A grande novidade da semana foi a publicação do primeiro circuito neuronal completo do cérebro de um animal (conectoma). Em importância, equivale à publicação dos primeiros genomas há mais de 25 anos.
Imagine que em alguma parte de seu corpo uma célula nervosa sinaliza que você está desidratado. A informação chega ao cérebro. Logo você se lembra da água fresca que bebeu em um riacho anos atrás. Mas o devaneio é interrompido quando seu córtex visual recebe da retina imagens de um copo d’água. Imagina o líquido na garganta e sente prazer antecipado. Estende a mão, leva o copo à boca e percebe que a água tem gosto de cloro.
Faz décadas que sabemos que tudo o que descrevi acima ocorre e é controlado no nosso sistema nervoso. E mais, sabemos que a base morfológica e funcional do sistema nervoso são os neurônios. Eles estão interligados e transmitem pulsos de eletricidade, a unidade de informação que circula pelo cérebro.
Os neurônios são células que possuem duas partes. E seu funcionamento é relativamente simples. Uma parte do neurônio, os dendritos, recebe impulsos de outros neurônios. Esses impulsos podem excitar ou inibir o neurônio que os recebe. Com base na soma desses sinais, inibitórios ou excitatórios, o neurônio transmite ou não um novo impulso para outros neurônios através de sua segunda parte, o axônio. Como os dendritos podem estar ligados a centenas de outros neurônios e os axônios também, um neurônio assume o formato de uma árvore.
Os dendritos seriam as raízes ramificadas, que recebem os impulsos de muitos outros neurônios. Os axônios, a galhada, que manda adiante o sinal para dezenas de outros neurônios. Entre um e outro, o tronco, que equivale ao corpo do neurônio. Cada uma dessas ligações, em que dois neurônios quase se tocam, é uma sinapse. Lembre-se deste número: o cérebro humano possui quase 100 bilhões de neurônios interconectados por aproximadamente 100 trilhões de sinapses. É nessa rede de neurônios interligados por sinapses que reside nossas memórias, onde se forma nossa consciência e nossos sentimentos. Essa rede gera as imagens que vemos e coordena nossos movimentos.
Como essa enorme rede é composta de elementos muito simples (os neurônios e as sinapses), o segredo do funcionamento do cérebro está na forma como esses neurônios estão organizados no espaço e interligados por sinapses. Imagine três neurônios. Eles podem formar uma fileira ou um triângulo. Agora imagine cinco, você já vai precisar de um pedaço de papel para desenhar as possibilidades. Agora imagine 100 bilhões de neurônios interligados por 100 trilhões de sinapses.
Tem uma analogia que eu gosto: todos os seres vivos são compostos por aproximadamente uma dúzia de átomos. O nosso funcionamento e a biodiversidade residem em como esses 12 tipos de átomos estão organizados em moléculas, células e órgãos em cada ser vivo. O segredo está escondido na estrutura tridimensional de um número enorme de poucos elementos simples.
O mapa tridimensional que descreve como todos os neurônios estão interligados em um cérebro é o que chamamos de conectoma. O conectoma de cada indivíduo é um pouco diferente do de outro indivíduo, mas sabemos que a organização geral é muito conservada e que diferentes áreas do cérebro têm conectomas dedicados a certas funções, como tato, emoções ou visão.
O conectoma que foi mapeado agora é o de uma Drosófila, cujo cérebro mede alguns milímetros. Ele é muito menor que o de um ser humano, mas capaz de muitas funcionalidades semelhantes às nossas. Essa mosquinha enxerga, ouve, anda, voa, procura comida e parceiros sexuais, se orienta no espaço e evita todo tipo de perigo. Guarda memórias de longo prazo e tem uma vida social.
Não dá para explicar aqui como o conectoma completo desse cérebro foi destrinchado. Mas vamos aos resultados.
O conectoma é um mapa 3D dos 139.255 neurônios presentes no cérebro da mosca. Eles estão conectados por aproximadamente 50 milhões de sinapses. Esses 139.255 neurônios foram classificados em 8.453 tipos distintos, sendo que 4.581 desses tipos eram desconhecidos.
As formas desses neurônios variam muito. Uns estão conectados somente localmente, outros conectam uma ponta do cérebro à outra. Uns têm poucos dendritos, outros têm muitos. E assim por diante.
O conectoma descreve quais neurônios estão ligados a quais outros neurônios, por quantas sinapses, em que local do cérebro. Nesse conectoma cada neurônio está ligado a outros neurônios através de 360 sinapses em média. O comprimento total de todos os dendritos e axônios chega a 150 metros. Tudo isso empacotado em um cérebro de alguns milímetros cúbicos.
Apesar de impressionante, esse mapa não explica como o cérebro funciona, mas é a base necessária para elucidar esse mistério.
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Não cabe aqui explicar os detalhes, mas, em um dos trabalhos, os cientistas usaram todos os dados do conectoma obtidos experimentalmente e montaram um modelo matemático do cérebro da mosca num computador. Nesse modelo, quando os cientistas ativaram um neurônio que sabidamente responde ao cheiro de banana em uma mosca viva, os neurônios que controlam o ato de colocar a língua para fora foram ativados em outro local do conectoma modelado no computador. Esse resultado já mostra o que vai ser possível fazer com modelos computacionais de um conectoma.
Essa vai ser a verdadeira inteligência artificial: mimetizar num computador a atividade de um cérebro de mosca. E, no futuro, o funcionamento de um cérebro humano, pois agora sabemos como decifrar um conectoma. Mas isso vai depender de decifrarmos o conectoma do cérebro humano.
Pergunto: esse conectoma que mimetiza um cérebro humano no computador, em todos os detalhes, terá sentimentos, memórias e consciência? Quão melhor ele vai ser que os atuais modelos de inteligência artificial que são baseados somente no que nossos cérebros escreveram no passado?
Mais informações: Neuronal wiring diagram of an adult brain. Nature https://doi.org/10.1038/s41586-024-07558-y 2024
A Drosophila computational brain model reveals sensorimotor processing. https://doi.org/10.1038/s41586-024-07763-9 2024