Opinião|O erro científico que causou mortes na pandemia


Crença atrasou investimentos governamentais em vacinas e a adoção de medidas de prevenção

Por Fernando Reinach
Atualização:

No dia 19 de março de 2020, quando o Brasil tinha 621 casos de covid e somente 6 mortes, foi publicado um trabalho científico que sugeria que a hydroxychloriquina combinada ao antibiótico azythromicina poderia curar a doença.

Apesar de o trabalho ter sido imediatamente criticado pela comunidade científica, muitos médicos se agarraram ao resultado preliminar e passaram a utilizar essa combinação de drogas. Meses depois, o estudo foi repetido com mais de 30.000 pacientes e foi demonstrado que essas drogas não curavam a covid.

A grande maioria da comunidade médica e científica abandonou o tratamento e tentou divulgar o erro. Mas, era tarde, políticos, como Bolsonaro e Trump, haviam comprado a ideia estimulados por médicos e cientistas incompetentes ou mal-intencionados. Nos meses seguintes, centenas de milhares de pessoas foram tratadas com essa combinação em vez dos tratamentos comprovados que já estavam aparecendo. E pior, essa crença atrasou os investimentos governamentais em vacinas e a adoção de medidas de prevenção. É difícil calcular o número de mortes relacionadas a esse erro, mas não é impossível que sejam dezenas de milhares.

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Ala de observação infantil do Hospital M'Boi Mirim, na zona sul da capital paulista, foi transformada em UTI de pacientes com covid-19 por causa da pandemia. Foto: WERTHER SANTANA/ESTADÃO - 14/05/2020

Estou voltando ao assunto pois só agora, mais de quatro anos e meio depois, a revista científica que publicou o resultado resolveu cancelar a publicação original, retirando formalmente o trabalho da literatura científica. A demora se deveu à recusa do autor principal a admitir o erro.

Uma investigação revelou que pacientes que morreram sob o tratamento foram omitidos das estatísticas. Além disso, o acordo dos pacientes para participar do teste não foi obtido. Com essas constatações, três dos autores pediram para ter seus nomes removidos da publicação. Mas, o líder do laboratório, Didier Raoult, ainda se recusava a admitir os erros. Finalmente a revista, a revelia do autor, cancelou a publicação e Didier se aposentou.

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Erros como esse ocorrem na ciência, mas raramente envolvem descobertas que têm um impacto tão imediato na sociedade, e dificilmente levam tantos anos para serem corrigidos. Agora, a comunidade científica embarcou numa busca dos motivos que levaram a adoção desses medicamentos inúteis.

E foi nesse contexto que fui reler como descrevi a novidade. Me ocorreu que talvez tivesse sido por demais otimista com a descoberta, contribuindo para reforçar e divulgar o erro. Meu artigo apareceu no mesmo dia que o trabalho foi publicado (Foi descoberto um possível tratamento? Estadão, 19/03/2020).

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Fiquei feliz. Já no título uma interrogação ao invés de uma afirmação indicava que o resultado não era definitivo. Na versão digital foi publicado o gráfico mais importante do trabalho, mas fiz diversas ressalvas.

Após afirmar que o resultado era impressionante e animador escrevi: “Antes de você ficar muito animado é preciso lembrar que esse é um estudo muito pequeno, feito com pouquíssimos pacientes, no qual as pessoas não foram colocadas de maneira aleatória nos grupos de estudo. Ou seja, ele tem que ser repetido com mais pacientes ao longo de mais tempo em mais centros, com pacientes de diferentes idades e gravidade”.

E no final do artigo escrevi: “Esse resultado é quase bom demais para ser verdade, e por isso os cientistas estão ocupados repetindo os experimentos. É esperar para ver”. O que não gostei foi a chamada escolhida pelo jornal que afirmava que “a ciência já começou a entregar resultados”, algo que não escrevi.

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O que me impressiona é como grande parte das pessoas, desesperadas com a chegada da pandemia, se agarrou nas pequenas esperanças. Muitos amigos correram para comparar essas drogas e estocar em casa. Outros acreditaram que simples máscaras de pano segurariam o vírus sem qualquer evidência científica.

O desespero é uma reação normal do ser humano frente a uma ameaça desconhecida e letal. O triste foi a incapacidade da comunidade científica de separar o joio do trigo, ajudando os governos e a população a tomar medidas baseadas em evidências científicas e a abandonar tratamentos comprovadamente ineficazes ou mesmo prejudiciais. Mesmo as vacinas, que no final resolveram o problema, saíram da pandemia com sua imagem e reputação arranhadas.

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Da próxima vez precisamos fazer melhor. É inaceitável que demore quatro anos e meio para retirar definitivamente da literatura científica um trabalho com conclusões erradas.

Mais informações: A chegada do novo coronavírus no Brasil. Companhia das Letras, 2020

No dia 19 de março de 2020, quando o Brasil tinha 621 casos de covid e somente 6 mortes, foi publicado um trabalho científico que sugeria que a hydroxychloriquina combinada ao antibiótico azythromicina poderia curar a doença.

Apesar de o trabalho ter sido imediatamente criticado pela comunidade científica, muitos médicos se agarraram ao resultado preliminar e passaram a utilizar essa combinação de drogas. Meses depois, o estudo foi repetido com mais de 30.000 pacientes e foi demonstrado que essas drogas não curavam a covid.

A grande maioria da comunidade médica e científica abandonou o tratamento e tentou divulgar o erro. Mas, era tarde, políticos, como Bolsonaro e Trump, haviam comprado a ideia estimulados por médicos e cientistas incompetentes ou mal-intencionados. Nos meses seguintes, centenas de milhares de pessoas foram tratadas com essa combinação em vez dos tratamentos comprovados que já estavam aparecendo. E pior, essa crença atrasou os investimentos governamentais em vacinas e a adoção de medidas de prevenção. É difícil calcular o número de mortes relacionadas a esse erro, mas não é impossível que sejam dezenas de milhares.

Ala de observação infantil do Hospital M'Boi Mirim, na zona sul da capital paulista, foi transformada em UTI de pacientes com covid-19 por causa da pandemia. Foto: WERTHER SANTANA/ESTADÃO - 14/05/2020

Estou voltando ao assunto pois só agora, mais de quatro anos e meio depois, a revista científica que publicou o resultado resolveu cancelar a publicação original, retirando formalmente o trabalho da literatura científica. A demora se deveu à recusa do autor principal a admitir o erro.

Uma investigação revelou que pacientes que morreram sob o tratamento foram omitidos das estatísticas. Além disso, o acordo dos pacientes para participar do teste não foi obtido. Com essas constatações, três dos autores pediram para ter seus nomes removidos da publicação. Mas, o líder do laboratório, Didier Raoult, ainda se recusava a admitir os erros. Finalmente a revista, a revelia do autor, cancelou a publicação e Didier se aposentou.

Erros como esse ocorrem na ciência, mas raramente envolvem descobertas que têm um impacto tão imediato na sociedade, e dificilmente levam tantos anos para serem corrigidos. Agora, a comunidade científica embarcou numa busca dos motivos que levaram a adoção desses medicamentos inúteis.

E foi nesse contexto que fui reler como descrevi a novidade. Me ocorreu que talvez tivesse sido por demais otimista com a descoberta, contribuindo para reforçar e divulgar o erro. Meu artigo apareceu no mesmo dia que o trabalho foi publicado (Foi descoberto um possível tratamento? Estadão, 19/03/2020).

Fiquei feliz. Já no título uma interrogação ao invés de uma afirmação indicava que o resultado não era definitivo. Na versão digital foi publicado o gráfico mais importante do trabalho, mas fiz diversas ressalvas.

Após afirmar que o resultado era impressionante e animador escrevi: “Antes de você ficar muito animado é preciso lembrar que esse é um estudo muito pequeno, feito com pouquíssimos pacientes, no qual as pessoas não foram colocadas de maneira aleatória nos grupos de estudo. Ou seja, ele tem que ser repetido com mais pacientes ao longo de mais tempo em mais centros, com pacientes de diferentes idades e gravidade”.

E no final do artigo escrevi: “Esse resultado é quase bom demais para ser verdade, e por isso os cientistas estão ocupados repetindo os experimentos. É esperar para ver”. O que não gostei foi a chamada escolhida pelo jornal que afirmava que “a ciência já começou a entregar resultados”, algo que não escrevi.

O que me impressiona é como grande parte das pessoas, desesperadas com a chegada da pandemia, se agarrou nas pequenas esperanças. Muitos amigos correram para comparar essas drogas e estocar em casa. Outros acreditaram que simples máscaras de pano segurariam o vírus sem qualquer evidência científica.

O desespero é uma reação normal do ser humano frente a uma ameaça desconhecida e letal. O triste foi a incapacidade da comunidade científica de separar o joio do trigo, ajudando os governos e a população a tomar medidas baseadas em evidências científicas e a abandonar tratamentos comprovadamente ineficazes ou mesmo prejudiciais. Mesmo as vacinas, que no final resolveram o problema, saíram da pandemia com sua imagem e reputação arranhadas.

Da próxima vez precisamos fazer melhor. É inaceitável que demore quatro anos e meio para retirar definitivamente da literatura científica um trabalho com conclusões erradas.

Mais informações: A chegada do novo coronavírus no Brasil. Companhia das Letras, 2020

No dia 19 de março de 2020, quando o Brasil tinha 621 casos de covid e somente 6 mortes, foi publicado um trabalho científico que sugeria que a hydroxychloriquina combinada ao antibiótico azythromicina poderia curar a doença.

Apesar de o trabalho ter sido imediatamente criticado pela comunidade científica, muitos médicos se agarraram ao resultado preliminar e passaram a utilizar essa combinação de drogas. Meses depois, o estudo foi repetido com mais de 30.000 pacientes e foi demonstrado que essas drogas não curavam a covid.

A grande maioria da comunidade médica e científica abandonou o tratamento e tentou divulgar o erro. Mas, era tarde, políticos, como Bolsonaro e Trump, haviam comprado a ideia estimulados por médicos e cientistas incompetentes ou mal-intencionados. Nos meses seguintes, centenas de milhares de pessoas foram tratadas com essa combinação em vez dos tratamentos comprovados que já estavam aparecendo. E pior, essa crença atrasou os investimentos governamentais em vacinas e a adoção de medidas de prevenção. É difícil calcular o número de mortes relacionadas a esse erro, mas não é impossível que sejam dezenas de milhares.

Ala de observação infantil do Hospital M'Boi Mirim, na zona sul da capital paulista, foi transformada em UTI de pacientes com covid-19 por causa da pandemia. Foto: WERTHER SANTANA/ESTADÃO - 14/05/2020

Estou voltando ao assunto pois só agora, mais de quatro anos e meio depois, a revista científica que publicou o resultado resolveu cancelar a publicação original, retirando formalmente o trabalho da literatura científica. A demora se deveu à recusa do autor principal a admitir o erro.

Uma investigação revelou que pacientes que morreram sob o tratamento foram omitidos das estatísticas. Além disso, o acordo dos pacientes para participar do teste não foi obtido. Com essas constatações, três dos autores pediram para ter seus nomes removidos da publicação. Mas, o líder do laboratório, Didier Raoult, ainda se recusava a admitir os erros. Finalmente a revista, a revelia do autor, cancelou a publicação e Didier se aposentou.

Erros como esse ocorrem na ciência, mas raramente envolvem descobertas que têm um impacto tão imediato na sociedade, e dificilmente levam tantos anos para serem corrigidos. Agora, a comunidade científica embarcou numa busca dos motivos que levaram a adoção desses medicamentos inúteis.

E foi nesse contexto que fui reler como descrevi a novidade. Me ocorreu que talvez tivesse sido por demais otimista com a descoberta, contribuindo para reforçar e divulgar o erro. Meu artigo apareceu no mesmo dia que o trabalho foi publicado (Foi descoberto um possível tratamento? Estadão, 19/03/2020).

Fiquei feliz. Já no título uma interrogação ao invés de uma afirmação indicava que o resultado não era definitivo. Na versão digital foi publicado o gráfico mais importante do trabalho, mas fiz diversas ressalvas.

Após afirmar que o resultado era impressionante e animador escrevi: “Antes de você ficar muito animado é preciso lembrar que esse é um estudo muito pequeno, feito com pouquíssimos pacientes, no qual as pessoas não foram colocadas de maneira aleatória nos grupos de estudo. Ou seja, ele tem que ser repetido com mais pacientes ao longo de mais tempo em mais centros, com pacientes de diferentes idades e gravidade”.

E no final do artigo escrevi: “Esse resultado é quase bom demais para ser verdade, e por isso os cientistas estão ocupados repetindo os experimentos. É esperar para ver”. O que não gostei foi a chamada escolhida pelo jornal que afirmava que “a ciência já começou a entregar resultados”, algo que não escrevi.

O que me impressiona é como grande parte das pessoas, desesperadas com a chegada da pandemia, se agarrou nas pequenas esperanças. Muitos amigos correram para comparar essas drogas e estocar em casa. Outros acreditaram que simples máscaras de pano segurariam o vírus sem qualquer evidência científica.

O desespero é uma reação normal do ser humano frente a uma ameaça desconhecida e letal. O triste foi a incapacidade da comunidade científica de separar o joio do trigo, ajudando os governos e a população a tomar medidas baseadas em evidências científicas e a abandonar tratamentos comprovadamente ineficazes ou mesmo prejudiciais. Mesmo as vacinas, que no final resolveram o problema, saíram da pandemia com sua imagem e reputação arranhadas.

Da próxima vez precisamos fazer melhor. É inaceitável que demore quatro anos e meio para retirar definitivamente da literatura científica um trabalho com conclusões erradas.

Mais informações: A chegada do novo coronavírus no Brasil. Companhia das Letras, 2020

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Opinião por Fernando Reinach

Biólogo, PHD em Biologia Celular e Molecular pela Cornell University e autor de "A Chegada do Novo Coronavírus no Brasil"; "Folha de Lótus, Escorregador de Mosquito"; e "A Longa Marcha dos Grilos Canibais"

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