Opinião|Uma máquina que lê mentes? Entenda como cientistas conseguiram transformar pensamentos em palavras


Resultados obtidos pelo melhor sistema de leitura de mente já produzido são impressionantes. Entenda como o estudo foi feito

Por Fernando Reinach

Imagine você deitado em uma máquina que monitora seu cérebro. Aí você pensa para si mesmo “eu preciso tirar minha carteira de motorista”. Ao lado um computador que processa a atividade que ocorre em seu cérebro, submete a imagem da atividade cerebral a um decodificador, e na tela aparece a frase “eu ainda não aprendi a dirigir”. O que aparece na tela não é exatamente o que você pensou, mas é muito parecido. Esse é o tipo de resultado obtido com o melhor sistema de leitura de mente já produzido. Não é perfeito, mas é impressionante. Vale a pena entender como esse sistema funciona e suas implicações na privacidade do pensamento humano.

A máquina onde o voluntário se deita é um equipamento de ressonância magnética funcional, similar ao usado nos hospitais para obter imagens do nosso corpo. A diferença é que ele é capaz de detectar a quantidade de oxigênio no sangue que circula em cada pedacinho de nosso cérebro. Mas, ao invés de tirar uma foto, como fazem os existentes nos hospitais, ele faz um filme. Nesse filme é possível observar como a quantidade de oxigênio no sangue que circula em cada milímetro cúbico do cérebro varia ao longo do tempo.

Em experimento, cientistas conseguiram traduzir em palavras parte do que algumas pessoas estavam pensando.  Foto: Universidade de Cambridge/AFP
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Quando os neurônios em um dado local do cérebro estão ativos, eles consomem mais oxigênio e o nível de oxigênio baixa no sangue. Quando os neurônios entram em repouso, o nível de oxigênio volta ao normal. Dessa maneira, o filme produzido por esse equipamento mostra que áreas do cérebro estão ativas ou inativas a cada momento.

Exemplo: quando uma pessoa fecha os olhos, a parte do cérebro que recebe os impulsos vindos da retina diminui sua atividade e isso aparece no filme. Esse equipamento tem sido usado para descobrir as áreas do cérebro que são ativadas durante diferentes atividades, como o andar, o sonhar, o falar, o imaginar e assim por diante. É um instrumento poderoso.

Nesse experimento, três voluntários deitaram nessa máquina com um fone de ouvido e, por 16 horas, ficaram ouvindo uma série de podcasts. Durante todo esse tempo a atividade dos neurônios de cada microrregião de seus cérebros foi registrada. Desse modo, cada vez que a pessoa ouvia uma frase, a máquina de ressonância registrava as áreas do cérebros que estavam ativas.

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No final, os cientistas tinham um filme de 16 horas de atividade cerebral e a correspondente trilha sonora (o podcast) que tinha provocado a resposta do cérebro a cada palavra ou frase ouvida. Esses dados foram usados para treinar um sistema de inteligência artificial capaz de correlacionar padrões de atividade cerebral a frases. O resultado desse treinamento é um software decodificador, capaz de transformar cada padrão de atividade cerebral em uma palavra ou frase.

De posse desse decodificador, os cientistas fizeram o inverso: pediram aos voluntários que imaginassem narrativas. Enquanto eles imaginavam as frases na mente, a máquina de ressonância registrava a atividade em todo o cérebro e submetia o filme ao decodificador. Esse, por sua vez, tentava deduzir, a partir das imagens da atividade cerebral, o que os voluntários estavam pensando.

É o exemplo acima: imagino que ainda preciso tirar a carta de motorista e o decodificador informa que ainda não sei dirigir. O resultado não é perfeito, e está longe de acertar sempre, mas é impressionante como o decodificador consegue não só descobrir o que os voluntários estavam pensando, mas colocar em palavras esses pensamentos. Para surpresa dos cientistas, o decodificador consegue descrever não só pensamentos que envolvem palavras ouvidas ou imaginadas mas também pensamentos que envolvem imagens ou filmes mudos. Se você mostra para o voluntário uma foto de uma menina, o sistema escreve menina na tela. Ou seja, ao ver a imagem da menina, o cérebro do voluntário é ativado em regiões semelhantes às ativadas quando a pessoa ouve a palavra menina.

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Para fazer o experimento, os participantes tiveram que entrar em uma máquina semelhante a usada para fazer ressonância magnética. Foto: Michal Jarmoluk/Pixabay

Esse experimento mostra que estamos chegando perto de deduzir o que se passa na mente de uma pessoa simplesmente observando que áreas do seu cérebro estão ativas. Em teoria, no futuro, uma pessoa não vai precisar nos contar o que está pensando ou sentindo, basta observar a atividade cerebral dessa pessoa para saber o que se passa pela mente da pessoa. As implicações morais e éticas do uso dessa tecnologia são enormes. Hoje nossos pensamentos só podem ser descobertos por outra pessoa se nós os relatarmos.

Esse reduto de privacidade pode, em teoria, deixar de existir. Esse sistema pode ser usado em interrogatórios policiais substituindo os polígrafos, ou mesmo sessões de tortura em interrogatórios. Mas não se preocupe, esses sistemas ainda são imprecisos e os decodificadores (que transformam as imagens em palavras) são específicos para cada pessoa, ou seja, o decodificador construído para um voluntário não funciona em outro voluntário. O mais impressionante é que estamos começando entender como a mente é produzida pelo cérebro.

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Mais informações: Semantic reconstruction of continuous language from non-invasive brain recordings. Nat Neurosci https://doi.org/10.1038/s41593-023-01304-9 2023

Fernando Reinach é biólogo

Imagine você deitado em uma máquina que monitora seu cérebro. Aí você pensa para si mesmo “eu preciso tirar minha carteira de motorista”. Ao lado um computador que processa a atividade que ocorre em seu cérebro, submete a imagem da atividade cerebral a um decodificador, e na tela aparece a frase “eu ainda não aprendi a dirigir”. O que aparece na tela não é exatamente o que você pensou, mas é muito parecido. Esse é o tipo de resultado obtido com o melhor sistema de leitura de mente já produzido. Não é perfeito, mas é impressionante. Vale a pena entender como esse sistema funciona e suas implicações na privacidade do pensamento humano.

A máquina onde o voluntário se deita é um equipamento de ressonância magnética funcional, similar ao usado nos hospitais para obter imagens do nosso corpo. A diferença é que ele é capaz de detectar a quantidade de oxigênio no sangue que circula em cada pedacinho de nosso cérebro. Mas, ao invés de tirar uma foto, como fazem os existentes nos hospitais, ele faz um filme. Nesse filme é possível observar como a quantidade de oxigênio no sangue que circula em cada milímetro cúbico do cérebro varia ao longo do tempo.

Em experimento, cientistas conseguiram traduzir em palavras parte do que algumas pessoas estavam pensando.  Foto: Universidade de Cambridge/AFP

Quando os neurônios em um dado local do cérebro estão ativos, eles consomem mais oxigênio e o nível de oxigênio baixa no sangue. Quando os neurônios entram em repouso, o nível de oxigênio volta ao normal. Dessa maneira, o filme produzido por esse equipamento mostra que áreas do cérebro estão ativas ou inativas a cada momento.

Exemplo: quando uma pessoa fecha os olhos, a parte do cérebro que recebe os impulsos vindos da retina diminui sua atividade e isso aparece no filme. Esse equipamento tem sido usado para descobrir as áreas do cérebro que são ativadas durante diferentes atividades, como o andar, o sonhar, o falar, o imaginar e assim por diante. É um instrumento poderoso.

Nesse experimento, três voluntários deitaram nessa máquina com um fone de ouvido e, por 16 horas, ficaram ouvindo uma série de podcasts. Durante todo esse tempo a atividade dos neurônios de cada microrregião de seus cérebros foi registrada. Desse modo, cada vez que a pessoa ouvia uma frase, a máquina de ressonância registrava as áreas do cérebros que estavam ativas.

No final, os cientistas tinham um filme de 16 horas de atividade cerebral e a correspondente trilha sonora (o podcast) que tinha provocado a resposta do cérebro a cada palavra ou frase ouvida. Esses dados foram usados para treinar um sistema de inteligência artificial capaz de correlacionar padrões de atividade cerebral a frases. O resultado desse treinamento é um software decodificador, capaz de transformar cada padrão de atividade cerebral em uma palavra ou frase.

De posse desse decodificador, os cientistas fizeram o inverso: pediram aos voluntários que imaginassem narrativas. Enquanto eles imaginavam as frases na mente, a máquina de ressonância registrava a atividade em todo o cérebro e submetia o filme ao decodificador. Esse, por sua vez, tentava deduzir, a partir das imagens da atividade cerebral, o que os voluntários estavam pensando.

É o exemplo acima: imagino que ainda preciso tirar a carta de motorista e o decodificador informa que ainda não sei dirigir. O resultado não é perfeito, e está longe de acertar sempre, mas é impressionante como o decodificador consegue não só descobrir o que os voluntários estavam pensando, mas colocar em palavras esses pensamentos. Para surpresa dos cientistas, o decodificador consegue descrever não só pensamentos que envolvem palavras ouvidas ou imaginadas mas também pensamentos que envolvem imagens ou filmes mudos. Se você mostra para o voluntário uma foto de uma menina, o sistema escreve menina na tela. Ou seja, ao ver a imagem da menina, o cérebro do voluntário é ativado em regiões semelhantes às ativadas quando a pessoa ouve a palavra menina.

Para fazer o experimento, os participantes tiveram que entrar em uma máquina semelhante a usada para fazer ressonância magnética. Foto: Michal Jarmoluk/Pixabay

Esse experimento mostra que estamos chegando perto de deduzir o que se passa na mente de uma pessoa simplesmente observando que áreas do seu cérebro estão ativas. Em teoria, no futuro, uma pessoa não vai precisar nos contar o que está pensando ou sentindo, basta observar a atividade cerebral dessa pessoa para saber o que se passa pela mente da pessoa. As implicações morais e éticas do uso dessa tecnologia são enormes. Hoje nossos pensamentos só podem ser descobertos por outra pessoa se nós os relatarmos.

Esse reduto de privacidade pode, em teoria, deixar de existir. Esse sistema pode ser usado em interrogatórios policiais substituindo os polígrafos, ou mesmo sessões de tortura em interrogatórios. Mas não se preocupe, esses sistemas ainda são imprecisos e os decodificadores (que transformam as imagens em palavras) são específicos para cada pessoa, ou seja, o decodificador construído para um voluntário não funciona em outro voluntário. O mais impressionante é que estamos começando entender como a mente é produzida pelo cérebro.

Mais informações: Semantic reconstruction of continuous language from non-invasive brain recordings. Nat Neurosci https://doi.org/10.1038/s41593-023-01304-9 2023

Fernando Reinach é biólogo

Imagine você deitado em uma máquina que monitora seu cérebro. Aí você pensa para si mesmo “eu preciso tirar minha carteira de motorista”. Ao lado um computador que processa a atividade que ocorre em seu cérebro, submete a imagem da atividade cerebral a um decodificador, e na tela aparece a frase “eu ainda não aprendi a dirigir”. O que aparece na tela não é exatamente o que você pensou, mas é muito parecido. Esse é o tipo de resultado obtido com o melhor sistema de leitura de mente já produzido. Não é perfeito, mas é impressionante. Vale a pena entender como esse sistema funciona e suas implicações na privacidade do pensamento humano.

A máquina onde o voluntário se deita é um equipamento de ressonância magnética funcional, similar ao usado nos hospitais para obter imagens do nosso corpo. A diferença é que ele é capaz de detectar a quantidade de oxigênio no sangue que circula em cada pedacinho de nosso cérebro. Mas, ao invés de tirar uma foto, como fazem os existentes nos hospitais, ele faz um filme. Nesse filme é possível observar como a quantidade de oxigênio no sangue que circula em cada milímetro cúbico do cérebro varia ao longo do tempo.

Em experimento, cientistas conseguiram traduzir em palavras parte do que algumas pessoas estavam pensando.  Foto: Universidade de Cambridge/AFP

Quando os neurônios em um dado local do cérebro estão ativos, eles consomem mais oxigênio e o nível de oxigênio baixa no sangue. Quando os neurônios entram em repouso, o nível de oxigênio volta ao normal. Dessa maneira, o filme produzido por esse equipamento mostra que áreas do cérebro estão ativas ou inativas a cada momento.

Exemplo: quando uma pessoa fecha os olhos, a parte do cérebro que recebe os impulsos vindos da retina diminui sua atividade e isso aparece no filme. Esse equipamento tem sido usado para descobrir as áreas do cérebro que são ativadas durante diferentes atividades, como o andar, o sonhar, o falar, o imaginar e assim por diante. É um instrumento poderoso.

Nesse experimento, três voluntários deitaram nessa máquina com um fone de ouvido e, por 16 horas, ficaram ouvindo uma série de podcasts. Durante todo esse tempo a atividade dos neurônios de cada microrregião de seus cérebros foi registrada. Desse modo, cada vez que a pessoa ouvia uma frase, a máquina de ressonância registrava as áreas do cérebros que estavam ativas.

No final, os cientistas tinham um filme de 16 horas de atividade cerebral e a correspondente trilha sonora (o podcast) que tinha provocado a resposta do cérebro a cada palavra ou frase ouvida. Esses dados foram usados para treinar um sistema de inteligência artificial capaz de correlacionar padrões de atividade cerebral a frases. O resultado desse treinamento é um software decodificador, capaz de transformar cada padrão de atividade cerebral em uma palavra ou frase.

De posse desse decodificador, os cientistas fizeram o inverso: pediram aos voluntários que imaginassem narrativas. Enquanto eles imaginavam as frases na mente, a máquina de ressonância registrava a atividade em todo o cérebro e submetia o filme ao decodificador. Esse, por sua vez, tentava deduzir, a partir das imagens da atividade cerebral, o que os voluntários estavam pensando.

É o exemplo acima: imagino que ainda preciso tirar a carta de motorista e o decodificador informa que ainda não sei dirigir. O resultado não é perfeito, e está longe de acertar sempre, mas é impressionante como o decodificador consegue não só descobrir o que os voluntários estavam pensando, mas colocar em palavras esses pensamentos. Para surpresa dos cientistas, o decodificador consegue descrever não só pensamentos que envolvem palavras ouvidas ou imaginadas mas também pensamentos que envolvem imagens ou filmes mudos. Se você mostra para o voluntário uma foto de uma menina, o sistema escreve menina na tela. Ou seja, ao ver a imagem da menina, o cérebro do voluntário é ativado em regiões semelhantes às ativadas quando a pessoa ouve a palavra menina.

Para fazer o experimento, os participantes tiveram que entrar em uma máquina semelhante a usada para fazer ressonância magnética. Foto: Michal Jarmoluk/Pixabay

Esse experimento mostra que estamos chegando perto de deduzir o que se passa na mente de uma pessoa simplesmente observando que áreas do seu cérebro estão ativas. Em teoria, no futuro, uma pessoa não vai precisar nos contar o que está pensando ou sentindo, basta observar a atividade cerebral dessa pessoa para saber o que se passa pela mente da pessoa. As implicações morais e éticas do uso dessa tecnologia são enormes. Hoje nossos pensamentos só podem ser descobertos por outra pessoa se nós os relatarmos.

Esse reduto de privacidade pode, em teoria, deixar de existir. Esse sistema pode ser usado em interrogatórios policiais substituindo os polígrafos, ou mesmo sessões de tortura em interrogatórios. Mas não se preocupe, esses sistemas ainda são imprecisos e os decodificadores (que transformam as imagens em palavras) são específicos para cada pessoa, ou seja, o decodificador construído para um voluntário não funciona em outro voluntário. O mais impressionante é que estamos começando entender como a mente é produzida pelo cérebro.

Mais informações: Semantic reconstruction of continuous language from non-invasive brain recordings. Nat Neurosci https://doi.org/10.1038/s41593-023-01304-9 2023

Fernando Reinach é biólogo

Opinião por Fernando Reinach

Biólogo, PHD em Biologia Celular e Molecular pela Cornell University e autor de "A Chegada do Novo Coronavírus no Brasil"; "Folha de Lótus, Escorregador de Mosquito"; e "A Longa Marcha dos Grilos Canibais"

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