Veja um bom exemplo do que é possível descobrir usando informações coletadas por nossos telefones. Nossos celulares registram continuamente sua localização usando um GPS. Esses dados fornecem nossa localização a cada instante e são transmitidos continuamente às companhias de telecomunicação.
Nos Estados Unidos esses dados foram coletados e usados para construir um banco de informações que contém todos os deslocamentos de 10% de todos os telefones celulares existentes no país. Isso para cada dia do ano, para todos os dias dos anos de 2018 e 2019.
Imagine que você more em algum lugar dos EUA e esteja entre os 10% cujos dados foram coletados. No banco de dados não consta seu nome ou endereço, mas consta cada deslocamento que você fez com o telefone. Se você for comprar pão de manhã vai aparecer que o seu celular foi do ponto A (sua casa) ao ponto B (a padaria). Vai registrar sua ida ao escritório, ao médico, sua visita a familiares.
O banco é anônimo e, portanto, não informa o nome ou número do celular de quem se deslocou, nem a natureza do ponto de origem ou do ponto de destino. A novidade é que um grupo de cientistas usou esse banco de dados para descobrir onde os americanos compram sua comida e como isso influencia a incidência de doenças cardiovasculares.
O primeiro passo foi identificar onde cada celular (ou seu dono) mora. Para isso descobriram onde o celular passou a maior parte das noites ao longo de seis meses. É a casa da pessoa. Em seguida descobriram onde aquele celular compra comida. Isso foi possível pois existe um banco de dados com a geolocalização de todos os estabelecimentos comerciais nos EUA e, entre eles, todos os que vendem comida. Cruzando os dois bancos de dados foi possível identificar os deslocamentos desses celulares de sua residência aos estabelecimentos que vendem comida.
Como esses estabelecimentos estão classificados por tipo de atividade, é possível saber se o celular foi num estabelecimento de fast food, num supermercado grande, numa feira, ou num restaurante. Esse cruzamento de dados permitiu identificar os 94 milhões de visitas individuais feitas por 10% dos usuários de celulares aos 359.000 estabelecimentos que vendem comida nos EUA. Espantoso.
A primeira descoberta que foi feita analisando essas viagens na busca de comida é que as pessoas se locomovem muito mais que o que se acreditava para obter sua comida. Até agora se acreditava que as pessoas se alimentavam comprando o que estava disponível perto de casa. Os cientistas acreditavam que pessoas que moram longe de restaurantes de fast food, comeriam menos fast food, e pessoas com acesso próximo a comidas saudáveis, comeriam mais comida saudável.
Isso claramente não é verdade, as pessoas se deslocam muito para obter o que desejam comer. Somente 20,8% dos locais visitados para comprar comida estão a menos de 800 metros da residência da pessoa. Claro que quem mora numa cidade se desloca menos que pessoas que moram no campo, mas na média a maioria das pessoas se desloca mais de um quilômetro para buscar comida.
Uma vez que os cientistas determinaram onde cada pessoa obtém seu alimento, e sabendo onde elas moram, os cientistas decidiram correlacionar os índices de obesidade, pressão alta e doenças cardiovasculares de cada distrito eleitoral nos EUA (outro banco de dados que já existe) com o tipo de alimentação consumido pelos habitantes de cada distrito. E o resultado confirmou o que os médicos já haviam descoberto estudando pacientes individuais: pessoas que comem alimentos processados, poucas verduras e frutas e muita gordura têm uma incidência maior de doenças cardiovasculares.
Essa descoberta esclarece a confusão provocada por uma série de estudos que tentavam correlacionar o tipo de estabelecimento comercial que existe em diferentes comunidades com a saúde da comunidade, sem levar em conta os longos deslocamentos descobertos agora.
Os resultados desses estudos eram contraditórios pois muitas vezes comunidades onde existe alimentação de boa qualidade apresentavam altos índices de obesidade e vice-versa. Agora que sabemos que as pessoas vão longe para buscar comida, os tipos de lojas presentes na vizinhança das residências não servem de indicação do tipo de alimento consumido.
Claro que as escolhas que as pessoas fazem depende do nível de renda e de fatores culturais, mas esse estudo mostra que o ser humano se desloca muito mais do imaginávamos para obter o alimento que deseja, ou pode, consumir. E é esse o motivo da falta de correlação entre o que está disponível na vizinhança com os índices de saúde cardiovascular de um bairro.
O interessante é que ficou relativamente barato estudar o comportamento de milhões de pessoas ao longo de muito tempo sem sequer fazer entrevistas. No passado, um estudo desse tipo seria feito visitando as casas, ou telefonando, e perguntando para as pessoas onde elas compram sua comida, quantas vezes por semana, e assim por diante.
A metodologia tradicional depende da memória das pessoas, delas contarem a verdade, e geralmente tem amostras pequenas (no máximo milhares de pessoas). Esse estudo envolveu 10% da população dos EUA, foi feito somente analisando bancos de dados, e independe da disposição das pessoas de compartilharem informações.
Esse estudo também demonstra, mais uma vez, como os governos e as empresas já são capazes de descobrir muito mais sobre nossos comportamentos do que suspeitamos ou informamos de forma voluntária. Me deixa um pouco assustado.
Mais informações: Integrating human activity into food environments can better predict cardiometabolic diseases in the United States. Nature Comm. 2023