Opinião|O que faz um peixe sobreviver ao congelamento? Cientistas buscam resposta em genoma de espécie


Pesquisadores sequenciaram o genoma de um Amur sleeper, espécie cujo coração para de bater no inverno, mas que, assim que o gelo derrete, tem o metabolismo reativado

Por Fernando Reinach
Atualização:

Se um habitante do norte da China comprar um Amur sleeper congelado, precisa tomar cuidado para não levar um susto ao deixar o peixe em cima da pia. Quando ele descongelar pode sair saltando como se tivesse sido pescado naquele momento. O Perccottus glenii é o único peixe que sobrevive ao congelamento. Aliás, ele sobrevive todo ano, durante o inverno, totalmente congelado. Seu coração para de bater, ele não respira, e seu cérebro deixa de funcionar. Pelos critérios normais diríamos que ele está morto, embebido num bloco de gelo. Mas assim que o gelo derrete, seu metabolismo é ativado, ele começa a respirar, seu coração começa a bater e ele sai nadando nos rios e lagoas rasas em que vive.

A grande maioria dos peixes que vivem em rios que congelam durante o inverno sobrevive embaixo do gelo, na água que não chega a congelar. Eles evitam as partes rasas do rio que ficam totalmente congeladas. Já o Amur procura exatamente essas regiões e espera que o gelo envolva seu corpo e o congele totalmente. Dessa maneira, não precisa se alimentar durante o inverno e fica totalmente protegido dos predadores.

O Perccottus glenii, também conhecido como Amur sleeper, é o único peixe que sobrevive ao congelamento e que tem o seu metabolismo ativado novamente depois que o gelo derrete. Foto: U.S Geological Survey (USGS)/Divulgação
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Um grande número de microrganismos e células isoladas sobrevive ao congelamento. Exemplos bem conhecidos são os espermatozoides e os embriões humanos, que podem ser mantidos durante anos totalmente congelados em nitrogênio líquido. Entretanto, a grande maioria dos seres vivos morre quando congelado, e a razão principal é que os cristais de gelo que se formam no corpo acabam destruindo as estruturas celulares.

Entre os vertebrados, somente umas poucas espécies de sapos e lagartos são capazes de sobreviver ao congelamento e nenhum deles é tão grande quanto esse peixe, que pode chegar a 20 cm de comprimento e 250 g. Animais grandes como os ursos costumam entrar em hibernação durante o inverno. Nesse caso a temperatura do corpo baixa, os batimentos cardíacos diminuem, a respiração fica pouco frequente e eles passam o inverno dormindo. Esse é um fenômeno bem diferente do que ocorre com o Amur.

Quando esse peixe percebe que está sendo envolvido em gelo ele começa a produzir substâncias anticongelantes que inibem a formação de cristais de gelo. Mesmo assim os cristais se formam no interior do corpo e, à medida que as moléculas de água se acumulam nos cristais, as células vão perdendo água e encolhendo, ficando desidratadas. Em seguida a respiração e o coração param e o cérebro desliga.

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A novidade é que agora os cientistas sequenciaram o genoma desse peixe e também o genoma de um parente próximo que não sobrevive ao congelamento. Além de sequenciar o genoma, os cientistas determinaram os genes que estavam ligados ou desligados quando o peixe estava vivendo normalmente ou se preparando para ser congelado. Comparando os dois genomas foi possível entender um pouco o que ocorre durante o congelamento e o descongelamento.

O que os cientistas descobriram é que não existe um único fenômeno por trás da capacidade desse peixe de sobreviver ao congelamento. Foram identificados por volta de 380 genes que mudam sua forma de atuar quando a temperatura começa a cair e o peixe se prepara para ser congelado. Uma parte desses genes diminui sua atividade, o que leva a uma redução na quantidade das proteínas e enzimas produzidas. Esses genes são os responsáveis pela maquinaria celular que produz e consome energia. É como se o motor do peixe baixasse gradativamente de rotação.

Um outro grupo de genes aumenta sua atividade e está associado à produção de moléculas que protegem a estrutura das células retardando a formação de cristais. Também foram identificados genes que alteram a estrutura das membranas das células, do esqueleto celular, e de outras estruturas. A função exata desses genes no processo de congelamento ainda é desconhecida. Essas são análises preliminares, e provavelmente o processo que prepara o peixe para congelar e descongelar é mais complexo.

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O fato é que essa capacidade de sobreviver congelado gera uma enorme vantagem para esse peixe que, aos poucos, vem se espalhando por todo norte da Ásia e já foi detectado nos países nórdicos. Nesses países, ele é considerado uma espécie invasora.

Esperar congelado o passar do tempo também é o objetivo de muitos seres humanos. Existem empresas que congelam o corpo de pessoas logo após a morte e mantém a pessoa congelada até um tempo no futuro em que a doença que matou a pessoa possa ser curada. Que eu saiba existem dezenas de pessoas congeladas nessas empresas, mas nenhuma dessas pessoas foi descongelada para saber se ela sobrevive. O que sabemos é que até hoje não foi possível congelar e descongelar um mamífero. Mas a existência desse peixe demonstra que existem mecanismos biológicos capazes de garantir a sobrevivência (ou a ressurreição) de animais grandes congelados.

Mais informações sobre o estudo.

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Fernando Reinach é biólogo.

Se um habitante do norte da China comprar um Amur sleeper congelado, precisa tomar cuidado para não levar um susto ao deixar o peixe em cima da pia. Quando ele descongelar pode sair saltando como se tivesse sido pescado naquele momento. O Perccottus glenii é o único peixe que sobrevive ao congelamento. Aliás, ele sobrevive todo ano, durante o inverno, totalmente congelado. Seu coração para de bater, ele não respira, e seu cérebro deixa de funcionar. Pelos critérios normais diríamos que ele está morto, embebido num bloco de gelo. Mas assim que o gelo derrete, seu metabolismo é ativado, ele começa a respirar, seu coração começa a bater e ele sai nadando nos rios e lagoas rasas em que vive.

A grande maioria dos peixes que vivem em rios que congelam durante o inverno sobrevive embaixo do gelo, na água que não chega a congelar. Eles evitam as partes rasas do rio que ficam totalmente congeladas. Já o Amur procura exatamente essas regiões e espera que o gelo envolva seu corpo e o congele totalmente. Dessa maneira, não precisa se alimentar durante o inverno e fica totalmente protegido dos predadores.

O Perccottus glenii, também conhecido como Amur sleeper, é o único peixe que sobrevive ao congelamento e que tem o seu metabolismo ativado novamente depois que o gelo derrete. Foto: U.S Geological Survey (USGS)/Divulgação

Um grande número de microrganismos e células isoladas sobrevive ao congelamento. Exemplos bem conhecidos são os espermatozoides e os embriões humanos, que podem ser mantidos durante anos totalmente congelados em nitrogênio líquido. Entretanto, a grande maioria dos seres vivos morre quando congelado, e a razão principal é que os cristais de gelo que se formam no corpo acabam destruindo as estruturas celulares.

Entre os vertebrados, somente umas poucas espécies de sapos e lagartos são capazes de sobreviver ao congelamento e nenhum deles é tão grande quanto esse peixe, que pode chegar a 20 cm de comprimento e 250 g. Animais grandes como os ursos costumam entrar em hibernação durante o inverno. Nesse caso a temperatura do corpo baixa, os batimentos cardíacos diminuem, a respiração fica pouco frequente e eles passam o inverno dormindo. Esse é um fenômeno bem diferente do que ocorre com o Amur.

Quando esse peixe percebe que está sendo envolvido em gelo ele começa a produzir substâncias anticongelantes que inibem a formação de cristais de gelo. Mesmo assim os cristais se formam no interior do corpo e, à medida que as moléculas de água se acumulam nos cristais, as células vão perdendo água e encolhendo, ficando desidratadas. Em seguida a respiração e o coração param e o cérebro desliga.

A novidade é que agora os cientistas sequenciaram o genoma desse peixe e também o genoma de um parente próximo que não sobrevive ao congelamento. Além de sequenciar o genoma, os cientistas determinaram os genes que estavam ligados ou desligados quando o peixe estava vivendo normalmente ou se preparando para ser congelado. Comparando os dois genomas foi possível entender um pouco o que ocorre durante o congelamento e o descongelamento.

O que os cientistas descobriram é que não existe um único fenômeno por trás da capacidade desse peixe de sobreviver ao congelamento. Foram identificados por volta de 380 genes que mudam sua forma de atuar quando a temperatura começa a cair e o peixe se prepara para ser congelado. Uma parte desses genes diminui sua atividade, o que leva a uma redução na quantidade das proteínas e enzimas produzidas. Esses genes são os responsáveis pela maquinaria celular que produz e consome energia. É como se o motor do peixe baixasse gradativamente de rotação.

Um outro grupo de genes aumenta sua atividade e está associado à produção de moléculas que protegem a estrutura das células retardando a formação de cristais. Também foram identificados genes que alteram a estrutura das membranas das células, do esqueleto celular, e de outras estruturas. A função exata desses genes no processo de congelamento ainda é desconhecida. Essas são análises preliminares, e provavelmente o processo que prepara o peixe para congelar e descongelar é mais complexo.

O fato é que essa capacidade de sobreviver congelado gera uma enorme vantagem para esse peixe que, aos poucos, vem se espalhando por todo norte da Ásia e já foi detectado nos países nórdicos. Nesses países, ele é considerado uma espécie invasora.

Esperar congelado o passar do tempo também é o objetivo de muitos seres humanos. Existem empresas que congelam o corpo de pessoas logo após a morte e mantém a pessoa congelada até um tempo no futuro em que a doença que matou a pessoa possa ser curada. Que eu saiba existem dezenas de pessoas congeladas nessas empresas, mas nenhuma dessas pessoas foi descongelada para saber se ela sobrevive. O que sabemos é que até hoje não foi possível congelar e descongelar um mamífero. Mas a existência desse peixe demonstra que existem mecanismos biológicos capazes de garantir a sobrevivência (ou a ressurreição) de animais grandes congelados.

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Fernando Reinach é biólogo.

Se um habitante do norte da China comprar um Amur sleeper congelado, precisa tomar cuidado para não levar um susto ao deixar o peixe em cima da pia. Quando ele descongelar pode sair saltando como se tivesse sido pescado naquele momento. O Perccottus glenii é o único peixe que sobrevive ao congelamento. Aliás, ele sobrevive todo ano, durante o inverno, totalmente congelado. Seu coração para de bater, ele não respira, e seu cérebro deixa de funcionar. Pelos critérios normais diríamos que ele está morto, embebido num bloco de gelo. Mas assim que o gelo derrete, seu metabolismo é ativado, ele começa a respirar, seu coração começa a bater e ele sai nadando nos rios e lagoas rasas em que vive.

A grande maioria dos peixes que vivem em rios que congelam durante o inverno sobrevive embaixo do gelo, na água que não chega a congelar. Eles evitam as partes rasas do rio que ficam totalmente congeladas. Já o Amur procura exatamente essas regiões e espera que o gelo envolva seu corpo e o congele totalmente. Dessa maneira, não precisa se alimentar durante o inverno e fica totalmente protegido dos predadores.

O Perccottus glenii, também conhecido como Amur sleeper, é o único peixe que sobrevive ao congelamento e que tem o seu metabolismo ativado novamente depois que o gelo derrete. Foto: U.S Geological Survey (USGS)/Divulgação

Um grande número de microrganismos e células isoladas sobrevive ao congelamento. Exemplos bem conhecidos são os espermatozoides e os embriões humanos, que podem ser mantidos durante anos totalmente congelados em nitrogênio líquido. Entretanto, a grande maioria dos seres vivos morre quando congelado, e a razão principal é que os cristais de gelo que se formam no corpo acabam destruindo as estruturas celulares.

Entre os vertebrados, somente umas poucas espécies de sapos e lagartos são capazes de sobreviver ao congelamento e nenhum deles é tão grande quanto esse peixe, que pode chegar a 20 cm de comprimento e 250 g. Animais grandes como os ursos costumam entrar em hibernação durante o inverno. Nesse caso a temperatura do corpo baixa, os batimentos cardíacos diminuem, a respiração fica pouco frequente e eles passam o inverno dormindo. Esse é um fenômeno bem diferente do que ocorre com o Amur.

Quando esse peixe percebe que está sendo envolvido em gelo ele começa a produzir substâncias anticongelantes que inibem a formação de cristais de gelo. Mesmo assim os cristais se formam no interior do corpo e, à medida que as moléculas de água se acumulam nos cristais, as células vão perdendo água e encolhendo, ficando desidratadas. Em seguida a respiração e o coração param e o cérebro desliga.

A novidade é que agora os cientistas sequenciaram o genoma desse peixe e também o genoma de um parente próximo que não sobrevive ao congelamento. Além de sequenciar o genoma, os cientistas determinaram os genes que estavam ligados ou desligados quando o peixe estava vivendo normalmente ou se preparando para ser congelado. Comparando os dois genomas foi possível entender um pouco o que ocorre durante o congelamento e o descongelamento.

O que os cientistas descobriram é que não existe um único fenômeno por trás da capacidade desse peixe de sobreviver ao congelamento. Foram identificados por volta de 380 genes que mudam sua forma de atuar quando a temperatura começa a cair e o peixe se prepara para ser congelado. Uma parte desses genes diminui sua atividade, o que leva a uma redução na quantidade das proteínas e enzimas produzidas. Esses genes são os responsáveis pela maquinaria celular que produz e consome energia. É como se o motor do peixe baixasse gradativamente de rotação.

Um outro grupo de genes aumenta sua atividade e está associado à produção de moléculas que protegem a estrutura das células retardando a formação de cristais. Também foram identificados genes que alteram a estrutura das membranas das células, do esqueleto celular, e de outras estruturas. A função exata desses genes no processo de congelamento ainda é desconhecida. Essas são análises preliminares, e provavelmente o processo que prepara o peixe para congelar e descongelar é mais complexo.

O fato é que essa capacidade de sobreviver congelado gera uma enorme vantagem para esse peixe que, aos poucos, vem se espalhando por todo norte da Ásia e já foi detectado nos países nórdicos. Nesses países, ele é considerado uma espécie invasora.

Esperar congelado o passar do tempo também é o objetivo de muitos seres humanos. Existem empresas que congelam o corpo de pessoas logo após a morte e mantém a pessoa congelada até um tempo no futuro em que a doença que matou a pessoa possa ser curada. Que eu saiba existem dezenas de pessoas congeladas nessas empresas, mas nenhuma dessas pessoas foi descongelada para saber se ela sobrevive. O que sabemos é que até hoje não foi possível congelar e descongelar um mamífero. Mas a existência desse peixe demonstra que existem mecanismos biológicos capazes de garantir a sobrevivência (ou a ressurreição) de animais grandes congelados.

Mais informações sobre o estudo.

Fernando Reinach é biólogo.

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Opinião por Fernando Reinach

Biólogo, PHD em Biologia Celular e Molecular pela Cornell University e autor de "A Chegada do Novo Coronavírus no Brasil"; "Folha de Lótus, Escorregador de Mosquito"; e "A Longa Marcha dos Grilos Canibais"

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