Cientistas e o Ministério do Meio Ambiente (MMA) estão mais uma vez em conflito sobre a regulamentação da pesca de espécies ameaçadas de extinção. A bola da vez é uma nova portaria assinada em 26 de março pelo ministério (Portaria 73/2018), abrindo a possibilidade de que mesmo espécies listadas nas categorias mais críticas de ameaça tenham sua pesca autorizada.
Trata-se de mais uma modificação da Portaria 445, de dezembro de 2014, que inclui a lista de espécies aquáticas brasileiras ameaças de extinção e determina regras básicas para a pesca e conservação dessas espécies. O texto original previa que apenas espécies classificadas como Vulneráveis (VU) poderiam ser alvo de pesca, desde que autorizada pelos órgãos federais competentes. Já a pesca de espécies listadas como Em Perigo (EN) ou Criticamente em Perigo (CR) ficou proibida -- com exceção feita a algumas espécies de importância socioeconômica para a pesca artesanal, como o budião-azul, o bagre-branco e o caranguejo guaiamum.
Na visão dos pesquisadores, a nova portaria "abre um precedente incompreensível" ao prever, de forma genérica, a possibilidade de autorização da pesca de qualquer espécie ameaçada de extinção, inclusive nas categorias EN e CR, e não apenas na categoria VU, como previa originalmente a Portaria 445.
"Recomendamos seguidamente que a autorização de uso de espécies EN e CR deveria ser uma exceção e não a regra, e que esta autorização deveria ser espécie-específica e condicionada a apresentação de evidências de situações especiais nas quais a atividade pesqueira trouxesse vantagens para a conservação da espécie ameaçada", diz uma carta de protesto enviada nesta semana ao MMA, assinada pela Sociedade Brasileira de Ictiologia (SBI) e pela Sociedade Brasileira para o Estudo de Elasmobrânquios (SBEEL), que participam do Grupo de Trabalho criado pelo ministério para subsidiar cientificamente a regulamentação da Portaria 445 (GT 445).
Segundo os pesquisadores, a nova portaria "não passa de mais um remendo" aplicado sobre uma regulamentação essencial, cuja implementação já foi protelada e modificada tantas vezes que até os próprios especialistas que participam das reuniões em Brasília têm dificuldade para entender o que está permitido, o que está proibido, ou até quando valem essas permissões e proibições. Imagine, então, os pescadores e outros usuários do sistema.
"É um verdadeiro caos", diz o pesquisador Rodrigo Leão Moura, do Instituto de Biologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), representante da SBI no GT 445. "É remendo em cima de remendo; ninguém entende nada, ninguém sabe se está legal ou não."
"Eles quase que desqualificam a Portaria 445. O estado de ameaça das espécies praticamente não tem mais valor", diz o pesquisador Fabio Motta, do Departamento de Ciências do Mar da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), representante da SBEEL no grupo de trabalho.
Os planos de manejo que deveriam orientar o uso sustentável das espécies não são feitos ou, quando existem, não são implementados, dizem os cientistas. De forma que a Portaria 445, três anos após sua publicação, segue sem efeitos práticos significativos para a conservação da biodiversidade marinha.
Argumentação. Em resposta aos questionamentos dos cientistas, o MMA publicou uma nota de esclarecimento (Nota Informativa 319/2018), argumentando que as mudanças realizadas pela Portaria 73 "foram propostas no contexto de implementar recomendações e encaminhamentos que tem sido discutidos no âmbito do Grupo de Trabalho", inclusive no que diz respeito à excepcionalidade da autorização do uso de espécies EN e CR.
"Entendeu-se que a minuta de Portaria atendia ao mérito das recomendações do referido Grupo de Trabalho, ainda que apresentando diferenças na forma", diz a nota do ministério. "Não se trata de previsão a priori, ou de autorização genérica quanto ao uso de todas as espécies listada no Anexo I da Portaria MMA no 445 de 2014. Trata-se, ao contrário, de avaliação espécie a espécie, a partir dos critérios objetivos listados na Portaria."
A nova redação dada ao Artigo 3 da Portaria 445 pela Portaria 73 inclui uma série de condicionantes para a autorização do uso (pesca) de espécies ameaçadas, seja qual for a categoria de ameaça (VU, EN ou CR). "O reconhecimento da possibilidade de uso de cada espécie dependerá de avaliação específica, conduzida pelo MMA, em articulação com o ICMBio e com o Ibama, podendo realizar consulta a especialistas para esta finalidade", diz o texto.
"O efeito prático é o mesmo", diz Ugo Vercillo, diretor do Departamento de Conservação e Manejo de Espécies do MMA, referindo-se à demanda dos pesquisadores, de que as autorizações sejam dadas caso a caso, e apenas em casos excepcionais. A única diferença daquilo que foi recomendado pelo GT, segundo ele, está na linguagem que foi usada na Portaria 73, atendendo a recomendações do departamento jurídico do ministério. "Ficou um mecanismo muito mais robusto do que o previsto originalmente na 445", avalia.
Atualmente, apenas 15 espécies ameaçadas podem ser pescadas legalmente, segundo uma outra portaria -- ou outro "remendo", na opinião dos pesquisadores -- publicada em abril de 2017 (Portaria 161), que adiou os efeitos da Portaria 445 para essas espécies, incluindo 5 classificadas como grau de ameaça EN ou CR: bagre-branco, budião-azul, guaiamum e duas espécies de acari (peixes ornamentais, também conhecidos como cascudo).
Segundo Vercillo, já existem planos de uso sustentável para todas elas. "São perfeitos? Não. Mas, ou a gente coloca isso na praça, começa a usar e vai aperfeiçoando, ou vamos continuar num cenário sem regramento, que é o pior possível para a conservação das espécies", diz.
A publicação da Portaria 73 era necessária, segundo Vercillo, para impedir que a pesca dessas espécies caia na ilegalidade após 30 de abril, quando expira a validade da Portaria 161. A outra opção seria prorrogar mais uma vez os efeitos da Portaria 445 -- o que seria pior, segundo ele. "Sou contrário a qualquer prorrogação adicional da 445."
Contradição. Os pesquisadores ouvidos pela reportagem negaram veementemente que a Portaria 73 atenda às recomendações do Grupo de Trabalho. "O GT não endossou isso, de forma alguma", afirma Leão Moura. A intenção, segundo ele, era que a autorização para pesca de algumas poucas espécies fosse dada de forma isolada, por meio de portaria específicas e individuais. Em vez disso, diz ele, o MMA "abriu a porteira" para passar alguns bois, mas corre-se o risco de passar a boiada inteira. "A gente insiste que a autorização da pesca de espécies ameaçadas deve ser a exceção, não a regra."
Tubarões e raias. A Portaria 73 também revogou um artigo da Portaria 445 que criava uma exceção da regra para "exemplares capturados incidentalmente, desde que liberados vivos ou descartados no ato da captura" -- liberando o chamado "bycatch" de raias e tubarões, que são capturados "acidentalmente" durante a pescaria de outras espécies, como o atum. Apesar da revogação, essa captura "acidental" continua sendo permitida por uma Instrução Normativa de 2011 (INI 10, abaixo). Segundo o ministério, tratou-se apenas de eliminar uma duplicidade, não de proibir a captura ou o descarte de tubarões e raias -- que é uma das principais ameaças à conservação dessas espécies, algumas delas criticamente ameaçadas de extinção.
"Este é um dos temas que o GT ainda não conseguiu avançar para definirmos o regramento correto", disse Vercillo.