Parece roteiro de série de ficção científica, mas já é vida real. A startup Interlune anunciou que quer minerar Helio-3 na Lua já em 2026, de forma experimental e, até 2030, de forma permanente. O anúncio abre uma nova etapa da corrida espacial, a da exploração comercial do satélite e, até mesmo, da transformação da Lua em um polo industrial.
A ideia da empresa é trazer o gás para o nosso planeta, para ser comercializado por aqui.
- O Hélio-3 existe na Terra, porém em pouca quantidade, e é considerado essencial para a futura geração de energia limpa por meio da fusão nuclear.
- No mês passado, a Interlune informou que já havia arrecadado U$ 15 milhões (R$ 75 milhões) para a empreitada.
Embora o valor ainda seja baixo (ao menos em termos de exploração espacial), as implicações são profundas. Até agora todos os negócios anunciados na Lua eram de prestação de serviços para a Agência Espacial Americana, a Nasa, não de geração de riqueza.
“A descoberta de Helio-3 em abundância na Lua inicia uma nova era da exploração espacial, onde há interesse comercial nessas empreitadas, não apenas político e científico como foi a corrida espacial”, afirma o astrofísico João Eduardo Fonseca, ex-diretor do Planetário do Ibirapuera, em São Paulo. “New Space é o termo usado para marcar essa nova era.”
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Criada por dois ex-funcionários da Blue Origin, entre eles o ex-presidente da empresa Rob Meyerson, a startup não tem ainda totalmente desenvolvida a tecnologia para fazer a mineração lunar nem para trazer o gás à Terra. Mas a empresa acredita que neste momento em que vários países miram o retorno à Lua (como Estados Unidos, Índia e Japão) e investem em tecnologia para tanto é hora de pensar nesse tipo de negócio.
“Hélio-3 é o único recurso caro o suficiente para compensar o investimento em mineração na Lua e transporte do material para a Terra”, afirmou Meyerson em entrevista recente, ao justificar sua empreitada. “Já há clientes querendo comprar Hélio-3 hoje.”
- O Hélio-3 é produzido no Sol e lançado no espaço pelos ventos solares.
- O campo magnético da Terra deflete o gás, lançando-o para os polos – onde é possível encontrar a substância, embora em pouca quantidade.
- Como a Lua não tem campo magnético, nem atmosfera, o satélite recebe o gás lançado pelo Sol em quantidade muito maior.
- Estima-se que exista na superfície lunar pelo menos um milhão de toneladas métricas de Hélio-3.
- Um quilo de Hélio-3 seria capaz de iluminar uma cidade como São Paulo por décadas.
Segundo Mayerson, a curto prazo seria possível vender Hélio-3 para a indústria de computação quântica e para exames médicos de imagem. A longo prazo, a ideia é usar o gás como combustível para reatores de fusão nuclear – uma energia limpa buscada por vários cientistas ainda sem sucesso, mas que poderia resolver o problema do aquecimento global.
Além disso, argumenta Mayerson, novos usos devem surgir diante da disponibilidade da substância. Cientistas ouvidos pelo Estadão não estão tão certos dessa viabilidade. Pelo menos não a curto prazo.
“Economicamente falando, acho improvável que a China, os Estados Unidos, a Índia, a Rússia ou uma empresa privada entrem em um foguete, minere Hélio-3 na Lua e tragam de volta para a Terra para produzir eletricidade”, afirmou o físico Gustavo Canal, do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP). “Ainda que seja viável cientificamente, não será economicamente. Não vai ser mais barata que a energia produzida por uma termelétrica na Terra, por exemplo.”
João Eduardo Fonseca concorda com o colega. “A grande dificuldade para a exploração de minérios lunares é o custo de trazer o material do nosso satélite para nosso planeta. Mas a viabilidade está sendo exaustivamente estudada por muitas empresas de diversos países”, diz o astrofísico.
“Embora os custos possam ser elevados para o desenvolvimento inicial da tecnologia, com o tempo seria possível ter uma frota útil para trazer para nós o material”, acrescenta.
Camal aposta na construção de siderúrgicas na Lua para a geração de energia, mas também para a construção de foguetes e naves espaciais por lá.
“A extração é mais fácil e, com a gravidade menor, é possível movimentar grandes massas com mais facilidade”, afirma.
“O foco de muitos países está no polo sul lunar porque é onde há gelo. Com isso, poderíamos ter oxigênio para alimentar recintos fechados. E como temos Hélio-3, ter também uma usina a fusão. Tudo se encaixa para que a Lua vire um polo industrial no futuro. Não estarei vivo para ver isso; minha filha, talvez. Mas meu neto, com certeza”, prevê o cientista.
O astrofísico Alexandre Cherman, vice-presidente da Associação Brasileira de Planetários, aposta ainda na mineração de outros elementos.
“Do ponto de vista econômico, o Hélio-3 está sendo usado como cortina de fumaça”, afirma. “Os metais terras-raras (elementos químicos, normalmente encontrados na natureza no nosso planeta misturados a minérios, mas de difícil extração), que também são abundantes da Lua, são muito mais importantes a curto prazo”, aponta.
A China concentra 90% das reservas de terras-raras da Terra, mas elas não são abundantes. Tudo indica que possam estar esgotadas em duas décadas. Os metais são cruciais para a indústria de eletroeletrônicos.
“A fusão não é algo que usamos ainda, não é um problema de agora. A gente quer fazer, mas não consegue ainda, independentemente da matéria-prima”, lembrou o especialista. “Do ponto de vista da mineração, a Lua é muito mais importante por suas reservas de terras-raras. Por enquanto, a extração ainda é inviável economicamente, mas a medida que o metal começar a rarear na Terra, isso pode mudar.”
Tratado do espaço sideral
Um outro problema se impõe, como lembram os especialistas. A quem pertencem as riquezas eventualmente encontradas na Lua?
Estados Unidos, China e outros 132 países são signatários do Tratado do Espaço Sideral, de 1967, segundo o qual “o espaço, incluindo a Lua e outros corpos celestes, não está sujeito à apropriação nacional por alegação de soberania, de ocupação ou qualquer outra”.
“Será que temos o direito de alterar a paisagem lunar em prol de nossos interesses comerciais e energéticos?, questionou João Fonseca. “O tratado diz que nosso satélite natural não pode pertencer a nenhum país, porém não previa a mineração e isso abre um novo rol de discussões a serem tratadas. Afinal, que Lua queremos deixar para os nosso netos?”