Opinião|Ressuscitando morto com caneta


Semana que vem, 9 milhões de paulistanos vão começar a beber água do volume morto do Sistema Cantareira. As bombas que vão sugar o fundo da Represa do Jaguari-Jacareí serão ligadas. O que poucos lembram é que esta é a segunda vez que vamos beber água do volume morto, a primeira foi no final de 2003, na última grande seca. Naquele verão, o nível da represa chegou a 0% e até atingiu valores negativos (-7,3%). Isso apesar de o nível da represa estar na cota 827,53 metros, seis metros acima da cota em que ela se encontra hoje (821,61 metros acima do nível do mar).

Por Fernando Reinach

 

Será que enlouqueci? Como é possível que, com mais água na represa, já em 2004 estávamos bebemos do volume morto? Se você acompanha os boletins diários da Agência Nacional de Água, vai confirmar que perdi mesmo o juízo. Lá, em um gráfico que mostra o volume útil da represa dia a dia, é fácil observar que, no auge da crise de 2004, o nível do Sistema Cantareira atingiu pouco mais de 20% do volume útil, e que somente agora, em 2014, o gráfico mostra que estamos nos aproximando do fatídico zero.

 

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Mas, se o leitor estiver disposto a ler os jornais da segunda metade de 2003, vai observar que eles se assemelham aos do início de 2014. Anunciam a queda gradativa dos níveis do Sistema Cantareira, que finalmente chega a 0%. Quando atinge o zero, o índice continua a baixar, até atingir -7,3%. Estávamos bebendo do volume morto, recebendo descontos da Sabesp e sendo punidos por desperdiçar.

 

Mas, em agosto de 2004, algo estranho acontece nas estatísticas. De repente, o índice pula de próximo a zero para 22%, como se durante uma noite a represa tivesse enchido mais de 20%. A explicação oficial veio em seguida. Com a renovação da concessão da exploração do Sistema Cantareira, com uma canetada, o limite que define o volume morto passou da cota de 829 metros para a cota de 820,80 metros. Com essa canetada, 209 bilhões de litros de água foram ressuscitados e transferidos do volume morto para o volume útil. E a cota que define o início do volume morto foi reduzida em 8 metros. Pronto, no auge da crise, sem gastar um centavo, a Sabesp passou a dispor de mais água para vender aos consumidores de São Paulo. E, com uma reserva maior, a mesma caneta que ressuscitou a água, aumentou a permissão de retirada de água do Sistema Cantareira. O Cantareira, que fornecia 33 mil litros por segundo, passou a fornecer 36 mil litros por segundo.

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A imprensa reclamou. Em resposta às críticas, o sr. Mauro Arce, então secretário de Energia, Recursos Hídricos e Saneamento do Estado de São Paulo, publicou um artigo assinado no jornal O Estado de S. Paulo, em 10 de setembro de 2004. No artigo, ele explica como o governo foi capaz de ressuscitar água. Foi desse artigo (citado abaixo) que retirei os dados descritos acima. Vale a pena ler. Na crise atual, Mauro Arce é novamente nosso secretário de Recursos Hídricos.

 

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Desde então, a série histórica dos níveis do Sistema Cantareira passou a registrar que o nível mínimo atingido em 2004 foi de 20% - e não -7,3%. A história foi reescrita.

 

O que me chamou a atenção é que, nos jornais da semana passada, surgiu a notícia de que, com o início do bombeamento, a disponibilidade de água no Sistema Cantareira vai subir de meros 9% para quase 23%. Mas talvez isso só seja oficializado quando, nos próximos meses, a famosa caneta renove novamente a concessão do Sistema Cantareira. A história se repete.

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Esses são os fatos. E também é fato que, passados somente 10 anos, nos encontramos na mesma situação de 2004, sem água, e iniciando um novo assalto ao volume morto do Cantareira. Só que, agora, o volume morto é metade do anterior.

 

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O comportamento da Agência Nacional de Água (um órgão federal) e do DAEE e da Sabesp (estaduais) é muito parecido com o de um jovem casal que decide manter uma poupança de R$ 1 mil para as emergências. Mas, quando nasce o primeiro filho, e as contas apertam, apesar do aumento das responsabilidades, decidem que já não precisam de R$ 1 mil de reserva, mas somente R$ 500. Todos sabemos que isso é um erro. Quanto maior o risco, maior deve ser a poupança.

 

Em 2004, e novamente em 2014, com o aumento no número de habitantes de São Paulo e as mudanças climáticas, o risco de desabastecimento fica maior. Mas, em vez de aumentar as reservas de água disponíveis para as 9 milhões de pessoas que só podem ser abastecidas pelo Cantareira, decidimos sacar da poupança, diminuindo a reserva estratégica do Sistema Cantareira. Não é a toa que muitos se preocupam com a capacidade de recuperação da represa. Quando um jovem casal acaba com a poupança, e entra no cheque especial, sabemos que fica difícil sair.

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Quanto à caneta que ressuscita mortos, se existisse, seu lugar deveria ser nos hospitais.

 

*Mais informações: Novo nível operacional no Sistema Cantareira. Artigo de Mauro Arce publicado em O Estado de S. Paulo, em 10/09/2004

 

Será que enlouqueci? Como é possível que, com mais água na represa, já em 2004 estávamos bebemos do volume morto? Se você acompanha os boletins diários da Agência Nacional de Água, vai confirmar que perdi mesmo o juízo. Lá, em um gráfico que mostra o volume útil da represa dia a dia, é fácil observar que, no auge da crise de 2004, o nível do Sistema Cantareira atingiu pouco mais de 20% do volume útil, e que somente agora, em 2014, o gráfico mostra que estamos nos aproximando do fatídico zero.

 

Mas, se o leitor estiver disposto a ler os jornais da segunda metade de 2003, vai observar que eles se assemelham aos do início de 2014. Anunciam a queda gradativa dos níveis do Sistema Cantareira, que finalmente chega a 0%. Quando atinge o zero, o índice continua a baixar, até atingir -7,3%. Estávamos bebendo do volume morto, recebendo descontos da Sabesp e sendo punidos por desperdiçar.

 

Mas, em agosto de 2004, algo estranho acontece nas estatísticas. De repente, o índice pula de próximo a zero para 22%, como se durante uma noite a represa tivesse enchido mais de 20%. A explicação oficial veio em seguida. Com a renovação da concessão da exploração do Sistema Cantareira, com uma canetada, o limite que define o volume morto passou da cota de 829 metros para a cota de 820,80 metros. Com essa canetada, 209 bilhões de litros de água foram ressuscitados e transferidos do volume morto para o volume útil. E a cota que define o início do volume morto foi reduzida em 8 metros. Pronto, no auge da crise, sem gastar um centavo, a Sabesp passou a dispor de mais água para vender aos consumidores de São Paulo. E, com uma reserva maior, a mesma caneta que ressuscitou a água, aumentou a permissão de retirada de água do Sistema Cantareira. O Cantareira, que fornecia 33 mil litros por segundo, passou a fornecer 36 mil litros por segundo.

 

A imprensa reclamou. Em resposta às críticas, o sr. Mauro Arce, então secretário de Energia, Recursos Hídricos e Saneamento do Estado de São Paulo, publicou um artigo assinado no jornal O Estado de S. Paulo, em 10 de setembro de 2004. No artigo, ele explica como o governo foi capaz de ressuscitar água. Foi desse artigo (citado abaixo) que retirei os dados descritos acima. Vale a pena ler. Na crise atual, Mauro Arce é novamente nosso secretário de Recursos Hídricos.

 

Desde então, a série histórica dos níveis do Sistema Cantareira passou a registrar que o nível mínimo atingido em 2004 foi de 20% - e não -7,3%. A história foi reescrita.

 

O que me chamou a atenção é que, nos jornais da semana passada, surgiu a notícia de que, com o início do bombeamento, a disponibilidade de água no Sistema Cantareira vai subir de meros 9% para quase 23%. Mas talvez isso só seja oficializado quando, nos próximos meses, a famosa caneta renove novamente a concessão do Sistema Cantareira. A história se repete.

 

Esses são os fatos. E também é fato que, passados somente 10 anos, nos encontramos na mesma situação de 2004, sem água, e iniciando um novo assalto ao volume morto do Cantareira. Só que, agora, o volume morto é metade do anterior.

 

O comportamento da Agência Nacional de Água (um órgão federal) e do DAEE e da Sabesp (estaduais) é muito parecido com o de um jovem casal que decide manter uma poupança de R$ 1 mil para as emergências. Mas, quando nasce o primeiro filho, e as contas apertam, apesar do aumento das responsabilidades, decidem que já não precisam de R$ 1 mil de reserva, mas somente R$ 500. Todos sabemos que isso é um erro. Quanto maior o risco, maior deve ser a poupança.

 

Em 2004, e novamente em 2014, com o aumento no número de habitantes de São Paulo e as mudanças climáticas, o risco de desabastecimento fica maior. Mas, em vez de aumentar as reservas de água disponíveis para as 9 milhões de pessoas que só podem ser abastecidas pelo Cantareira, decidimos sacar da poupança, diminuindo a reserva estratégica do Sistema Cantareira. Não é a toa que muitos se preocupam com a capacidade de recuperação da represa. Quando um jovem casal acaba com a poupança, e entra no cheque especial, sabemos que fica difícil sair.

 

Quanto à caneta que ressuscita mortos, se existisse, seu lugar deveria ser nos hospitais.

 

*Mais informações: Novo nível operacional no Sistema Cantareira. Artigo de Mauro Arce publicado em O Estado de S. Paulo, em 10/09/2004

 

Será que enlouqueci? Como é possível que, com mais água na represa, já em 2004 estávamos bebemos do volume morto? Se você acompanha os boletins diários da Agência Nacional de Água, vai confirmar que perdi mesmo o juízo. Lá, em um gráfico que mostra o volume útil da represa dia a dia, é fácil observar que, no auge da crise de 2004, o nível do Sistema Cantareira atingiu pouco mais de 20% do volume útil, e que somente agora, em 2014, o gráfico mostra que estamos nos aproximando do fatídico zero.

 

Mas, se o leitor estiver disposto a ler os jornais da segunda metade de 2003, vai observar que eles se assemelham aos do início de 2014. Anunciam a queda gradativa dos níveis do Sistema Cantareira, que finalmente chega a 0%. Quando atinge o zero, o índice continua a baixar, até atingir -7,3%. Estávamos bebendo do volume morto, recebendo descontos da Sabesp e sendo punidos por desperdiçar.

 

Mas, em agosto de 2004, algo estranho acontece nas estatísticas. De repente, o índice pula de próximo a zero para 22%, como se durante uma noite a represa tivesse enchido mais de 20%. A explicação oficial veio em seguida. Com a renovação da concessão da exploração do Sistema Cantareira, com uma canetada, o limite que define o volume morto passou da cota de 829 metros para a cota de 820,80 metros. Com essa canetada, 209 bilhões de litros de água foram ressuscitados e transferidos do volume morto para o volume útil. E a cota que define o início do volume morto foi reduzida em 8 metros. Pronto, no auge da crise, sem gastar um centavo, a Sabesp passou a dispor de mais água para vender aos consumidores de São Paulo. E, com uma reserva maior, a mesma caneta que ressuscitou a água, aumentou a permissão de retirada de água do Sistema Cantareira. O Cantareira, que fornecia 33 mil litros por segundo, passou a fornecer 36 mil litros por segundo.

 

A imprensa reclamou. Em resposta às críticas, o sr. Mauro Arce, então secretário de Energia, Recursos Hídricos e Saneamento do Estado de São Paulo, publicou um artigo assinado no jornal O Estado de S. Paulo, em 10 de setembro de 2004. No artigo, ele explica como o governo foi capaz de ressuscitar água. Foi desse artigo (citado abaixo) que retirei os dados descritos acima. Vale a pena ler. Na crise atual, Mauro Arce é novamente nosso secretário de Recursos Hídricos.

 

Desde então, a série histórica dos níveis do Sistema Cantareira passou a registrar que o nível mínimo atingido em 2004 foi de 20% - e não -7,3%. A história foi reescrita.

 

O que me chamou a atenção é que, nos jornais da semana passada, surgiu a notícia de que, com o início do bombeamento, a disponibilidade de água no Sistema Cantareira vai subir de meros 9% para quase 23%. Mas talvez isso só seja oficializado quando, nos próximos meses, a famosa caneta renove novamente a concessão do Sistema Cantareira. A história se repete.

 

Esses são os fatos. E também é fato que, passados somente 10 anos, nos encontramos na mesma situação de 2004, sem água, e iniciando um novo assalto ao volume morto do Cantareira. Só que, agora, o volume morto é metade do anterior.

 

O comportamento da Agência Nacional de Água (um órgão federal) e do DAEE e da Sabesp (estaduais) é muito parecido com o de um jovem casal que decide manter uma poupança de R$ 1 mil para as emergências. Mas, quando nasce o primeiro filho, e as contas apertam, apesar do aumento das responsabilidades, decidem que já não precisam de R$ 1 mil de reserva, mas somente R$ 500. Todos sabemos que isso é um erro. Quanto maior o risco, maior deve ser a poupança.

 

Em 2004, e novamente em 2014, com o aumento no número de habitantes de São Paulo e as mudanças climáticas, o risco de desabastecimento fica maior. Mas, em vez de aumentar as reservas de água disponíveis para as 9 milhões de pessoas que só podem ser abastecidas pelo Cantareira, decidimos sacar da poupança, diminuindo a reserva estratégica do Sistema Cantareira. Não é a toa que muitos se preocupam com a capacidade de recuperação da represa. Quando um jovem casal acaba com a poupança, e entra no cheque especial, sabemos que fica difícil sair.

 

Quanto à caneta que ressuscita mortos, se existisse, seu lugar deveria ser nos hospitais.

 

*Mais informações: Novo nível operacional no Sistema Cantareira. Artigo de Mauro Arce publicado em O Estado de S. Paulo, em 10/09/2004

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