A humanidade se divide em dois grupos. Um com bilhões de pessoas, que sabe que o futuro da espécie está fadado a ocorrer aqui na superfície da Terra. O outro grupo, minúsculo, acredita que nosso futuro está em outros planetas, talvez Marte, onde deveríamos estabelecer colônias. Esse segundo grupo inclui bilionários como Elon Musk, que desejam colonizar outros planetas. Para tanto estão construindo foguetes capazes de chegar lá.
Construir o foguete e pousar em Marte é factível com a tecnologia atual, basta boa engenharia e muito dinheiro. Mas será que o ser humano aguenta a viagem de meses? Se não aguentar, o plano vai por água abaixo, pois não existe no horizonte engenharia capaz de criar um ser humano adaptado à vida no foguete ou em Marte. A novidade é um estudo que demonstrou que nosso coração já começa a deteriorar com menos de um mês funcionando sem gravidade.
Desde que o primeiro astronauta orbitou a Terra, os cientistas têm estudado os efeitos da falta de gravidade sobre o corpo humano. Faz décadas que sabemos que o sistema circulatório sofre na ausência de gravidade, o que foi demonstrado monitorando os astronautas durante a estadia na estação espacial e após sua volta à Terra. O problema é que não é possível estudar diretamente, no coração dos astronautas, o que ocorre na ausência de gravidade, pois fazer biópsias do coração não é seguro nem eticamente aceitável.
Para esse estudo foram construídos mini corações humanos capazes de viver fora do corpo. São feitos de tecido cardíaco vivo, ligados a dois pontos de fixação dentro de um aparelho que tem um reservatório de alimentos.
Como o tecido muscular cardíaco está ligado a sensores presentes nos pontos de fixação, a frequência e a força de cada batimento cardíaco pode ser medida e enviada a monitores do tipo que vemos do lado de pacientes nos hospitais. Tudo em tempo real. O resultado é uma caixa lacrada contendo um mini coração vivo, alimento e equipamento de monitoramento, do tamanho de um celular.
Os cientistas enviaram para a estação espacial uma dessas caixas e mantiveram outra idêntica na Terra. A única diferença entre as duas é que uma operava na ausência de gravidade e a outra com gravidade normal. A que foi para o espaço ficou 30 dias sem gravidade e retornou à Terra. Durante esses 30 dias, o funcionamento desses dois minis corações puderam ser comparados. De volta à Terra, os músculos foram analisados com microscópios eletrônicos e o padrão de expressão dos genes foi comparado.
Essa comparação produziu os seguintes resultados. O coração que estava em órbita perdeu parte significante de sua força de contração e passou a exibir arritmias com mais frequência. Além disso, os sarcômeros (a parte do músculo responsável pela contração) se desorganizou e as mitocôndrias que produzem a energia para a contração apresentaram sinais claros de estresse.
A expressão dos genes também se alterou, com a diminuição da produção das proteínas envolvidas na contração e na produção de energia. Genes envolvidos no estresse oxidativo, falência cardíaca e inflamação foram ativados. E tudo isso começa a acontecer após alguns dias em órbita.
No conjunto, os dados demonstram um rápido envelhecimento do coração na ausência de gravidade. Isso é compatível com o que foi detectado nos astronautas que ficam em órbita.
A conclusão é que o coração humano deteriora e envelhece rapidamente na ausência de gravidade. Isso, é claro, se torna um grande risco para viagens que duram meses, como a que pretende levar seres humanos até Marte. Problemas semelhantes ocorrem nos rins dos astronautas e no sistema imune, mas ainda não foram bem estudados. Me parece que resolver esses problemas antes de enviar pessoas a Marte é um desafio mais complicado do que construir os foguetes. E pode atrasar muito, ou mesmo tornar impossível, longas viagens espaciais.
O melhor mesmo é ficarmos por aqui cuidando melhor desse planetinha adorável chamado Terra que está sendo tão maltratado pela humanidade.
Mais informações: Spaceflight-induced contractile and mitochondrial dysfunction in an automated heart-on-a-chip platform. PNAS https://doi.org/10.1073/pnas.2404644121 2024