A biologia evolutiva tem poucas pistas sobre os fatos que levaram os ancestrais do ser humano a se tornar bípedes. Mas, da perspectiva da Física, a explicação para essa característica única do homem entre os demais primatas pode estar ligada a outro traço especialmente humano: a perda dos pelos.
A ideia de que a perda dos pelos provocou uma pressão seletiva, levando ao bipedalismo, foi concebida pela física Lia Amaral, docente aposentada do Instituto de Física da USP. Em paralelo a uma carreira brilhante na Física, ela tem estudado apaixonadamente o tema da evolução desde 1975, quando leu o livro A Origem do Homem e a Seleção Sexual, do inglês Charles Darwin. Desde 1985, passou a publicar uma série de artigos em revistas científicas.
“Tornar-se bípede é um esforço evolutivo imenso, que só pode ocorrer por forte pressão seletiva. Quando os ancestrais dos humanos perderam os pelos, os bebês não tinham mais onde se agarrar em suas mães, o que os forçou a abandonar o andar quadrúpede”, afirmou Lia.
De acordo com Lia, todos os parentes mais próximos dos humanos - gibões, orangotangos, gorilas e chimpanzés - carregam filhotes agarrados nos pelos das costas. “Não há bípede peludo, não há quadrúpede pelado. Para uma física, é evidente que há correlação necessária entre nudez e bipedalismo”, disse.
Para comprovar sua hipótese, Lia se valeu de recursos da Física, como uma análise mecânica do processo dos primatas para carregar crias e sua correlação com a variação da densidade de pelos. Ela também fez uma análise teórica do equilíbrio mecânico na locomoção quadrúpede dos gorilas e concluiu que, para que o filhote não escorregue, o ângulo formado pela parte superior do seu corpo durante a locomoção tem de ser, no máximo, de 30°.
“Uma análise da forma como os primatas carregam suas crias, agarradas aos pelos do corpo da mãe, mostra que existem limites para a segurança desse processo, que dependem das propriedades físicas dos pelos”, disse Lia.
Pressão seletiva. O fato de que todos os outros primatas são quadrúpedes e que os grandes símios africanos se locomovem de forma ineficiente em terra, segundo Lia, é uma evidência de que foi preciso uma imensa pressão evolutiva para que os ancestrais humanos deixassem para trás o andar em quatro patas.
"Há importantes restrições ao bipedalismo, que ficam evidentes na análise da reprodução e do parto. A forma de locomoção bípede exigiu mudanças na pélvis, que tiveram efeito no processo obstétrico de reprodução”, explicou.
Segundo Lia, gibões e orangotangos carregam seus filhotes agarrados aos pelos da mãe. Os gorilas e chimpanzés, que utilizam os nós dos dedos das mãos para se apoiar - uma forma de locomoção quadrúpede chamada de knuckle walking - andam em três patas por algum tempo depois do nascimento do flhote. Mais tarde, os filhotes são carregados no dorso da mãe, que volta ao andar quadrúpede.
“Os humanos não têm pelos para as crias se agarrarem. Não havia outra saída de sobrevivência para a espécie a não ser carregar os filhotes nos braços. Isso gerou uma pressão seletiva fortíssima para o andar bípede”, afirmou Lia.
Medidas da Física. Segundo ela, as mudanças na forma de locomoção dependem do peso das crias, da capacidade dos pelos e da pele em suportar a pressão e da capacidade preênsil das crias. Para demonstrar essa hipótese, Lia estudou as propriedades físicas dos pelos a partir de amostras de peles de diversas espécies.
“Demonstrei que as propriedades elásticas dos pelos variam com a espécie de primata e indicam um processo evolutivo associado à segurança no transporte das crias", revelou.
Segundo ela, ninguém havia feito esse tipo de medidas antes. "Sou física e os físicos medem. Quando eles observam um mistério, vão medi-lo. Por isso os grandes mistérios que Física não solucionou são a vida, a mente e a consciência - porque elas carecem de definição precisa e é difícil medi-las", avaliou.
Por outro lado, segundo Lia, outras áreas como a biologia e a peleontologia não se interessaram a fundo pela questão da ausência de pelos nos humanos. O ponto de vista dessas ciências se baseia fundamentalmente em conhecimento anatômico e datações por carbono, mas a nudez da pele não pode ser datada da mesma maneira e não podemos.
"Não podemos saber com certeza quando a nudez da pele ocorreu, porque não pode ser datada. Conseguimos saber quando ocorreu o bipedalismo, mas não se tem ideia do que o causou", disse Lia.
De acordo com ela, dermatologistas que estudaram a pele humana em um contexto evolutivo concluíram que suas alterações surgiram junto com o bipedalismo. Por outro lado, não existe consenso sobre a modificação na forma de andar dos humanos. “O bipedalismo surgiu quando nosso cérebro era ainda pequeno”, disse a professora.
Troca de calor. Mas, se o bipedalismo veio em decorrência da perda dos pelos, o que levou à perda dos pelos? Novamente da perspectiva da Física, Lia estudou a troca de calor do organismo com o ambiente e mostrou que a redução de pelos só poderia ocorrer em animais muito ativos - com alta atividade metabólica -, que precisam jogar calor para fora, num ambiente onde ainda houvesse árvores protegendo-os da radiação solar direta.
"Há hoje um consenso científico de que a evolução biológica inicial dos humanos, com o aparecimento do bipedalismo, ocorreu em ambientes mistos, na borda de florestas, com alimentação à base de vegetais, alguns milhões de anos antes do nosso cérebro aumentar de tamanho", disse a pesquisadora.
Segundo ela, as análies de trocas de calor mostram só há vantagem em perder os pelos quando é preciso colocar calor para fora. "A pele nua é imporatnte para refrigeração. Temos metabolismo alto, ligado com uma vida agitada. Perdemos o pelo e as mulheres precisaram carregar seus bebês. Eu diria que as mulheres deram o bipedalismo de presente aos homens", afirmou.
Publicações. Lia publicou artigos, na revista Journal of Human Evolution, em 1989 e 1996, sobre perda de pelos corporais, bipedalismo e termorregulação do organismo humano. Sua análise mecânica do carregamento de filhotes por primatas foi publicado em 2008 na revista nas revistas , Naturwissenschaften. Uma revisão completa de todo seu trabalho na área evolutiva foi publicada em 2014 na Revista da Biologia. Ela colaborou em 2015 com a equipe liderada por Marcos Duarte, professor de Engenharia Biométida da Universidade Federal do ABC, em artigo publicado na revista Gait & Posture, sobre os efeitos do transporte de bebês na postura da mulher.
Seu próximo artigo, já aceito para publicação na revista Journal of Comparative Human Biology, foi feito em parceria com cientistas do Departamento de Antropologia da Universidade Estadual da Geórgia (Estados Unidos) e trata das proporções das articulações do antebraço em humanos, no hominídeo Australopithecus afarensis e em grandes símios.