Maternidade e carreira na ciência: por que as falas do presidente do CNPq viraram polêmica?


Ricardo Galvão disse que movimento que destaca desigualdade entre homens e mulheres na academia ‘atrapalha muito’. Conselho diz que fala foi tirada de contexto

Por Roberta Jansen
Atualização:

A gestação e a maternidade “atrapalham” a carreira de mulheres nas ciências? O debate ganhou força na última semana com um novo artigo sobre o tema, assinado por uma pesquisadora brasileira na revista Nature, e um comentário polêmico do presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Ricardo Galvão, sobre desigualdades de gênero na academia.

O conselho, órgão do Ministério da Ciência e Tecnologia, afirma que a fala foi tirada de contexto, mas reconhece que o uso do verbo foi “inapropriado”.

Mulheres têm criado movimentos para lutar contra a desigualdade de gênero na carreira científica Foto: Michael Zhang/Adobe Stock
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Na pós-graduação stricto sensu (o que inclui mestrados e doutorados), só em duas (Linguística, Letras e Artes; e Ciências da Saúde) das noves grandes áreas do conhecimento as mulheres eram 50% ou mais do corpo de professores em 2021. Nas Ciências Exatas e da Terra e nas Engenharias, a taxa não supera os 25%

Na quarta-feira, 31 a Nature divulgou o artigo “As mães são a força para uma mudança radical na academia”, assinado pela bióloga molecular Fernanda Staniscuaski, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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Fernanda coordena o movimento Parent in Science, que se mobiliza para mostrar, por meio de estudos científicos, a desigualdade entre homens e mulheres na carreira acadêmica, sobretudo nas posições de mais prestígio. No artigo, a pesquisadora cita que, nos últimos vinte anos, as mulheres receberam apenas 35% das bolsas de produtividade, as de maior prestígio do CNPq.

No mesmo dia, numa palestra na Unicamp, o presidente do CNPq, Ricardo Galvão, ao responder uma pergunta sobre equidade, afirmou que a “Parent in Science atrapalha muito” porque, segundo ele, a organização “manda o tempo todo requisições ao CNPq para a criação de processos de bolsas separadas para as mulheres e julgamento separado para as mulheres”.

Na mesma resposta, Galvão disse que “as mulheres produtivas não defendem práticas paternalistas”. Na sexta-feira, 2, o CNPq divulgou nota sobre essa manifestação.

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“É necessário pontuar que essas são duas palavras (atrapalha muito) pinçadas dentro de uma explanação muito mais ampla sobre a questão de desigualdades, não só de gênero como também de raça, regionalismo e profissão, feita pelo presidente em resposta a uma pergunta interposta pelo organizador da mesa (....). Obviamente, uma conclusão sobre seu posicionamento com relação a essa questão só pode extraída escutando toda sua alocução”, afirma a nota do órgão federal.

“A fala de Galvão deixa clara a visão de muitos na academia, de que a ação afirmativa e cotas são privilégio, não reparação”, diz Fernanda. “E revela que não é algo individual, mas estrutural, enraizado na academia, que adora o discurso do mérito, mas ignora as condições que influenciam as métricas.”

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Ana Arnt, do Instituto de Biologia da Unicamp, estava presente no evento e escreveu um artigo sobre o tema para o blog de ciência da universidade. “As mulheres defendem políticas de equidade, não políticas paternalistas. As políticas afirmativas não querem facilitar a entrada de pessoas (na academia), mas promover a igualdade social.”

Na nota, o CNPq sustenta que o presidente “quis deixar claro que, reconhecendo a necessidade plenamente justificável de ações afirmativas na análise da produtividade científica e promoção profissional das pesquisadoras, pessoalmente (e não em nome da Diretoria Executiva do CNPq) é contrário a editais específicos para mulheres, principalmente por respeito à sua capacidade intelectual”. Reconhece, porém, que “o termo atrapalha foi inapropriado e deselegantemente empregado”.

Presidente do CNPq, Ricardo Galvão disse em evento que movimento Parent in Science "atrapalha muito"; órgão fala em frase tirada do contexto Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado
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No fim de 2023, o CNPq usou o mesmo verbo, “atrapalhar”, em parecer enviado à cientista social Maria Carlotto, da Universidade Federal do ABC (UFABC), justamente por conta de uma solicitação de bolsa. “O CNPq usou um parecer misógino para recusar a minha bolsa”, disse ela, mãe de duas filhas.

O parecer reconhecia a carreira da pesquisadora, mas ressaltava que ela não poderia receber a bolsa porque não tinha feito pós-doutorado internacional. E concluía dizendo que isso aconteceu porque “provavelmente suas gestações atrapalharam essas iniciativas”. Em nota à imprensa, depois, o CNPq classifica o ocorrido como “triste episódio”.

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Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que as mulheres gastam praticamente o dobro do tempo que os homens em afazeres domésticos, mesmo quando têm cargos similares. Isso inclui não apenas o cuidado com os filhos, mas também com idosos e com a casa de forma geral. No isolamento imposto pela pandemia, a situação se agravou.

Pesquisa com mais de três mil acadêmicos pelo Parent in Science e publicada na Frontiers in Psychology em 2021 revelou que no ano anterior apenas 47% das cientistas mulheres com filhos conseguiram submeter os artigos científicos que tinham planejado antes do início da pandemia, ante 76% dos cientistas do sexo masculino.

O número de artigos publicados é condição essencial para a aprovação em editais de projetos de pesquisa e concursos públicos, ou seja, na progressão da carreira.

“Pelas métricas que usamos, ser produtivo é determinado pelo número de publicações e orientações; e a carreira acadêmica não aceita pausas”, afirma Fernanda. “A parentalidade impacta muito mais a carreira das mães do que dos pais, e isso não pode ser reflexo da sua capacidade. Por isso, precisamos discutir o que é ser produtivo, a visão que temos do que é a carreira ideal.”

Instituições criam regras para reduzir desigualdade

No mês passado, o CNPq editou uma regra que amplia em dois anos, por cada parto ou adoção, no período de produtividade analisado para a concessão de bolsas a pesquisadoras.

Em 2021, o órgão havia passado a permitir que as mulheres possam mencionar a licença-maternidade em seus currículos na plataforma Lattes, a mais respeitada do País. Trata-se de avanço importante porque, até então, as licenças não eram indicadas e apareciam só como um longo período improdutivo, o que pode comprometer o currículo.

Naquele mesmo ano o Estadão mostrou que instituições públicas, como as universidades federais, a exemplo da gaúcha (UFRGS) e a Fluminense (UFF) haviam criado maneiras de compensar os anos dedicados à maternidade.

As ações acontecem basicamente de dois modos: são dados pontos a mais em processos seletivos (editais de concursos, mestrados, doutorados, bolsas) para mulheres que tiveram filhos nos últimos anos ou amplia-se o tempo que a produtividade da cientista mãe passa a ser considerada numa concorrência. Por exemplo, se para uma vaga específica o normal é analisar artigos dos últimos 5 anos, passam a valer 7 anos.

A gestação e a maternidade “atrapalham” a carreira de mulheres nas ciências? O debate ganhou força na última semana com um novo artigo sobre o tema, assinado por uma pesquisadora brasileira na revista Nature, e um comentário polêmico do presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Ricardo Galvão, sobre desigualdades de gênero na academia.

O conselho, órgão do Ministério da Ciência e Tecnologia, afirma que a fala foi tirada de contexto, mas reconhece que o uso do verbo foi “inapropriado”.

Mulheres têm criado movimentos para lutar contra a desigualdade de gênero na carreira científica Foto: Michael Zhang/Adobe Stock

Na pós-graduação stricto sensu (o que inclui mestrados e doutorados), só em duas (Linguística, Letras e Artes; e Ciências da Saúde) das noves grandes áreas do conhecimento as mulheres eram 50% ou mais do corpo de professores em 2021. Nas Ciências Exatas e da Terra e nas Engenharias, a taxa não supera os 25%

Na quarta-feira, 31 a Nature divulgou o artigo “As mães são a força para uma mudança radical na academia”, assinado pela bióloga molecular Fernanda Staniscuaski, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Fernanda coordena o movimento Parent in Science, que se mobiliza para mostrar, por meio de estudos científicos, a desigualdade entre homens e mulheres na carreira acadêmica, sobretudo nas posições de mais prestígio. No artigo, a pesquisadora cita que, nos últimos vinte anos, as mulheres receberam apenas 35% das bolsas de produtividade, as de maior prestígio do CNPq.

No mesmo dia, numa palestra na Unicamp, o presidente do CNPq, Ricardo Galvão, ao responder uma pergunta sobre equidade, afirmou que a “Parent in Science atrapalha muito” porque, segundo ele, a organização “manda o tempo todo requisições ao CNPq para a criação de processos de bolsas separadas para as mulheres e julgamento separado para as mulheres”.

Na mesma resposta, Galvão disse que “as mulheres produtivas não defendem práticas paternalistas”. Na sexta-feira, 2, o CNPq divulgou nota sobre essa manifestação.

“É necessário pontuar que essas são duas palavras (atrapalha muito) pinçadas dentro de uma explanação muito mais ampla sobre a questão de desigualdades, não só de gênero como também de raça, regionalismo e profissão, feita pelo presidente em resposta a uma pergunta interposta pelo organizador da mesa (....). Obviamente, uma conclusão sobre seu posicionamento com relação a essa questão só pode extraída escutando toda sua alocução”, afirma a nota do órgão federal.

“A fala de Galvão deixa clara a visão de muitos na academia, de que a ação afirmativa e cotas são privilégio, não reparação”, diz Fernanda. “E revela que não é algo individual, mas estrutural, enraizado na academia, que adora o discurso do mérito, mas ignora as condições que influenciam as métricas.”

Ana Arnt, do Instituto de Biologia da Unicamp, estava presente no evento e escreveu um artigo sobre o tema para o blog de ciência da universidade. “As mulheres defendem políticas de equidade, não políticas paternalistas. As políticas afirmativas não querem facilitar a entrada de pessoas (na academia), mas promover a igualdade social.”

Na nota, o CNPq sustenta que o presidente “quis deixar claro que, reconhecendo a necessidade plenamente justificável de ações afirmativas na análise da produtividade científica e promoção profissional das pesquisadoras, pessoalmente (e não em nome da Diretoria Executiva do CNPq) é contrário a editais específicos para mulheres, principalmente por respeito à sua capacidade intelectual”. Reconhece, porém, que “o termo atrapalha foi inapropriado e deselegantemente empregado”.

Presidente do CNPq, Ricardo Galvão disse em evento que movimento Parent in Science "atrapalha muito"; órgão fala em frase tirada do contexto Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado

No fim de 2023, o CNPq usou o mesmo verbo, “atrapalhar”, em parecer enviado à cientista social Maria Carlotto, da Universidade Federal do ABC (UFABC), justamente por conta de uma solicitação de bolsa. “O CNPq usou um parecer misógino para recusar a minha bolsa”, disse ela, mãe de duas filhas.

O parecer reconhecia a carreira da pesquisadora, mas ressaltava que ela não poderia receber a bolsa porque não tinha feito pós-doutorado internacional. E concluía dizendo que isso aconteceu porque “provavelmente suas gestações atrapalharam essas iniciativas”. Em nota à imprensa, depois, o CNPq classifica o ocorrido como “triste episódio”.

Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que as mulheres gastam praticamente o dobro do tempo que os homens em afazeres domésticos, mesmo quando têm cargos similares. Isso inclui não apenas o cuidado com os filhos, mas também com idosos e com a casa de forma geral. No isolamento imposto pela pandemia, a situação se agravou.

Pesquisa com mais de três mil acadêmicos pelo Parent in Science e publicada na Frontiers in Psychology em 2021 revelou que no ano anterior apenas 47% das cientistas mulheres com filhos conseguiram submeter os artigos científicos que tinham planejado antes do início da pandemia, ante 76% dos cientistas do sexo masculino.

O número de artigos publicados é condição essencial para a aprovação em editais de projetos de pesquisa e concursos públicos, ou seja, na progressão da carreira.

“Pelas métricas que usamos, ser produtivo é determinado pelo número de publicações e orientações; e a carreira acadêmica não aceita pausas”, afirma Fernanda. “A parentalidade impacta muito mais a carreira das mães do que dos pais, e isso não pode ser reflexo da sua capacidade. Por isso, precisamos discutir o que é ser produtivo, a visão que temos do que é a carreira ideal.”

Instituições criam regras para reduzir desigualdade

No mês passado, o CNPq editou uma regra que amplia em dois anos, por cada parto ou adoção, no período de produtividade analisado para a concessão de bolsas a pesquisadoras.

Em 2021, o órgão havia passado a permitir que as mulheres possam mencionar a licença-maternidade em seus currículos na plataforma Lattes, a mais respeitada do País. Trata-se de avanço importante porque, até então, as licenças não eram indicadas e apareciam só como um longo período improdutivo, o que pode comprometer o currículo.

Naquele mesmo ano o Estadão mostrou que instituições públicas, como as universidades federais, a exemplo da gaúcha (UFRGS) e a Fluminense (UFF) haviam criado maneiras de compensar os anos dedicados à maternidade.

As ações acontecem basicamente de dois modos: são dados pontos a mais em processos seletivos (editais de concursos, mestrados, doutorados, bolsas) para mulheres que tiveram filhos nos últimos anos ou amplia-se o tempo que a produtividade da cientista mãe passa a ser considerada numa concorrência. Por exemplo, se para uma vaga específica o normal é analisar artigos dos últimos 5 anos, passam a valer 7 anos.

A gestação e a maternidade “atrapalham” a carreira de mulheres nas ciências? O debate ganhou força na última semana com um novo artigo sobre o tema, assinado por uma pesquisadora brasileira na revista Nature, e um comentário polêmico do presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Ricardo Galvão, sobre desigualdades de gênero na academia.

O conselho, órgão do Ministério da Ciência e Tecnologia, afirma que a fala foi tirada de contexto, mas reconhece que o uso do verbo foi “inapropriado”.

Mulheres têm criado movimentos para lutar contra a desigualdade de gênero na carreira científica Foto: Michael Zhang/Adobe Stock

Na pós-graduação stricto sensu (o que inclui mestrados e doutorados), só em duas (Linguística, Letras e Artes; e Ciências da Saúde) das noves grandes áreas do conhecimento as mulheres eram 50% ou mais do corpo de professores em 2021. Nas Ciências Exatas e da Terra e nas Engenharias, a taxa não supera os 25%

Na quarta-feira, 31 a Nature divulgou o artigo “As mães são a força para uma mudança radical na academia”, assinado pela bióloga molecular Fernanda Staniscuaski, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Fernanda coordena o movimento Parent in Science, que se mobiliza para mostrar, por meio de estudos científicos, a desigualdade entre homens e mulheres na carreira acadêmica, sobretudo nas posições de mais prestígio. No artigo, a pesquisadora cita que, nos últimos vinte anos, as mulheres receberam apenas 35% das bolsas de produtividade, as de maior prestígio do CNPq.

No mesmo dia, numa palestra na Unicamp, o presidente do CNPq, Ricardo Galvão, ao responder uma pergunta sobre equidade, afirmou que a “Parent in Science atrapalha muito” porque, segundo ele, a organização “manda o tempo todo requisições ao CNPq para a criação de processos de bolsas separadas para as mulheres e julgamento separado para as mulheres”.

Na mesma resposta, Galvão disse que “as mulheres produtivas não defendem práticas paternalistas”. Na sexta-feira, 2, o CNPq divulgou nota sobre essa manifestação.

“É necessário pontuar que essas são duas palavras (atrapalha muito) pinçadas dentro de uma explanação muito mais ampla sobre a questão de desigualdades, não só de gênero como também de raça, regionalismo e profissão, feita pelo presidente em resposta a uma pergunta interposta pelo organizador da mesa (....). Obviamente, uma conclusão sobre seu posicionamento com relação a essa questão só pode extraída escutando toda sua alocução”, afirma a nota do órgão federal.

“A fala de Galvão deixa clara a visão de muitos na academia, de que a ação afirmativa e cotas são privilégio, não reparação”, diz Fernanda. “E revela que não é algo individual, mas estrutural, enraizado na academia, que adora o discurso do mérito, mas ignora as condições que influenciam as métricas.”

Ana Arnt, do Instituto de Biologia da Unicamp, estava presente no evento e escreveu um artigo sobre o tema para o blog de ciência da universidade. “As mulheres defendem políticas de equidade, não políticas paternalistas. As políticas afirmativas não querem facilitar a entrada de pessoas (na academia), mas promover a igualdade social.”

Na nota, o CNPq sustenta que o presidente “quis deixar claro que, reconhecendo a necessidade plenamente justificável de ações afirmativas na análise da produtividade científica e promoção profissional das pesquisadoras, pessoalmente (e não em nome da Diretoria Executiva do CNPq) é contrário a editais específicos para mulheres, principalmente por respeito à sua capacidade intelectual”. Reconhece, porém, que “o termo atrapalha foi inapropriado e deselegantemente empregado”.

Presidente do CNPq, Ricardo Galvão disse em evento que movimento Parent in Science "atrapalha muito"; órgão fala em frase tirada do contexto Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado

No fim de 2023, o CNPq usou o mesmo verbo, “atrapalhar”, em parecer enviado à cientista social Maria Carlotto, da Universidade Federal do ABC (UFABC), justamente por conta de uma solicitação de bolsa. “O CNPq usou um parecer misógino para recusar a minha bolsa”, disse ela, mãe de duas filhas.

O parecer reconhecia a carreira da pesquisadora, mas ressaltava que ela não poderia receber a bolsa porque não tinha feito pós-doutorado internacional. E concluía dizendo que isso aconteceu porque “provavelmente suas gestações atrapalharam essas iniciativas”. Em nota à imprensa, depois, o CNPq classifica o ocorrido como “triste episódio”.

Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que as mulheres gastam praticamente o dobro do tempo que os homens em afazeres domésticos, mesmo quando têm cargos similares. Isso inclui não apenas o cuidado com os filhos, mas também com idosos e com a casa de forma geral. No isolamento imposto pela pandemia, a situação se agravou.

Pesquisa com mais de três mil acadêmicos pelo Parent in Science e publicada na Frontiers in Psychology em 2021 revelou que no ano anterior apenas 47% das cientistas mulheres com filhos conseguiram submeter os artigos científicos que tinham planejado antes do início da pandemia, ante 76% dos cientistas do sexo masculino.

O número de artigos publicados é condição essencial para a aprovação em editais de projetos de pesquisa e concursos públicos, ou seja, na progressão da carreira.

“Pelas métricas que usamos, ser produtivo é determinado pelo número de publicações e orientações; e a carreira acadêmica não aceita pausas”, afirma Fernanda. “A parentalidade impacta muito mais a carreira das mães do que dos pais, e isso não pode ser reflexo da sua capacidade. Por isso, precisamos discutir o que é ser produtivo, a visão que temos do que é a carreira ideal.”

Instituições criam regras para reduzir desigualdade

No mês passado, o CNPq editou uma regra que amplia em dois anos, por cada parto ou adoção, no período de produtividade analisado para a concessão de bolsas a pesquisadoras.

Em 2021, o órgão havia passado a permitir que as mulheres possam mencionar a licença-maternidade em seus currículos na plataforma Lattes, a mais respeitada do País. Trata-se de avanço importante porque, até então, as licenças não eram indicadas e apareciam só como um longo período improdutivo, o que pode comprometer o currículo.

Naquele mesmo ano o Estadão mostrou que instituições públicas, como as universidades federais, a exemplo da gaúcha (UFRGS) e a Fluminense (UFF) haviam criado maneiras de compensar os anos dedicados à maternidade.

As ações acontecem basicamente de dois modos: são dados pontos a mais em processos seletivos (editais de concursos, mestrados, doutorados, bolsas) para mulheres que tiveram filhos nos últimos anos ou amplia-se o tempo que a produtividade da cientista mãe passa a ser considerada numa concorrência. Por exemplo, se para uma vaga específica o normal é analisar artigos dos últimos 5 anos, passam a valer 7 anos.

A gestação e a maternidade “atrapalham” a carreira de mulheres nas ciências? O debate ganhou força na última semana com um novo artigo sobre o tema, assinado por uma pesquisadora brasileira na revista Nature, e um comentário polêmico do presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Ricardo Galvão, sobre desigualdades de gênero na academia.

O conselho, órgão do Ministério da Ciência e Tecnologia, afirma que a fala foi tirada de contexto, mas reconhece que o uso do verbo foi “inapropriado”.

Mulheres têm criado movimentos para lutar contra a desigualdade de gênero na carreira científica Foto: Michael Zhang/Adobe Stock

Na pós-graduação stricto sensu (o que inclui mestrados e doutorados), só em duas (Linguística, Letras e Artes; e Ciências da Saúde) das noves grandes áreas do conhecimento as mulheres eram 50% ou mais do corpo de professores em 2021. Nas Ciências Exatas e da Terra e nas Engenharias, a taxa não supera os 25%

Na quarta-feira, 31 a Nature divulgou o artigo “As mães são a força para uma mudança radical na academia”, assinado pela bióloga molecular Fernanda Staniscuaski, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Fernanda coordena o movimento Parent in Science, que se mobiliza para mostrar, por meio de estudos científicos, a desigualdade entre homens e mulheres na carreira acadêmica, sobretudo nas posições de mais prestígio. No artigo, a pesquisadora cita que, nos últimos vinte anos, as mulheres receberam apenas 35% das bolsas de produtividade, as de maior prestígio do CNPq.

No mesmo dia, numa palestra na Unicamp, o presidente do CNPq, Ricardo Galvão, ao responder uma pergunta sobre equidade, afirmou que a “Parent in Science atrapalha muito” porque, segundo ele, a organização “manda o tempo todo requisições ao CNPq para a criação de processos de bolsas separadas para as mulheres e julgamento separado para as mulheres”.

Na mesma resposta, Galvão disse que “as mulheres produtivas não defendem práticas paternalistas”. Na sexta-feira, 2, o CNPq divulgou nota sobre essa manifestação.

“É necessário pontuar que essas são duas palavras (atrapalha muito) pinçadas dentro de uma explanação muito mais ampla sobre a questão de desigualdades, não só de gênero como também de raça, regionalismo e profissão, feita pelo presidente em resposta a uma pergunta interposta pelo organizador da mesa (....). Obviamente, uma conclusão sobre seu posicionamento com relação a essa questão só pode extraída escutando toda sua alocução”, afirma a nota do órgão federal.

“A fala de Galvão deixa clara a visão de muitos na academia, de que a ação afirmativa e cotas são privilégio, não reparação”, diz Fernanda. “E revela que não é algo individual, mas estrutural, enraizado na academia, que adora o discurso do mérito, mas ignora as condições que influenciam as métricas.”

Ana Arnt, do Instituto de Biologia da Unicamp, estava presente no evento e escreveu um artigo sobre o tema para o blog de ciência da universidade. “As mulheres defendem políticas de equidade, não políticas paternalistas. As políticas afirmativas não querem facilitar a entrada de pessoas (na academia), mas promover a igualdade social.”

Na nota, o CNPq sustenta que o presidente “quis deixar claro que, reconhecendo a necessidade plenamente justificável de ações afirmativas na análise da produtividade científica e promoção profissional das pesquisadoras, pessoalmente (e não em nome da Diretoria Executiva do CNPq) é contrário a editais específicos para mulheres, principalmente por respeito à sua capacidade intelectual”. Reconhece, porém, que “o termo atrapalha foi inapropriado e deselegantemente empregado”.

Presidente do CNPq, Ricardo Galvão disse em evento que movimento Parent in Science "atrapalha muito"; órgão fala em frase tirada do contexto Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado

No fim de 2023, o CNPq usou o mesmo verbo, “atrapalhar”, em parecer enviado à cientista social Maria Carlotto, da Universidade Federal do ABC (UFABC), justamente por conta de uma solicitação de bolsa. “O CNPq usou um parecer misógino para recusar a minha bolsa”, disse ela, mãe de duas filhas.

O parecer reconhecia a carreira da pesquisadora, mas ressaltava que ela não poderia receber a bolsa porque não tinha feito pós-doutorado internacional. E concluía dizendo que isso aconteceu porque “provavelmente suas gestações atrapalharam essas iniciativas”. Em nota à imprensa, depois, o CNPq classifica o ocorrido como “triste episódio”.

Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que as mulheres gastam praticamente o dobro do tempo que os homens em afazeres domésticos, mesmo quando têm cargos similares. Isso inclui não apenas o cuidado com os filhos, mas também com idosos e com a casa de forma geral. No isolamento imposto pela pandemia, a situação se agravou.

Pesquisa com mais de três mil acadêmicos pelo Parent in Science e publicada na Frontiers in Psychology em 2021 revelou que no ano anterior apenas 47% das cientistas mulheres com filhos conseguiram submeter os artigos científicos que tinham planejado antes do início da pandemia, ante 76% dos cientistas do sexo masculino.

O número de artigos publicados é condição essencial para a aprovação em editais de projetos de pesquisa e concursos públicos, ou seja, na progressão da carreira.

“Pelas métricas que usamos, ser produtivo é determinado pelo número de publicações e orientações; e a carreira acadêmica não aceita pausas”, afirma Fernanda. “A parentalidade impacta muito mais a carreira das mães do que dos pais, e isso não pode ser reflexo da sua capacidade. Por isso, precisamos discutir o que é ser produtivo, a visão que temos do que é a carreira ideal.”

Instituições criam regras para reduzir desigualdade

No mês passado, o CNPq editou uma regra que amplia em dois anos, por cada parto ou adoção, no período de produtividade analisado para a concessão de bolsas a pesquisadoras.

Em 2021, o órgão havia passado a permitir que as mulheres possam mencionar a licença-maternidade em seus currículos na plataforma Lattes, a mais respeitada do País. Trata-se de avanço importante porque, até então, as licenças não eram indicadas e apareciam só como um longo período improdutivo, o que pode comprometer o currículo.

Naquele mesmo ano o Estadão mostrou que instituições públicas, como as universidades federais, a exemplo da gaúcha (UFRGS) e a Fluminense (UFF) haviam criado maneiras de compensar os anos dedicados à maternidade.

As ações acontecem basicamente de dois modos: são dados pontos a mais em processos seletivos (editais de concursos, mestrados, doutorados, bolsas) para mulheres que tiveram filhos nos últimos anos ou amplia-se o tempo que a produtividade da cientista mãe passa a ser considerada numa concorrência. Por exemplo, se para uma vaga específica o normal é analisar artigos dos últimos 5 anos, passam a valer 7 anos.

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