FOTO: Save the Tasmanian Devil Program
O câncer, apesar de ser extremamente comum, é uma doença "individual", que "nasce" dentro de cada pessoa, individualmente, por conta de alguma combinação infeliz de fatores genéticos e ambientais (por exemplo, exposição demasiada à fumaça de cigarro ou à radiação solar). E, desse jeito, já causa o estrago que causa no mundo inteiro. Agora, imagine se, além disso, o câncer fosse uma doença transmissível, que pudesse ser passada de um indivíduo para outro, como um vírus da aids ou da hepatite, por exemplo. Que pesadelo seria!
Pois no mundo dos demônios da Tasmânia isso não é pesadelo. É realidade. Uma realidade infernal, por assim dizer, que ameaça seriamente a sobrevivência da espécie.
O demônio da Tasmânia, para quem não sabe, não é apenas um personagem de desenho animado. É um bicho de verdade! Um mamífero marsupial (dotado de bolsa abdominal, como a do canguru, na qual os filhotes se desenvolvem) de até 12 kg que só existe na ilha da Tasmânia, na costa sudeste da Austrália. A espécie, cujo nome científico é Sarcophilus harrisii, é considerada ameaçada de extinção, em grande parte por conta de um câncer que vem se espalhando pela população há mais de 15 anos. Em uma década, segundo informações da Lista Vermelha da IUCN, a população já foi reduzida em mais de 60%.
O "tumor facial do demônio da Tasmânia", ou DFTD (em inglês), como a doença é conhecida, começou como um câncer "normal", resultado de uma combinação de mutações genéticas que levou uma célula a se multiplicar descontroladamente dentro de um animal. A diferença é que, antes desse animal doente morrer, ele transmitiu a doença para outros demônios (termo que uso aqui sem qualquer intenção de ofender a espécie), que passaram-na para outros demônios, e assim por diante. Como se as células tumorais fossem um vírus, transmitido por meio de mordidas. (Os demônios da vida real não giram como tornados, como o personagem Taz dos desenhos animados, mas são mesmo bichos endiabrados, que mordem uns aos outros com frequência.)
Uma vez dentro do organismo, as células tumorais passam a se multiplicar e formar novos tumores, levando o animal à morte no prazo de alguns meses. A doença causa tumores horríveis no rosto e na boca dos demônios, que ficam completamente desfigurados. O sistema imunológico dos animais infectados deveria ser capaz de destruir as células invasoras, mas por alguma razão ainda desconhecida, elas conseguem se manter vivas e proliferar, como uma metástase contagiosa.
Numa tentativa de entender melhor a doença (e identificar eventuais pontos fracos para derrotá-la), pesquisadores sequenciaram os genomas completos da espécie e do câncer que a aflige. Comparando as duas sequências, eles identificaram 17 mil mutações no genoma das células tumorais, que agora serão estudadas em detalhe para saber quais delas são as mais importantes na evolução e na proliferação da doença.
Segundo os pesquisadores, os dados genéticos indicam que a DFTD "nasceu" em um demônio fêmea, que viveu (e morreu) antes de 1996, quando o primeiro caso da doença foi identificado. Todos os tumores detectados na população desde então são formados por células "filhas" desse primeiro tumor "mãe". É o mesmo câncer, passado de um animal para outro há mais de 15 anos. Imagine só!
O estudo foi publicado na revista Cell. Já pensaram se essa moda pega entre os tumores humanos?
Há um único outro caso de câncer transmissível conhecido: o "tumor venéreo canino", ou CTVT, que é transmitido sexualmente entre cachorros. Estudos indicam que a doença "nasceu" milhares de anos atrás, dentro de um lobo ou de um cachorro do leste da Ásia.