Opinião|Se somos todos diferentes, como é possível mapear o genoma humano?


À medida que nosso pangenoma for crescendo, entenderemos a base genética de todas as diferenças que existem entre nós

Por Fernando Reinach

Me lembro da tarde em que descobri que “O Rato” não existe. Estava sentado nas escadarias em frente ao departamento de Zoologia da USP. Era meu primeiro semestre como aluno no curso de Ciências Biológicas e tinha saído de uma aula de sistemática animal, onde aprendíamos como os cientistas identificam e nomeiam os seres vivos. Quando um cientista encontra um animal desconhecido ele é classificado por semelhança aos outros seres vivos e recebe um nome, o nome da espécie (o nosso é Homo sapiens). O exemplar (ou um pequeno grupo de exemplares) que foi usado para dar o nome é chamado de “tipo” e guardado em um museu. Se alguém achar algo parecido pode comparar com o tipo e verificar se são da mesma espécie. Faz séculos que sabemos que existem diferenças entre os exemplares de uma mesma espécie. Mesmo assim cada espécie continua a ser representada por um único exemplar. Entre nós essas diferenças são obvias: alguns são altos e loiros outros baixos e negros, outros tem olhos puxados. É por isso que o rato ideal, ou modelo, não existe, o que existe no mundo físico é cada rato, um ligeiramente diferente do outro. “Rato” é um conceito abstrato, uma generalização, uma média de todos os animais daquela espécie.

Como o rato ideal não existe, o genoma do rato ideal tampouco existe. E se o genoma do rato ideal não existe, o genoma humano ideal também não existe. Lembro que foi um momento de revelação. Eu nunca havia me dado conta desse fato óbvio.

Mas se o genoma humano não existe, o que foi feito com os bilhões de dólares usados para “sequenciar o genoma humano”? Na verdade, o que foi sequenciado na virada do século não é o genoma humano, é o genoma de um ser humano, ou de alguns seres humanos que na época doaram seu DNA para ser sequenciado. A sequência completa que dispomos hoje é uma combinação de sequências de diversos seres humanos emendadas, a grande maioria de brancos caucasianos que trabalhavam nos laboratórios. É essa sequência padrão (que erroneamente chamamos de genoma humano) que foi determinada e tem sido usada desde então como o genoma padrão (ou o genoma tipo) de nossa espécie. É como se o esqueleto tipo de um rato tivesse sido construído com as pernas de um indivíduo, o crânio de outro e a bacia de um terceiro. Isso nunca foi um segredo, é o que foi possível fazer com a tecnologia de 25 anos atrás. Um dos genes humanos, que sequenciei na juventude, foi sequenciado a partir de meu próprio DNA, extraído de uma amostra do meu sangue.

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Cientistas acreditam que, com 350 genomas, teremos uma boa ideia da diversidade dos genomas existentes nos membros de nossa espécie Foto: TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO

Agora esse problema foi parcialmente resolvido. Um grupo de pesquisadores publicou a sequência completa do genoma de 47 indivíduos distintos. O objetivo final é sequenciar o genoma completo de 350 pessoas. Como cada ser humano possui um genoma ligeiramente diferente de todos os outros (com exceção dos gêmeos univitelinos que possuem genomas idênticos), o objetivo é obter uma primeira ideia da diversidade que existe nos genomas completos das diferentes populações que existem no planeta.

Os primeiros 47 indivíduos que tiveram seu genoma sequenciado são das seguintes populações: Africanos caribenhos de Barbados; Africanos do sudoeste dos EUA; Han do sul da China; Colombianos de Medellín; Esan da Nigéria; Gambianos da região oeste; Kinh da cidade de Ho Chi Minh no Vietnã; Maasai de Kinyawa no Quênia; Mende da Serra Leone; Peruvianos de Lima; Punjabi de Lahore no Paquistão; Porto Riquenhos de Porto Rico e Yoruba de Ibadan na Nigéria. Apesar dessas pessoas representarem boa parte da diversidade humana, a amostra ainda é pouco representativa dos 8 bilhões de pessoas que habitam a Terra. Os cientistas acreditam que com 350 genomas teremos uma boa ideia da diversidade dos genomas existentes nos membros de nossa espécie.

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Com essa amostra já é possível começar a ter uma ideia da diversidade de genomas existentes em nossa população. É claro que as diferenças entre pessoas é muito menor do que a diferença entre o genoma de um macaco e o genoma de um ser humano (lembre que um chimpanzé tem um genoma 98,8%idêntico aos de um ser humano). Mas são essas pequeníssimas diferenças que fazem que um chinês seja diferente de um caucasiano ou de um africano. Com o conjunto de genomas completos dessas 47 pessoas (os cientistas chamam esse conjunto de pangenoma) já foi possível identificar o que separa, do ponto de vista genético, pessoas de diferentes locais do planeta. São pequenas inversões na sequência, translocações de segmentos de um cromossoma para outro, deleções e alterações de bases. É importante lembrar que todos esses genomas são genomas normais de seres humanos normais e as diferenças encontradas representam a diversidade dos seres humanos.

À medida que nosso pangenoma for crescendo, até atingir os 350 indivíduos, vai ser possível entender a base genética de todas as diferenças que existem entre nós. Atualmente somos capazes de identificar diferenças em alguns poucos genes isolados que conseguimos correlacionar com algumas características morfológicas, bioquímicas, ou relacionadas a doenças.

Da mesma maneira que o rato não existe, o genoma humano também é uma abstração, o que existe no mundo real é o genoma de cada ser humano e o pangenoma da espécie humana, que representa parte de toda essa imensa e linda diversidade que observamos ao andar na rua ou viajando pelo mundo.

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Mais informações: A draft human pangenome reference. Nature

Me lembro da tarde em que descobri que “O Rato” não existe. Estava sentado nas escadarias em frente ao departamento de Zoologia da USP. Era meu primeiro semestre como aluno no curso de Ciências Biológicas e tinha saído de uma aula de sistemática animal, onde aprendíamos como os cientistas identificam e nomeiam os seres vivos. Quando um cientista encontra um animal desconhecido ele é classificado por semelhança aos outros seres vivos e recebe um nome, o nome da espécie (o nosso é Homo sapiens). O exemplar (ou um pequeno grupo de exemplares) que foi usado para dar o nome é chamado de “tipo” e guardado em um museu. Se alguém achar algo parecido pode comparar com o tipo e verificar se são da mesma espécie. Faz séculos que sabemos que existem diferenças entre os exemplares de uma mesma espécie. Mesmo assim cada espécie continua a ser representada por um único exemplar. Entre nós essas diferenças são obvias: alguns são altos e loiros outros baixos e negros, outros tem olhos puxados. É por isso que o rato ideal, ou modelo, não existe, o que existe no mundo físico é cada rato, um ligeiramente diferente do outro. “Rato” é um conceito abstrato, uma generalização, uma média de todos os animais daquela espécie.

Como o rato ideal não existe, o genoma do rato ideal tampouco existe. E se o genoma do rato ideal não existe, o genoma humano ideal também não existe. Lembro que foi um momento de revelação. Eu nunca havia me dado conta desse fato óbvio.

Mas se o genoma humano não existe, o que foi feito com os bilhões de dólares usados para “sequenciar o genoma humano”? Na verdade, o que foi sequenciado na virada do século não é o genoma humano, é o genoma de um ser humano, ou de alguns seres humanos que na época doaram seu DNA para ser sequenciado. A sequência completa que dispomos hoje é uma combinação de sequências de diversos seres humanos emendadas, a grande maioria de brancos caucasianos que trabalhavam nos laboratórios. É essa sequência padrão (que erroneamente chamamos de genoma humano) que foi determinada e tem sido usada desde então como o genoma padrão (ou o genoma tipo) de nossa espécie. É como se o esqueleto tipo de um rato tivesse sido construído com as pernas de um indivíduo, o crânio de outro e a bacia de um terceiro. Isso nunca foi um segredo, é o que foi possível fazer com a tecnologia de 25 anos atrás. Um dos genes humanos, que sequenciei na juventude, foi sequenciado a partir de meu próprio DNA, extraído de uma amostra do meu sangue.

Cientistas acreditam que, com 350 genomas, teremos uma boa ideia da diversidade dos genomas existentes nos membros de nossa espécie Foto: TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO

Agora esse problema foi parcialmente resolvido. Um grupo de pesquisadores publicou a sequência completa do genoma de 47 indivíduos distintos. O objetivo final é sequenciar o genoma completo de 350 pessoas. Como cada ser humano possui um genoma ligeiramente diferente de todos os outros (com exceção dos gêmeos univitelinos que possuem genomas idênticos), o objetivo é obter uma primeira ideia da diversidade que existe nos genomas completos das diferentes populações que existem no planeta.

Os primeiros 47 indivíduos que tiveram seu genoma sequenciado são das seguintes populações: Africanos caribenhos de Barbados; Africanos do sudoeste dos EUA; Han do sul da China; Colombianos de Medellín; Esan da Nigéria; Gambianos da região oeste; Kinh da cidade de Ho Chi Minh no Vietnã; Maasai de Kinyawa no Quênia; Mende da Serra Leone; Peruvianos de Lima; Punjabi de Lahore no Paquistão; Porto Riquenhos de Porto Rico e Yoruba de Ibadan na Nigéria. Apesar dessas pessoas representarem boa parte da diversidade humana, a amostra ainda é pouco representativa dos 8 bilhões de pessoas que habitam a Terra. Os cientistas acreditam que com 350 genomas teremos uma boa ideia da diversidade dos genomas existentes nos membros de nossa espécie.

Com essa amostra já é possível começar a ter uma ideia da diversidade de genomas existentes em nossa população. É claro que as diferenças entre pessoas é muito menor do que a diferença entre o genoma de um macaco e o genoma de um ser humano (lembre que um chimpanzé tem um genoma 98,8%idêntico aos de um ser humano). Mas são essas pequeníssimas diferenças que fazem que um chinês seja diferente de um caucasiano ou de um africano. Com o conjunto de genomas completos dessas 47 pessoas (os cientistas chamam esse conjunto de pangenoma) já foi possível identificar o que separa, do ponto de vista genético, pessoas de diferentes locais do planeta. São pequenas inversões na sequência, translocações de segmentos de um cromossoma para outro, deleções e alterações de bases. É importante lembrar que todos esses genomas são genomas normais de seres humanos normais e as diferenças encontradas representam a diversidade dos seres humanos.

À medida que nosso pangenoma for crescendo, até atingir os 350 indivíduos, vai ser possível entender a base genética de todas as diferenças que existem entre nós. Atualmente somos capazes de identificar diferenças em alguns poucos genes isolados que conseguimos correlacionar com algumas características morfológicas, bioquímicas, ou relacionadas a doenças.

Da mesma maneira que o rato não existe, o genoma humano também é uma abstração, o que existe no mundo real é o genoma de cada ser humano e o pangenoma da espécie humana, que representa parte de toda essa imensa e linda diversidade que observamos ao andar na rua ou viajando pelo mundo.

Mais informações: A draft human pangenome reference. Nature

Me lembro da tarde em que descobri que “O Rato” não existe. Estava sentado nas escadarias em frente ao departamento de Zoologia da USP. Era meu primeiro semestre como aluno no curso de Ciências Biológicas e tinha saído de uma aula de sistemática animal, onde aprendíamos como os cientistas identificam e nomeiam os seres vivos. Quando um cientista encontra um animal desconhecido ele é classificado por semelhança aos outros seres vivos e recebe um nome, o nome da espécie (o nosso é Homo sapiens). O exemplar (ou um pequeno grupo de exemplares) que foi usado para dar o nome é chamado de “tipo” e guardado em um museu. Se alguém achar algo parecido pode comparar com o tipo e verificar se são da mesma espécie. Faz séculos que sabemos que existem diferenças entre os exemplares de uma mesma espécie. Mesmo assim cada espécie continua a ser representada por um único exemplar. Entre nós essas diferenças são obvias: alguns são altos e loiros outros baixos e negros, outros tem olhos puxados. É por isso que o rato ideal, ou modelo, não existe, o que existe no mundo físico é cada rato, um ligeiramente diferente do outro. “Rato” é um conceito abstrato, uma generalização, uma média de todos os animais daquela espécie.

Como o rato ideal não existe, o genoma do rato ideal tampouco existe. E se o genoma do rato ideal não existe, o genoma humano ideal também não existe. Lembro que foi um momento de revelação. Eu nunca havia me dado conta desse fato óbvio.

Mas se o genoma humano não existe, o que foi feito com os bilhões de dólares usados para “sequenciar o genoma humano”? Na verdade, o que foi sequenciado na virada do século não é o genoma humano, é o genoma de um ser humano, ou de alguns seres humanos que na época doaram seu DNA para ser sequenciado. A sequência completa que dispomos hoje é uma combinação de sequências de diversos seres humanos emendadas, a grande maioria de brancos caucasianos que trabalhavam nos laboratórios. É essa sequência padrão (que erroneamente chamamos de genoma humano) que foi determinada e tem sido usada desde então como o genoma padrão (ou o genoma tipo) de nossa espécie. É como se o esqueleto tipo de um rato tivesse sido construído com as pernas de um indivíduo, o crânio de outro e a bacia de um terceiro. Isso nunca foi um segredo, é o que foi possível fazer com a tecnologia de 25 anos atrás. Um dos genes humanos, que sequenciei na juventude, foi sequenciado a partir de meu próprio DNA, extraído de uma amostra do meu sangue.

Cientistas acreditam que, com 350 genomas, teremos uma boa ideia da diversidade dos genomas existentes nos membros de nossa espécie Foto: TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO

Agora esse problema foi parcialmente resolvido. Um grupo de pesquisadores publicou a sequência completa do genoma de 47 indivíduos distintos. O objetivo final é sequenciar o genoma completo de 350 pessoas. Como cada ser humano possui um genoma ligeiramente diferente de todos os outros (com exceção dos gêmeos univitelinos que possuem genomas idênticos), o objetivo é obter uma primeira ideia da diversidade que existe nos genomas completos das diferentes populações que existem no planeta.

Os primeiros 47 indivíduos que tiveram seu genoma sequenciado são das seguintes populações: Africanos caribenhos de Barbados; Africanos do sudoeste dos EUA; Han do sul da China; Colombianos de Medellín; Esan da Nigéria; Gambianos da região oeste; Kinh da cidade de Ho Chi Minh no Vietnã; Maasai de Kinyawa no Quênia; Mende da Serra Leone; Peruvianos de Lima; Punjabi de Lahore no Paquistão; Porto Riquenhos de Porto Rico e Yoruba de Ibadan na Nigéria. Apesar dessas pessoas representarem boa parte da diversidade humana, a amostra ainda é pouco representativa dos 8 bilhões de pessoas que habitam a Terra. Os cientistas acreditam que com 350 genomas teremos uma boa ideia da diversidade dos genomas existentes nos membros de nossa espécie.

Com essa amostra já é possível começar a ter uma ideia da diversidade de genomas existentes em nossa população. É claro que as diferenças entre pessoas é muito menor do que a diferença entre o genoma de um macaco e o genoma de um ser humano (lembre que um chimpanzé tem um genoma 98,8%idêntico aos de um ser humano). Mas são essas pequeníssimas diferenças que fazem que um chinês seja diferente de um caucasiano ou de um africano. Com o conjunto de genomas completos dessas 47 pessoas (os cientistas chamam esse conjunto de pangenoma) já foi possível identificar o que separa, do ponto de vista genético, pessoas de diferentes locais do planeta. São pequenas inversões na sequência, translocações de segmentos de um cromossoma para outro, deleções e alterações de bases. É importante lembrar que todos esses genomas são genomas normais de seres humanos normais e as diferenças encontradas representam a diversidade dos seres humanos.

À medida que nosso pangenoma for crescendo, até atingir os 350 indivíduos, vai ser possível entender a base genética de todas as diferenças que existem entre nós. Atualmente somos capazes de identificar diferenças em alguns poucos genes isolados que conseguimos correlacionar com algumas características morfológicas, bioquímicas, ou relacionadas a doenças.

Da mesma maneira que o rato não existe, o genoma humano também é uma abstração, o que existe no mundo real é o genoma de cada ser humano e o pangenoma da espécie humana, que representa parte de toda essa imensa e linda diversidade que observamos ao andar na rua ou viajando pelo mundo.

Mais informações: A draft human pangenome reference. Nature

Me lembro da tarde em que descobri que “O Rato” não existe. Estava sentado nas escadarias em frente ao departamento de Zoologia da USP. Era meu primeiro semestre como aluno no curso de Ciências Biológicas e tinha saído de uma aula de sistemática animal, onde aprendíamos como os cientistas identificam e nomeiam os seres vivos. Quando um cientista encontra um animal desconhecido ele é classificado por semelhança aos outros seres vivos e recebe um nome, o nome da espécie (o nosso é Homo sapiens). O exemplar (ou um pequeno grupo de exemplares) que foi usado para dar o nome é chamado de “tipo” e guardado em um museu. Se alguém achar algo parecido pode comparar com o tipo e verificar se são da mesma espécie. Faz séculos que sabemos que existem diferenças entre os exemplares de uma mesma espécie. Mesmo assim cada espécie continua a ser representada por um único exemplar. Entre nós essas diferenças são obvias: alguns são altos e loiros outros baixos e negros, outros tem olhos puxados. É por isso que o rato ideal, ou modelo, não existe, o que existe no mundo físico é cada rato, um ligeiramente diferente do outro. “Rato” é um conceito abstrato, uma generalização, uma média de todos os animais daquela espécie.

Como o rato ideal não existe, o genoma do rato ideal tampouco existe. E se o genoma do rato ideal não existe, o genoma humano ideal também não existe. Lembro que foi um momento de revelação. Eu nunca havia me dado conta desse fato óbvio.

Mas se o genoma humano não existe, o que foi feito com os bilhões de dólares usados para “sequenciar o genoma humano”? Na verdade, o que foi sequenciado na virada do século não é o genoma humano, é o genoma de um ser humano, ou de alguns seres humanos que na época doaram seu DNA para ser sequenciado. A sequência completa que dispomos hoje é uma combinação de sequências de diversos seres humanos emendadas, a grande maioria de brancos caucasianos que trabalhavam nos laboratórios. É essa sequência padrão (que erroneamente chamamos de genoma humano) que foi determinada e tem sido usada desde então como o genoma padrão (ou o genoma tipo) de nossa espécie. É como se o esqueleto tipo de um rato tivesse sido construído com as pernas de um indivíduo, o crânio de outro e a bacia de um terceiro. Isso nunca foi um segredo, é o que foi possível fazer com a tecnologia de 25 anos atrás. Um dos genes humanos, que sequenciei na juventude, foi sequenciado a partir de meu próprio DNA, extraído de uma amostra do meu sangue.

Cientistas acreditam que, com 350 genomas, teremos uma boa ideia da diversidade dos genomas existentes nos membros de nossa espécie Foto: TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO

Agora esse problema foi parcialmente resolvido. Um grupo de pesquisadores publicou a sequência completa do genoma de 47 indivíduos distintos. O objetivo final é sequenciar o genoma completo de 350 pessoas. Como cada ser humano possui um genoma ligeiramente diferente de todos os outros (com exceção dos gêmeos univitelinos que possuem genomas idênticos), o objetivo é obter uma primeira ideia da diversidade que existe nos genomas completos das diferentes populações que existem no planeta.

Os primeiros 47 indivíduos que tiveram seu genoma sequenciado são das seguintes populações: Africanos caribenhos de Barbados; Africanos do sudoeste dos EUA; Han do sul da China; Colombianos de Medellín; Esan da Nigéria; Gambianos da região oeste; Kinh da cidade de Ho Chi Minh no Vietnã; Maasai de Kinyawa no Quênia; Mende da Serra Leone; Peruvianos de Lima; Punjabi de Lahore no Paquistão; Porto Riquenhos de Porto Rico e Yoruba de Ibadan na Nigéria. Apesar dessas pessoas representarem boa parte da diversidade humana, a amostra ainda é pouco representativa dos 8 bilhões de pessoas que habitam a Terra. Os cientistas acreditam que com 350 genomas teremos uma boa ideia da diversidade dos genomas existentes nos membros de nossa espécie.

Com essa amostra já é possível começar a ter uma ideia da diversidade de genomas existentes em nossa população. É claro que as diferenças entre pessoas é muito menor do que a diferença entre o genoma de um macaco e o genoma de um ser humano (lembre que um chimpanzé tem um genoma 98,8%idêntico aos de um ser humano). Mas são essas pequeníssimas diferenças que fazem que um chinês seja diferente de um caucasiano ou de um africano. Com o conjunto de genomas completos dessas 47 pessoas (os cientistas chamam esse conjunto de pangenoma) já foi possível identificar o que separa, do ponto de vista genético, pessoas de diferentes locais do planeta. São pequenas inversões na sequência, translocações de segmentos de um cromossoma para outro, deleções e alterações de bases. É importante lembrar que todos esses genomas são genomas normais de seres humanos normais e as diferenças encontradas representam a diversidade dos seres humanos.

À medida que nosso pangenoma for crescendo, até atingir os 350 indivíduos, vai ser possível entender a base genética de todas as diferenças que existem entre nós. Atualmente somos capazes de identificar diferenças em alguns poucos genes isolados que conseguimos correlacionar com algumas características morfológicas, bioquímicas, ou relacionadas a doenças.

Da mesma maneira que o rato não existe, o genoma humano também é uma abstração, o que existe no mundo real é o genoma de cada ser humano e o pangenoma da espécie humana, que representa parte de toda essa imensa e linda diversidade que observamos ao andar na rua ou viajando pelo mundo.

Mais informações: A draft human pangenome reference. Nature

Me lembro da tarde em que descobri que “O Rato” não existe. Estava sentado nas escadarias em frente ao departamento de Zoologia da USP. Era meu primeiro semestre como aluno no curso de Ciências Biológicas e tinha saído de uma aula de sistemática animal, onde aprendíamos como os cientistas identificam e nomeiam os seres vivos. Quando um cientista encontra um animal desconhecido ele é classificado por semelhança aos outros seres vivos e recebe um nome, o nome da espécie (o nosso é Homo sapiens). O exemplar (ou um pequeno grupo de exemplares) que foi usado para dar o nome é chamado de “tipo” e guardado em um museu. Se alguém achar algo parecido pode comparar com o tipo e verificar se são da mesma espécie. Faz séculos que sabemos que existem diferenças entre os exemplares de uma mesma espécie. Mesmo assim cada espécie continua a ser representada por um único exemplar. Entre nós essas diferenças são obvias: alguns são altos e loiros outros baixos e negros, outros tem olhos puxados. É por isso que o rato ideal, ou modelo, não existe, o que existe no mundo físico é cada rato, um ligeiramente diferente do outro. “Rato” é um conceito abstrato, uma generalização, uma média de todos os animais daquela espécie.

Como o rato ideal não existe, o genoma do rato ideal tampouco existe. E se o genoma do rato ideal não existe, o genoma humano ideal também não existe. Lembro que foi um momento de revelação. Eu nunca havia me dado conta desse fato óbvio.

Mas se o genoma humano não existe, o que foi feito com os bilhões de dólares usados para “sequenciar o genoma humano”? Na verdade, o que foi sequenciado na virada do século não é o genoma humano, é o genoma de um ser humano, ou de alguns seres humanos que na época doaram seu DNA para ser sequenciado. A sequência completa que dispomos hoje é uma combinação de sequências de diversos seres humanos emendadas, a grande maioria de brancos caucasianos que trabalhavam nos laboratórios. É essa sequência padrão (que erroneamente chamamos de genoma humano) que foi determinada e tem sido usada desde então como o genoma padrão (ou o genoma tipo) de nossa espécie. É como se o esqueleto tipo de um rato tivesse sido construído com as pernas de um indivíduo, o crânio de outro e a bacia de um terceiro. Isso nunca foi um segredo, é o que foi possível fazer com a tecnologia de 25 anos atrás. Um dos genes humanos, que sequenciei na juventude, foi sequenciado a partir de meu próprio DNA, extraído de uma amostra do meu sangue.

Cientistas acreditam que, com 350 genomas, teremos uma boa ideia da diversidade dos genomas existentes nos membros de nossa espécie Foto: TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO

Agora esse problema foi parcialmente resolvido. Um grupo de pesquisadores publicou a sequência completa do genoma de 47 indivíduos distintos. O objetivo final é sequenciar o genoma completo de 350 pessoas. Como cada ser humano possui um genoma ligeiramente diferente de todos os outros (com exceção dos gêmeos univitelinos que possuem genomas idênticos), o objetivo é obter uma primeira ideia da diversidade que existe nos genomas completos das diferentes populações que existem no planeta.

Os primeiros 47 indivíduos que tiveram seu genoma sequenciado são das seguintes populações: Africanos caribenhos de Barbados; Africanos do sudoeste dos EUA; Han do sul da China; Colombianos de Medellín; Esan da Nigéria; Gambianos da região oeste; Kinh da cidade de Ho Chi Minh no Vietnã; Maasai de Kinyawa no Quênia; Mende da Serra Leone; Peruvianos de Lima; Punjabi de Lahore no Paquistão; Porto Riquenhos de Porto Rico e Yoruba de Ibadan na Nigéria. Apesar dessas pessoas representarem boa parte da diversidade humana, a amostra ainda é pouco representativa dos 8 bilhões de pessoas que habitam a Terra. Os cientistas acreditam que com 350 genomas teremos uma boa ideia da diversidade dos genomas existentes nos membros de nossa espécie.

Com essa amostra já é possível começar a ter uma ideia da diversidade de genomas existentes em nossa população. É claro que as diferenças entre pessoas é muito menor do que a diferença entre o genoma de um macaco e o genoma de um ser humano (lembre que um chimpanzé tem um genoma 98,8%idêntico aos de um ser humano). Mas são essas pequeníssimas diferenças que fazem que um chinês seja diferente de um caucasiano ou de um africano. Com o conjunto de genomas completos dessas 47 pessoas (os cientistas chamam esse conjunto de pangenoma) já foi possível identificar o que separa, do ponto de vista genético, pessoas de diferentes locais do planeta. São pequenas inversões na sequência, translocações de segmentos de um cromossoma para outro, deleções e alterações de bases. É importante lembrar que todos esses genomas são genomas normais de seres humanos normais e as diferenças encontradas representam a diversidade dos seres humanos.

À medida que nosso pangenoma for crescendo, até atingir os 350 indivíduos, vai ser possível entender a base genética de todas as diferenças que existem entre nós. Atualmente somos capazes de identificar diferenças em alguns poucos genes isolados que conseguimos correlacionar com algumas características morfológicas, bioquímicas, ou relacionadas a doenças.

Da mesma maneira que o rato não existe, o genoma humano também é uma abstração, o que existe no mundo real é o genoma de cada ser humano e o pangenoma da espécie humana, que representa parte de toda essa imensa e linda diversidade que observamos ao andar na rua ou viajando pelo mundo.

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Opinião por Fernando Reinach

Biólogo, PHD em Biologia Celular e Molecular pela Cornell University e autor de "A Chegada do Novo Coronavírus no Brasil"; "Folha de Lótus, Escorregador de Mosquito"; e "A Longa Marcha dos Grilos Canibais"

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