Aquela que seria a última opção de resgate para os recifes de coral ameaçados do mundo acaba de ir por água abaixo. Contrariando o que se pensava até agora, os recifes de águas mais profundas -- chamados mesofóticos, por estarem numa região de transição entre a luz e a escuridão, entre 30 e 150 metros de profundidade -- não são iguais aos de águas rasas nem estão alheios às ameaças da superfície. Portanto, não contem com eles para resgatar ninguém da extinção; porque eles também precisam de ajuda.
Essa é a dura realidade trazida à tona hoje por um grupo de cientistas da Academia de Ciências da Califórnia, incluindo dois biólogos brasileiros, que passaram centenas de horas debaixo d'água pesquisando a biodiversidade desses recifes mesofóticos em várias partes do mundo. O que eles observaram é muito animador do ponto de vista científico, porém desalentador do ponto de vista da conservação.
Imaginava-se, com base em inferências e registros pontuais passados, que a composição faunística dos recifes mesofóticos era muito semelhante à dos recifes de águas rasas; e que, graças à profundidade, eles estariam mais protegidos da pesca, da poluição e outros fatores que ameaçam os recifes de coral ao redor do mundo. Dessa forma, em última instância, eles funcionariam como um refúgio de biodiversidade -- uma espécie de "cópia de segurança" que, em última instância, forneceria as "peças de reposição" necessárias para repovoar os recifes degradados mais acima.
Só que não. O levantamento in situ feito pelos pesquisadores mostra que a biodiversidade dos recifes mesofóticos é quase que totalmente distinta dos recifes rasos (a sobreposição, no caso dos peixes, é de apenas 5%, e menor ainda no caso dos corais), e que ele sofrem dos mesmos problemas de seus vizinhos do andar de cima, incluindo pesca predatória, contaminação por plásticos e outros poluentes, sedimentação, aquecimento e acidificação da água do mar.
"Temos que abandonar a ideia de que os recifes profundos podem oferecer refúgio aos recifes rasos", disse ao Estado o pesquisador Luiz Rocha, curador de peixes da instituição californiana e autor principal do trabalho, publicado hoje na revista Science. "A situação dos recifes rasos é pior do que se imaginava, e a urgência de agir para protegê-los é ainda maior do que se pensava."
"A comunidade desses ambientes profundos é completamente distinta. Quanto mais fundo você vai, mais diferente fica", diz o biólogo capixaba Hudson Pinheiro, pesquisador associado à Academia de Ciências da Califórnia, à Universidade Federal do Espírito Santo e parceiro de Rocha nos mergulhos que fundamentaram o trabalho. Eles pertencem a um seleto grupo de cientistas ao redor do mundo capacitados a mergulhar e pesquisas nessas grandes profundidades -- uma atividade de alto risco, que exige técnicas e equipamentos especiais.
Juntos, eles contaram e identificaram mais de 50 mil peixes, em mais de 100 mergulhos, realizados entre 2014 e 2016, em várias localidades do Oceano Atlântico (nas Ilhas Bermudas e Curaçao) e do Oceano Pacífico (nas Filipinas e na Micronésia), comparando recifes rasos e mesofóticos, até 150 metros de profundidade.
E isso foi só começo. Desde então eles já mergulharam em vários outros pontos importantes, incluindo a Ilha de Trindade e o Arquipélago de São Pedro e São Paulo, no Brasil (recentemente transformadas em áreas protegidas marinhas), em parceria com outros cientistas-mergulhadores brasileiros. E o cenário encontrado foi essencialmente o mesmo, tanto na variabilidade de espécies quanto nas ameaças que esses ecossistemas enfrentam.
"Acho que a experiência mais chocante que tive foi chegar a esses locais onde ninguém nunca foi e encontrar lixo em quase 100% deles -- plástico, latas, redes de pesca", conta Rocha. "Mesmo nessas profundidades pouco exploradas, os impactos humanos são óbvios."
A única coisa que parece realmente servir como refúgio para os recifes de coral, segundo os pesquisadores, é estar o mais isolado possível do homem, tanto no fundo quanto no raso. "O grau de preservação do ambiente não está tão relacionado com a profundidade, mas com a distância dos seres humanos", diz Pinheiro. "Se o raso estiver detonado, o fundo provavelmente vai estar também."
Realidade brasileira
As implicações disso tudo para a biodiversidade marinha brasileira são enormes, dizem os pesquisadores. Por conta de sua extensa plataforma continental, o Brasil é um dos países com a maior quantidade e diversidade de ecossistemas mesofóticos no mundo; e a grande maioria desses ambientes foi muito pouco ou nada explorada cientificamente até agora, ressalta Pinheiro. Os cientistas temem que muita dessa biodiversidade seja perdida antes mesmo de ser conhecida.
+ Veja a reportagem especial: Recifes em Risco
O mais famoso desses recifes mesofóticos brasileiros atualmente é o da foz do Amazonas, cuja extensão e configuração só vem sendo revelada nos últimos dois anos, e cuja conservação está em conflito com iniciativas de exploração de petróleo e gás na região.
"Os resultados dessa pesquisa mostram claramente a necessidade de medidas específicas para a conservação de recifes profundos, que até agora eram considerados imunes às mudanças climáticas e aos impactos antrópicos locais", diz o biólogo Ronaldo Francini Filho, professor da Universidade Federal da Paraíba, que pesquisa os recifes do Amazonas.
A exploração científica desses ambientes deverá acrescentar muitos nomes ao catálogo de biodiversidade marinha brasileira, que atualmente conta com 733 espécies de peixes, das quais 111 (27%) são endêmicas (ou seja, só existem no Brasil) e 78 estão ameaçadas de extinção, segundo a lista mais recente elaborada por um grupo de pesquisadores nacionais, publicada na revista Diversity and Distributions.
Isso confirma o Brasil como o segundo maior centro de biodiversidade marinha do Atlântico, depois do Caribe (que tem cerca de 1 mil espécies de peixes).
A lista anterior, de 2008, tinha apenas 470 espécies, o que mostra a evolução da ciência brasileira nessa área. O novo trabalho, além de ampliar significativamente o número de registros, mostra que essa biodiversidade está concentrada na costa central do país, entre a Bahia e o Espírito Santo -- onde fica o Banco dos Abrolhos, que abriga o maior ecossistema recifal do Brasil, incluindo recifes rasos e mesofóticos.
"Quanto mais a gente explorar, com certeza mais espécies vão aparecer", comemora Pinheiro.