Opinião|Que segredos o tártaro nos dentes revelou sobre Vittrup, assassinado com oito porretadas


Crânio foi encontrado em 1915 na Dinamarca e surpreendeu quando se constatou que era datado de 5 mil anos atrás. Novos estudos revelam informações inéditas das populações antigas

Por Fernando Reinach
Atualização:

O crânio do homem de Vittrup pode ser visto em um museu na Dinamarca. Os diferentes pedaços estão montados em um suporte. Ele foi encontrado 1915 em um mangue junto a um bastão de madeira. Os legistas logo descobriram como ele morreu. Foi assassinado com oito golpes na cabeça. Cada um tão forte que o crânio rachou ou afundou. E a provável arma do crime é o bastão encontrado com corpo.

O crânio era antigo, mas foi uma surpresa quando uma análise dos isótopos de carbono 14 revelou que Vittrup tinha vivido 5 mil anos atrás, aproximadamente 3 mil e duzentos anos antes do nascimento de Cristo. Vittrup, que foi encontrado na vila do mesmo nome, bem no norte da Dinamarca, se tornou um símbolo da violência humana, demonstrando que ela já existia na idade da pedra.

Faz alguns anos Vittrup participou de um estudo em que os cientistas sequenciaram o genoma de mais de 200 ossadas de pessoas da pré-história com o objetivo de entender como os diversos povos ocuparam a Europa. Entre essas ossadas estavam várias encontradas no norte da Dinamarca e muitas encontradas no sul da Suécia.

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O crânio do homem de Vittrup pode ser visto em um museu na Dinamarca. Os diferentes pedaços estão montados em um suporte. Ele foi encontrado 1915 em um mangue junto a um bastão de madeira Foto: Stephen Freiheit/PLOS One

Como você pode ver em qualquer mapa, essas duas regiões são próximas, mas separadas por um trecho de oceano com muitas ilhas. Hoje você pode ir de um país ao outro de carro pois existem pontes que atravessam o oceano. Mas 5 mil anos atrás essas duas regiões eram ocupadas por povos distintos.

Na atual Dinamarca viviam populações de agricultores vindos da Anatólia, no sul da Europa, que já plantavam e criavam animais. Do outro lado, na Suécia, viviam tribos de caçadores coletores descendentes de tribos antigas que se alimentavam de plantas coletadas, de peixes, e outros animais marinhos.

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Esse estudo mostrou que essas duas populações eram raças distintas com culturas diferentes. Mas para surpresa dos cientistas, Vittrup, encontrado na região dos agricultores, era um membro das populações da Suécia. O genoma mostrou que ele tinha olhos azuis e pele clara, em contraste com os agricultores vindos da Anatólia. Ou seja, Vittrup estava em um local distante de sua terra natal quando foi morto aos 30-40 anos com oito porretadas. O que ele estaria fazendo lá?

Entre os milhares de esqueletos dessa época, Vittrup, devido a sua história peculiar, foi escolhido para ser investigado em detalhe. E essa investigação foi publicada agora. O trabalho inclui dezenas de estudos usando os mais diferentes métodos, mas o mais interessante foram os dados obtidos investigando o tártaro acumulado nos dentes de Vittrup.

O tártaro é aquele material que se acumula na superfície lateral e entre os dentes. Os dentistas modernos insistem que ele precisa ser retirado a cada seis meses, e nós nos submetemos.

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Mas Vittrup e seus contemporâneos não frequentavam dentistas. Ele não tinha cáries, mas o tártaro é abundante. O tártaro se acumula em camadas, como se fossem sedimentos no fundo de um lago.

As camadas mais próximas do dente são mais antigas, da infância, e as mais superficiais mais recentes. É um material sólido composto pelos sais minerais presentes na saliva, misturados com restos de comida e bactérias que vivem em nossa boca.

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Os cientistas retiraram um pedaço grosso do tártaro de Vittrup e o fatiaram. Cada fatia representa uma fase de vida, de aproximadamente 10 anos. Essas fatias foram analisadas para detectar sua composição química e biológica. Esses dados permitem saber os alimentos consumidos por Vittrup ao longo de sua vida.

Os resultados indicam que na infância Vittrup sobrevivia ingerindo peixes, outros animais marinhos e vegetais. Nas fatias mais superficiais, os cientistas encontraram indícios de carne de animais domesticados e de plantas cultivadas. Esses resultados, confirmados pela composição da dentina, indicam que Vittrup nasceu na Suécia numa aldeia de pescadores, caçadores e coletores e que somente mais tarde foi para a Dinamarca e viveu entre os agricultores.

Nas camadas mais recentes de tártaro, os dois tipos de alimentação aparecem misturados. Os cientistas interpretam esses achados como evidência de que Vittrup nasceu e passou a infância na Suécia, depois foi viver com os agricultores que habitavam a Dinamarca e possivelmente viajou entre essas duas localidades ao longo da vida. E finalmente morreu com oito porretadas na Dinamarca, longe de sua terra natal.

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Essas descobertas sugerem que Vittrup fazia a ponte entre essas duas culturas, talvez atuando no comércio de pontas de flechas de pedra, uma vez que já se sabe que esse comércio existia. Talvez Vittrup fosse um dos primeiros comerciantes ou traficante de armas, vai saber. O que sabemos com certeza é que alguém na Dinamarca ficou bravo com ele e o matou.

O interessante nesse trabalho é que podemos ver como os métodos modernos de análise genômica e análise química estão conseguindo extrair muitas informações novas de ossos pré-históricos, fazendo com que a antropologia viva uma era de ouro.

Mais informações: Vittrup Man–The life-history of a genetic foreigner in Neolithic Denmark. PLoS ONE https://doi.org/10.1371/journal.pone.0297032 2024

O crânio do homem de Vittrup pode ser visto em um museu na Dinamarca. Os diferentes pedaços estão montados em um suporte. Ele foi encontrado 1915 em um mangue junto a um bastão de madeira. Os legistas logo descobriram como ele morreu. Foi assassinado com oito golpes na cabeça. Cada um tão forte que o crânio rachou ou afundou. E a provável arma do crime é o bastão encontrado com corpo.

O crânio era antigo, mas foi uma surpresa quando uma análise dos isótopos de carbono 14 revelou que Vittrup tinha vivido 5 mil anos atrás, aproximadamente 3 mil e duzentos anos antes do nascimento de Cristo. Vittrup, que foi encontrado na vila do mesmo nome, bem no norte da Dinamarca, se tornou um símbolo da violência humana, demonstrando que ela já existia na idade da pedra.

Faz alguns anos Vittrup participou de um estudo em que os cientistas sequenciaram o genoma de mais de 200 ossadas de pessoas da pré-história com o objetivo de entender como os diversos povos ocuparam a Europa. Entre essas ossadas estavam várias encontradas no norte da Dinamarca e muitas encontradas no sul da Suécia.

O crânio do homem de Vittrup pode ser visto em um museu na Dinamarca. Os diferentes pedaços estão montados em um suporte. Ele foi encontrado 1915 em um mangue junto a um bastão de madeira Foto: Stephen Freiheit/PLOS One

Como você pode ver em qualquer mapa, essas duas regiões são próximas, mas separadas por um trecho de oceano com muitas ilhas. Hoje você pode ir de um país ao outro de carro pois existem pontes que atravessam o oceano. Mas 5 mil anos atrás essas duas regiões eram ocupadas por povos distintos.

Na atual Dinamarca viviam populações de agricultores vindos da Anatólia, no sul da Europa, que já plantavam e criavam animais. Do outro lado, na Suécia, viviam tribos de caçadores coletores descendentes de tribos antigas que se alimentavam de plantas coletadas, de peixes, e outros animais marinhos.

Esse estudo mostrou que essas duas populações eram raças distintas com culturas diferentes. Mas para surpresa dos cientistas, Vittrup, encontrado na região dos agricultores, era um membro das populações da Suécia. O genoma mostrou que ele tinha olhos azuis e pele clara, em contraste com os agricultores vindos da Anatólia. Ou seja, Vittrup estava em um local distante de sua terra natal quando foi morto aos 30-40 anos com oito porretadas. O que ele estaria fazendo lá?

Entre os milhares de esqueletos dessa época, Vittrup, devido a sua história peculiar, foi escolhido para ser investigado em detalhe. E essa investigação foi publicada agora. O trabalho inclui dezenas de estudos usando os mais diferentes métodos, mas o mais interessante foram os dados obtidos investigando o tártaro acumulado nos dentes de Vittrup.

O tártaro é aquele material que se acumula na superfície lateral e entre os dentes. Os dentistas modernos insistem que ele precisa ser retirado a cada seis meses, e nós nos submetemos.

Mas Vittrup e seus contemporâneos não frequentavam dentistas. Ele não tinha cáries, mas o tártaro é abundante. O tártaro se acumula em camadas, como se fossem sedimentos no fundo de um lago.

As camadas mais próximas do dente são mais antigas, da infância, e as mais superficiais mais recentes. É um material sólido composto pelos sais minerais presentes na saliva, misturados com restos de comida e bactérias que vivem em nossa boca.

Os cientistas retiraram um pedaço grosso do tártaro de Vittrup e o fatiaram. Cada fatia representa uma fase de vida, de aproximadamente 10 anos. Essas fatias foram analisadas para detectar sua composição química e biológica. Esses dados permitem saber os alimentos consumidos por Vittrup ao longo de sua vida.

Os resultados indicam que na infância Vittrup sobrevivia ingerindo peixes, outros animais marinhos e vegetais. Nas fatias mais superficiais, os cientistas encontraram indícios de carne de animais domesticados e de plantas cultivadas. Esses resultados, confirmados pela composição da dentina, indicam que Vittrup nasceu na Suécia numa aldeia de pescadores, caçadores e coletores e que somente mais tarde foi para a Dinamarca e viveu entre os agricultores.

Nas camadas mais recentes de tártaro, os dois tipos de alimentação aparecem misturados. Os cientistas interpretam esses achados como evidência de que Vittrup nasceu e passou a infância na Suécia, depois foi viver com os agricultores que habitavam a Dinamarca e possivelmente viajou entre essas duas localidades ao longo da vida. E finalmente morreu com oito porretadas na Dinamarca, longe de sua terra natal.

Essas descobertas sugerem que Vittrup fazia a ponte entre essas duas culturas, talvez atuando no comércio de pontas de flechas de pedra, uma vez que já se sabe que esse comércio existia. Talvez Vittrup fosse um dos primeiros comerciantes ou traficante de armas, vai saber. O que sabemos com certeza é que alguém na Dinamarca ficou bravo com ele e o matou.

O interessante nesse trabalho é que podemos ver como os métodos modernos de análise genômica e análise química estão conseguindo extrair muitas informações novas de ossos pré-históricos, fazendo com que a antropologia viva uma era de ouro.

Mais informações: Vittrup Man–The life-history of a genetic foreigner in Neolithic Denmark. PLoS ONE https://doi.org/10.1371/journal.pone.0297032 2024

O crânio do homem de Vittrup pode ser visto em um museu na Dinamarca. Os diferentes pedaços estão montados em um suporte. Ele foi encontrado 1915 em um mangue junto a um bastão de madeira. Os legistas logo descobriram como ele morreu. Foi assassinado com oito golpes na cabeça. Cada um tão forte que o crânio rachou ou afundou. E a provável arma do crime é o bastão encontrado com corpo.

O crânio era antigo, mas foi uma surpresa quando uma análise dos isótopos de carbono 14 revelou que Vittrup tinha vivido 5 mil anos atrás, aproximadamente 3 mil e duzentos anos antes do nascimento de Cristo. Vittrup, que foi encontrado na vila do mesmo nome, bem no norte da Dinamarca, se tornou um símbolo da violência humana, demonstrando que ela já existia na idade da pedra.

Faz alguns anos Vittrup participou de um estudo em que os cientistas sequenciaram o genoma de mais de 200 ossadas de pessoas da pré-história com o objetivo de entender como os diversos povos ocuparam a Europa. Entre essas ossadas estavam várias encontradas no norte da Dinamarca e muitas encontradas no sul da Suécia.

O crânio do homem de Vittrup pode ser visto em um museu na Dinamarca. Os diferentes pedaços estão montados em um suporte. Ele foi encontrado 1915 em um mangue junto a um bastão de madeira Foto: Stephen Freiheit/PLOS One

Como você pode ver em qualquer mapa, essas duas regiões são próximas, mas separadas por um trecho de oceano com muitas ilhas. Hoje você pode ir de um país ao outro de carro pois existem pontes que atravessam o oceano. Mas 5 mil anos atrás essas duas regiões eram ocupadas por povos distintos.

Na atual Dinamarca viviam populações de agricultores vindos da Anatólia, no sul da Europa, que já plantavam e criavam animais. Do outro lado, na Suécia, viviam tribos de caçadores coletores descendentes de tribos antigas que se alimentavam de plantas coletadas, de peixes, e outros animais marinhos.

Esse estudo mostrou que essas duas populações eram raças distintas com culturas diferentes. Mas para surpresa dos cientistas, Vittrup, encontrado na região dos agricultores, era um membro das populações da Suécia. O genoma mostrou que ele tinha olhos azuis e pele clara, em contraste com os agricultores vindos da Anatólia. Ou seja, Vittrup estava em um local distante de sua terra natal quando foi morto aos 30-40 anos com oito porretadas. O que ele estaria fazendo lá?

Entre os milhares de esqueletos dessa época, Vittrup, devido a sua história peculiar, foi escolhido para ser investigado em detalhe. E essa investigação foi publicada agora. O trabalho inclui dezenas de estudos usando os mais diferentes métodos, mas o mais interessante foram os dados obtidos investigando o tártaro acumulado nos dentes de Vittrup.

O tártaro é aquele material que se acumula na superfície lateral e entre os dentes. Os dentistas modernos insistem que ele precisa ser retirado a cada seis meses, e nós nos submetemos.

Mas Vittrup e seus contemporâneos não frequentavam dentistas. Ele não tinha cáries, mas o tártaro é abundante. O tártaro se acumula em camadas, como se fossem sedimentos no fundo de um lago.

As camadas mais próximas do dente são mais antigas, da infância, e as mais superficiais mais recentes. É um material sólido composto pelos sais minerais presentes na saliva, misturados com restos de comida e bactérias que vivem em nossa boca.

Os cientistas retiraram um pedaço grosso do tártaro de Vittrup e o fatiaram. Cada fatia representa uma fase de vida, de aproximadamente 10 anos. Essas fatias foram analisadas para detectar sua composição química e biológica. Esses dados permitem saber os alimentos consumidos por Vittrup ao longo de sua vida.

Os resultados indicam que na infância Vittrup sobrevivia ingerindo peixes, outros animais marinhos e vegetais. Nas fatias mais superficiais, os cientistas encontraram indícios de carne de animais domesticados e de plantas cultivadas. Esses resultados, confirmados pela composição da dentina, indicam que Vittrup nasceu na Suécia numa aldeia de pescadores, caçadores e coletores e que somente mais tarde foi para a Dinamarca e viveu entre os agricultores.

Nas camadas mais recentes de tártaro, os dois tipos de alimentação aparecem misturados. Os cientistas interpretam esses achados como evidência de que Vittrup nasceu e passou a infância na Suécia, depois foi viver com os agricultores que habitavam a Dinamarca e possivelmente viajou entre essas duas localidades ao longo da vida. E finalmente morreu com oito porretadas na Dinamarca, longe de sua terra natal.

Essas descobertas sugerem que Vittrup fazia a ponte entre essas duas culturas, talvez atuando no comércio de pontas de flechas de pedra, uma vez que já se sabe que esse comércio existia. Talvez Vittrup fosse um dos primeiros comerciantes ou traficante de armas, vai saber. O que sabemos com certeza é que alguém na Dinamarca ficou bravo com ele e o matou.

O interessante nesse trabalho é que podemos ver como os métodos modernos de análise genômica e análise química estão conseguindo extrair muitas informações novas de ossos pré-históricos, fazendo com que a antropologia viva uma era de ouro.

Mais informações: Vittrup Man–The life-history of a genetic foreigner in Neolithic Denmark. PLoS ONE https://doi.org/10.1371/journal.pone.0297032 2024

Opinião por Fernando Reinach

Biólogo, PHD em Biologia Celular e Molecular pela Cornell University e autor de "A Chegada do Novo Coronavírus no Brasil"; "Folha de Lótus, Escorregador de Mosquito"; e "A Longa Marcha dos Grilos Canibais"

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