Herton Escobar / O Estado de S. Paulo
Os primeiros habitantes das Américas chegaram ao continente entre 26 mil e 18 mil anos atrás, atravessando o estreito da Bering (entre a Rússia e o Alasca) num período glacial em que o nível do mar estava bem mais baixo e havia uma "ponte" de terra firme exposta, ligando a Ásia e a América do Norte. Isso é praticamente um consenso dentro da ciência, baseado em evidências fósseis, moleculares e paleontológicas e arqueológicas. Mas uma grande dúvida persiste: Quantas ondas migratórias passaram por essa ponte de terra, chamada Beríngia, antes de ela se "fechar" e ficar submersa novamente? Em outras palavras: Os primeiros seres humanos que chegaram às Américas e deram origem aos povos ameríndios que já estavam aqui antes de Colombo e Cabral são descendentes de uma única população genética, ou mais de uma? (Não apenas da Ásia, mas quem sabe até da Oceania ou da África, por via marítima?)
A dúvida que atormenta os cientistas e historiadores deve-se ao fato de que a morfologia dos crânios mais antigos das Américas (dos chamados paleoamericanos, com cerca de 9 mil anos de idade) não se "encaixa" com a dos ameríndios modernos, nem com a dos povos siberianos nem com a de outros povos asiáticos que poderiam ser, teoricamente, seus ancestrais.
Mas eis que uma luz no fim do túnel -- ou melhor, no fim de uma caverna -- acaba de aparecer para esclarecer a questão (ou confundi-la ainda mais, dependendo de como o trabalho for avaliado pela comunidade científica nos próximos anos; vamos ver). Pesquisadores descobriram, no fundo de uma caverna mexicana chamada Hoyo Negro, o fóssil de uma menina de aproximadamente 15 anos de idade, cujas datações por radiocarbono indicam ter vivido cerca de 12 mil anos atrás. O crânio dela tem a morfologia característica dos paleoamericanos -- diferente dos ameríndios e siberianos modernos. O DNA mitocondrial extraído de seus dentes (muito bem preservados pelas características da caverna), porém, é muito semelhante ao dos ameríndios modernos, indicando que ela possui uma relação direta de ancestralidade com eles.
O que se pode inferir, portanto, é que, apesar da morfologia cranial distinta, os paleoamericanos são ancestrais diretos dos ameríndios (em vez de representar uma população distinta). O que, por sua vez, reforça a tese de que as Américas foram povoadas por uma única onda migratória da Beríngia. As diferenças morfológicas que se observa hoje, segundo os cientistas, teriam surgido como modificações adaptativas ao novo ambiente das Américas, depois que a população original da Eurásia atravessou a ponte e se espalhou pelo novo continente.
O estudo, liderado por James Chatters, da Applied Paleoscience and DirectAMS, e apoiado pela National Geographic Society, está publicado na revista Science: http://www.sciencemag.org/content/344/6185/750
O local onde o fóssil foi descoberto é tão espetacular quanto a descoberta em si. Hoyo Negro é uma caverna submersa, de 62 metros de diâmetro, acessível apenas por mergulhadores técnicos altamente especializados, que precisam percorrer um túnel de aproximadamente 50 metros para chegar lá, entrando por um cenote chamado Ich-Balam. Hoje, a base do salão está quase 50 metros abaixo do nível do mar, mas quando a menina paleoamericana estava viva, ele era uma caverna seca, como provam as estalagmites e a camada de guano (fezes de morcego) que cobrem o seu chão. E a entrada mais próxima estava a 600 metros do salão. A menina, assim, como vários animais e outros seres humanos da época, provavelmente ficou presa e acabou morrendo dentro desse sistema de cavernas, chamado Sac Actun, que foi inundado quando as geleiras ao norte derreteram e o nível do mar voltou a subir, entre 4 mil e 10 mil anos atrás. Imagine só!
Um vídeo da pesquisa pode ser visto aqui: http://video.sciencemag.org/videolab/chatters
*Post atualizado às 15h do dia 16/5/2014
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