquer limite temporal.

A questão que todas as sociedades enfrentam é onde traçar a linha que determina até quando o aborto deve ser permitido. É importante entender o embasamento científico usado para definir essas datas.

Os nove meses de uma gestação podem ser divididos em três períodos de três meses cada (em média cada mês dura 4,3 semanas). Apesar de o processo ser contínuo (nos links abaixo você pode observar o que ocorre em cada dia, semana ou mês da gestação), essa divisão foi criada pois ajuda a entender o que ocorre ao longo do tempo.

No primeiro trimestre (as primeiras 13 semanas), o óvulo fecundado começa a se dividir antes de chegar ao útero. Chegando no útero ele se fixa e a placenta, que vai alimentar o embrião, se forma e cresce. Um primórdio de cordão umbilical se forma e é por ele que o alimento vindo da mãe vai chegar ao embrião. As membranas que vão envolver o embrião se formam. Todos esses passos ocorrem em preparação para a formação do embrião. Esses tecidos, compostos por células do embrião, morrem após o parto (placenta, membrana amniótica e cordão umbilical).

No embrião propriamente dito, o número de células aumenta muito e elas já se organizam e migram para as regiões que vão dar origem aos diferentes órgãos, como o cérebro, o intestino, os olhos e o aparelho digestivo. Mas, nenhum desses órgãos já está totalmente formado e podemos dizer, de uma forma simplificada, que eles ainda não funcionam. O coração bate, mas a circulação ainda é primitiva.

No final do primeiro trimestre, as atividades preparatórias já terminaram. Todas essas estruturas têm aproximadamente 60 milímetros de diâmetro, sendo que a maior parte desse volume é ocupado pela placenta. É nesse momento que termina a fase embrionária. É até esse momento que o aborto é permitido na maioria dos países.

Parlamentares discutiram projeto de lei sobre aborto nas últimas semanas Foto: Reprodução

Nos próximos três meses, o embrião já é denominado de feto, pois toma a forma de uma criança. O período de organização do embrião já terminou e nesses três meses os órgãos assumem sua forma definitiva e começam a funcionar. Ao final desse período já se passaram 26 semanas e o feto pode sobreviver fora do útero com auxílio das tecnologias modernas.

No terceiro trimestre, da semana 26 até a 39, o que ocorre é o crescimento rápido do feto e o fim da sua maturação, em preparação para o nascimento.

Essa descrição ilustra porque um embrião de 13 semanas ainda não é uma criança formada e sequer é chamado de feto, e porque esse é o limite aproximado em que o aborto é legalizado na maioria dos países. Mostra também porque é problemático aceitar o aborto no segundo e no terceiro trimestres.

Na minha opinião e na de muitos religiosos e especialistas em ética, durante a fase embrionária o direito de decidir da mãe claramente é superior ao direito do embrião de continuar seu desenvolvimento contra a vontade da mãe. Além disso, em algum ponto no segundo trimestre podemos argumentar que a situação se inverte e temos de considerar a possibilidade de defender o direito ao desenvolvimento do feto. E, no terceiro trimestre, o direito de sobreviver do feto tem de prevalecer sobre a vontade da mãe de abortar em condições que levem à morte do feto. Interrupções no 3º trimestre só deveriam ocorrer com o objetivo de salvar o feto ou a mãe

Por todos esses motivos, minha opinião é que uma Lei do Aborto deveria permitir a todas as mulheres (não somente as estupradas) a abortarem, sem que exista qualquer tipo de questionamento sobre seus motivos, até o fim do primeiro trimestre, ou seja até as 12 semanas. Mulheres menores de idade, quer tenham sido vítimas de estupro ou não, deveriam ter o direito de abortar até as 22 semanas. Abortos após a semana 22 deveriam ser proibidos e só poderiam ser feitos em casos excepcionais.

Nesse formato, o Judiciário só seria envolvido nos casos específicos em que menores queiram abortar após a semana 22 ou que adultos desejem abortar após a semana 12. Essa proposta deixa de tratar separadamente os casos de estupro, pois o prazo estendido para menores de idade contempla grande parte desses casos.

O não envolvimento do Judiciário deve agilizar o processo no caso de estupro de menores, permitindo que o aborto ocorra mais cedo. E o mais importante: essa proposta estende o direito ao aborto a todas as mulheres, não somente a aquelas que foram estupradas.

Veja aqui o que ocorre no embrião e no feto, dia a dia, durante a gestação:

No original, em inglês:

https://embryology.med.unsw.edu.au/embryology/index.php/Timeline_human_development

Em português:

https://embryology-med-unsw-edu-au.translate.goog/index.php?title=Timeline_human_development&_x_tr_sl=auto&_x_tr_tl=pt&_x_tr_hl=en

O debate sobre mudanças na Lei do Aborto deixou claro quão injusta e disfuncional é a lei atual, principalmente nos casos de estupro. Muitas vezes a mulher tem de comprovar o estupro e conseguir um médico disposto a executar o procedimento.

Dada a demora no diagnóstico da gravidez (principalmente em adolescentes), a dificuldade em demonstrar o estupro e a recusa dos médicos em realizar o procedimento, a gravidez se estende até a 22ª semana, com casos reportados de 31 semanas.

Nesses casos, o aborto é arriscado, pois existe a possibilidade de a criança já ser viável fora do útero, o que explica em parte a resistência dos médicos. A lei precisa ser mudada, expandindo o direito ao aborto a todas as mulheres, independentemente de como ocorreu a fecundação, e estabelecendo uma data máxima em que ele pode ser praticado.

A legalização do aborto é polêmica porque exige da sociedade uma decisão sobre como conciliar o direito de dois seres vivos. De um lado, o direito da mãe de controlar e decidir o que se passa em seu corpo. Do outro, o direito do embrião se tornar uma criança.

A maioria dos países onde o aborto é legalizado só permite que ele ocorra até 12 semanas, mas abrem exceções (estupro e razões médicas) que ampliam o prazo até 22 ou 24 semanas. Foto: kriangphoto31/adobe.stock

Do ponto de vista da mulher, uma gravidez indesejada não deveria nunca ser levada adiante, pois a mulher deve ter liberdade de decidir se deseja ou não ter um filho. A gestação, que dura 40 semanas contadas da última menstruação, transforma uma única célula, menor que a ponta de um alfinete, em uma criança recém-nascida.

Se no início desse período o embrião não passa de um agrupamento de células, logo ele se desenvolve e, a partir de certo ponto, o feto ainda em formação já é capaz de sobreviver no caso de um parto prematuro. Até que momento esse processo pode ser interrompido por um aborto?

É nesse ponto que entra em jogo o direito de sobrevivência do embrião (nome dado para a criança em formação nos primeiros 3 meses) e do feto (nome usado entre os 3 meses e o parto). Do ponto de vista biológico, essa primeira célula já contém o material genético da futura criança e tem o potencial de se tornar uma criança.

Mas isso não significa que ela já seja uma criança com todos os direitos de um recém-nascido. A maioria das pessoas acredita que não existe problema ético em interromper o processo logo no início. É por isso que drogas e dispositivos ditos abortivos são geralmente aceitos e amplamente usados.

Mas, no final do processo gestacional, é praticamente consenso que o feto presente no útero é uma criança. Por esse motivo, é inaceitável abortar um pouco antes do parto. Na verdade, a interrupção voluntária da gravidez no seu final tem sempre como objetivo salvar a vida da criança ou da mãe.

Em maternidades bem equipadas já é possível a sobrevivência rotineira de fetos que nascem após 26 semanas de gestação. Dificilmente fetos de 20 a 22 semanas sobrevivem, mas o recorde é uma criança de 20 semanas. Essa data varia de maternidade para maternidade e depende do uso de tecnologias sofisticadas.

Portanto, ao longo da gestação, uma célula minúscula, ao se transformar em uma criança, adquire gradualmente características que justificam seu direito de sobreviver. É por isso que a maioria dos países em que o aborto é legalizado somente permite que ele ocorra até 12 semanas, mas abrem exceções (estupro e razões médicas) que ampliam o prazo até 22 ou 24 semanas.

Como pode ser visto, se no início da gravidez o direito da mulher se sobrepõe ao direito do embrião, no final da gravidez o direito do feto deve se sobrepor aos desejos da mãe.

Por esse motivo, o aborto só deveria ser permitido durante a janela temporal em que o direito da mulher de decidir sobre seu corpo é claramente preponderante sobre o direito do embrião de continuar seu desenvolvimento, mesmo nos casos em que não houve estupro.

Para os defensores radicais da ilegalidade do aborto, o direito de sobrevivência do embrião começa no dia da fecundação independentemente da vontade da mãe. Já para defensores radicais do direito ao aborto, o direito a sobrevivência do feto só começa a existir no nascimento.

Na minha opinião, essas duas posturas são insustentáveis, pois proteger uma pequena massa de células não faz sentido ético ou biológico. Como também não faz nenhum sentido legalizar o aborto de uma criança quase totalmente formada. Nesse sentido, a lei brasileira atual, que formalmente permite o aborto de fetos oriundos de um estupro, é uma aberração, pois permite o aborto sem qualquer limite temporal.

A questão que todas as sociedades enfrentam é onde traçar a linha que determina até quando o aborto deve ser permitido. É importante entender o embasamento científico usado para definir essas datas.

Os nove meses de uma gestação podem ser divididos em três períodos de três meses cada (em média cada mês dura 4,3 semanas). Apesar de o processo ser contínuo (nos links abaixo você pode observar o que ocorre em cada dia, semana ou mês da gestação), essa divisão foi criada pois ajuda a entender o que ocorre ao longo do tempo.

No primeiro trimestre (as primeiras 13 semanas), o óvulo fecundado começa a se dividir antes de chegar ao útero. Chegando no útero ele se fixa e a placenta, que vai alimentar o embrião, se forma e cresce. Um primórdio de cordão umbilical se forma e é por ele que o alimento vindo da mãe vai chegar ao embrião. As membranas que vão envolver o embrião se formam. Todos esses passos ocorrem em preparação para a formação do embrião. Esses tecidos, compostos por células do embrião, morrem após o parto (placenta, membrana amniótica e cordão umbilical).

No embrião propriamente dito, o número de células aumenta muito e elas já se organizam e migram para as regiões que vão dar origem aos diferentes órgãos, como o cérebro, o intestino, os olhos e o aparelho digestivo. Mas, nenhum desses órgãos já está totalmente formado e podemos dizer, de uma forma simplificada, que eles ainda não funcionam. O coração bate, mas a circulação ainda é primitiva.

No final do primeiro trimestre, as atividades preparatórias já terminaram. Todas essas estruturas têm aproximadamente 60 milímetros de diâmetro, sendo que a maior parte desse volume é ocupado pela placenta. É nesse momento que termina a fase embrionária. É até esse momento que o aborto é permitido na maioria dos países.

Parlamentares discutiram projeto de lei sobre aborto nas últimas semanas Foto: Reprodução

Nos próximos três meses, o embrião já é denominado de feto, pois toma a forma de uma criança. O período de organização do embrião já terminou e nesses três meses os órgãos assumem sua forma definitiva e começam a funcionar. Ao final desse período já se passaram 26 semanas e o feto pode sobreviver fora do útero com auxílio das tecnologias modernas.

No terceiro trimestre, da semana 26 até a 39, o que ocorre é o crescimento rápido do feto e o fim da sua maturação, em preparação para o nascimento.

Essa descrição ilustra porque um embrião de 13 semanas ainda não é uma criança formada e sequer é chamado de feto, e porque esse é o limite aproximado em que o aborto é legalizado na maioria dos países. Mostra também porque é problemático aceitar o aborto no segundo e no terceiro trimestres.

Na minha opinião e na de muitos religiosos e especialistas em ética, durante a fase embrionária o direito de decidir da mãe claramente é superior ao direito do embrião de continuar seu desenvolvimento contra a vontade da mãe. Além disso, em algum ponto no segundo trimestre podemos argumentar que a situação se inverte e temos de considerar a possibilidade de defender o direito ao desenvolvimento do feto. E, no terceiro trimestre, o direito de sobreviver do feto tem de prevalecer sobre a vontade da mãe de abortar em condições que levem à morte do feto. Interrupções no 3º trimestre só deveriam ocorrer com o objetivo de salvar o feto ou a mãe

Por todos esses motivos, minha opinião é que uma Lei do Aborto deveria permitir a todas as mulheres (não somente as estupradas) a abortarem, sem que exista qualquer tipo de questionamento sobre seus motivos, até o fim do primeiro trimestre, ou seja até as 12 semanas. Mulheres menores de idade, quer tenham sido vítimas de estupro ou não, deveriam ter o direito de abortar até as 22 semanas. Abortos após a semana 22 deveriam ser proibidos e só poderiam ser feitos em casos excepcionais.

Nesse formato, o Judiciário só seria envolvido nos casos específicos em que menores queiram abortar após a semana 22 ou que adultos desejem abortar após a semana 12. Essa proposta deixa de tratar separadamente os casos de estupro, pois o prazo estendido para menores de idade contempla grande parte desses casos.

O não envolvimento do Judiciário deve agilizar o processo no caso de estupro de menores, permitindo que o aborto ocorra mais cedo. E o mais importante: essa proposta estende o direito ao aborto a todas as mulheres, não somente a aquelas que foram estupradas.

Veja aqui o que ocorre no embrião e no feto, dia a dia, durante a gestação:

No original, em inglês:

https://embryology.med.unsw.edu.au/embryology/index.php/Timeline_human_development

Em português:

https://embryology-med-unsw-edu-au.translate.goog/index.php?title=Timeline_human_development&_x_tr_sl=auto&_x_tr_tl=pt&_x_tr_hl=en

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Opinião por Fernando Reinach

Biólogo, PHD em Biologia Celular e Molecular pela Cornell University e autor de "A Chegada do Novo Coronavírus no Brasil"; "Folha de Lótus, Escorregador de Mosquito"; e "A Longa Marcha dos Grilos Canibais"

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