É impressionante que uma novidade morfológica ainda possa ser descoberta no corpo humano. Milhares de anos antes de Cristo os egípcios já abriam os cadáveres. Quinhentos anos atrás Leonardo da Vinci desenhava nossas vísceras. Nos séculos seguintes, anatomistas dissecaram e descreveram cada milímetro cúbico do corpo humano. Hoje, exames de tomografia revelam os detalhes do corpo ainda vivo. E até hoje encontramos variações anatômicas não descritas. Uma delas é o caso de mulheres canhotas sem bulbo olfatório.
Do mesmo modo que a superfície de nossa língua possui receptores que detectam o gosto do que colocamos na boca, a superfície interna do nariz possui receptores que detectam moléculas suspensas no ar. Esses receptores estão na parte superior da cavidade nasal e fazem parte do sistema nervoso. Eles enviam filamentos (axônios) que atravessam o osso que separa a cavidade nasal da cavidade craniana (onde está o cérebro) e se conectam a um pequeno bulbo. Esse bulbo tem a forma de um pequeno cilindro de 8 ou 9 milímetros de comprimento e um volume de 60 milímetros cúbicos.
Quando uma molécula cheirosa entra no nariz, ela se liga a um desses receptores, que enviam um sinal elétrico para o bulbo olfatório. Esse sinal é processado e enviado a outras regiões do cérebro que nos ajudam a identificar o cheiro e tomar as medidas necessárias. Há pessoas que não sentem cheiros e em muitos casos possuem lesões no bulbo olfatório ou outros problemas. Em ratos, se removermos o bulbo olfatório, o animal deixa de sentir cheiro. É por esse motivo que sempre se acreditou que um bulbo olfatório intacto e funcional era indispensável para nosso olfato. Isso até agora.
A nova descoberta ocorreu ao acaso. Cientistas que estudam olfato analisavam imagens de ressonância magnética de pessoas normais quando descobriram que uma mulher saudável de 29 anos que possuía o senso do olfato absolutamente normal não tinha bulbo olfatório. É claro que eles levaram um susto. Afinal, como era possível ela sentir cheiro sem o bulbo? Aí eles perceberam que só examinavam a presença de bulbo olfatório em pessoas que não sentiam cheiro e nunca haviam examinado pessoas normais. Aí começaram a examinar pessoas normais da mesma idade e, surpresa, a nona pessoa examinada, também uma mulher, de 31 anos, possuía o olfato normal e também não tinha bulbo. E mais, podia ser coincidência, mas as duas eram canhotas.
Os cientistas ficaram com a pulga atrás da orelha e resolveram analisar um grupo maior. Eles examinaram ressonâncias magnéticas de 1.113 pessoas normais, sendo 606 mulheres jovens (22 a 35 anos) de um repositório público. Nesse grupo, encontraram mais três mulheres sem os bulbos olfatórios, uma delas também canhota. Mas nenhum homem sem os bulbos. Todas as cinco mulheres foram estudadas cuidadosamente e todas elas não somente possuem olfato normal, mas possuem olfato mais aguçado do que a média.
Com base nesses dados é possível estimar que aproximadamente 0,6% de todas as mulheres não possuem bulbos olfativos e entre as mulheres canhotas essa porcentagem sobe para aproximadamente 4,25%. Como nenhum homem sem bulbo foi encontrado, se eles existem, seu número deve ser bem menor. A conclusão é de que entre seres humanos há uma população de mulheres com olfato melhor do que a média da população e essas mulheres representam 0,6% de todas as mulheres e 4,25% das canhotas. As causas dessa variabilidade e a predominância dessa característica entre mulheres canhotas ainda é um mistério. Mas o interessante é que a simples existência de pessoas com olfato refinado sem bulbo olfatório está fazendo os cientistas questionarem qual exatamente é a função dessa pequena área do cérebro.
Essa é mais uma das inúmeras diferenças que encontramos entre seres humanos normais. Cor de pele, altura, orelha de abano e ausência de bulbo olfatório pertencem à categoria das diferenças individuais. Felizmente, pessoas sem bulbos não podem ser identificadas pela aparência, senão, por causa da nossa tendência à discriminação, seguramente sofreriam na mão dos preconceituosos.
MAIS INFORMAÇÕES: HUMAN OLFACTION WITHOUT APPARENT OLFACTORY BULBS. NEURON, VOL. 105, PÁG. 1 (2020) *É BIÓLOGO