O físico Gustavo Madeira, de 29 anos, não imaginava o tamanho da descoberta que faria quando decidiu alterar uma ferramenta computacional que conheceu em um intercâmbio no Instituto de Física Global de Paris, na França. Então doutorando da Universidade Estadual Paulista (Unesp), ele ajudou a solucionar um enigma: o formato e, consequentemente, o processo de formação do asteroide Dimorphos, alvo de missões espaciais pioneiras da Agência Aeroespacial dos Estados Unidos (Nasa) e da Agência Espacial Europeia (ESA) sobre defesa planetária contra colisão de corpos celestes.
Especialista em formação de satélites, Madeira estava estudando um sistema de Marte em sua passagem pela Europa. A ideia era colaborar para uma missão da Agência Japonesa de Exploração Espacial (Jaxa), que pretende enviar equipamentos para investigar Fobos, uma das luas do planeta vermelho, em 2024. Foi então que ele cogitou utilizar uma ferramenta computacional desenvolvida em 2010 pelo professor francês Sébastien Charnoz e recém-conhecida pelo brasileiro. Ele queria tentar entender melhor a formação do sistema ao qual o asteroide Dimorphos, que fica a 11 milhões de quilômetros da Terra, faz parte.
“É uma ferramenta de uso pessoal (utilizada somente por Madeira e Charnoz, que agora é orientador de pós-doutorado do brasileiro em Paris). Ela foi feita para o sistema de Saturno, então, as escalas são diferentes, porque os tamanhos dos satélites de Saturno são muito maiores do que o próprio Didymos (asteroide de 780 metros de diâmetro que deu origem e é orbitado por Dimorphos, de 163 metros)”, explica. “Tive de adaptá-la para conseguir utilizá-la em um sistema menor.”
O Dimorphos foi destino de uma missão recente da Nasa, chamada DART. No ano passado, teve seu período de órbita alterado em 33 minutos por um choque de colisão criado artificialmente pela agência, o que foi considerado pela comunidade científica um sucesso. O objetivo da agência americana, junto à ESA, é desenvolver uma tecnologia capaz de deslocar corpos celestes, evitando que eles se choquem com a Terra e, assim, protegendo o planeta de possíveis danos fatais. A próxima missão, que deve ser enviada no ano que vem pela ESA, se chama Hera e pretende colher material de Dimorphos para mais estudos.
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O desconhecimento do formato do asteroide e, com isso, de suas principais características materiais, como porosidade e nível de resistência, era um desafio para as missões.
O planejamento quanto à melhor região do asteroide para promover o impacto, por exemplo, era impossível. E foi por isso que o trabalho de Madeira foi reconhecido internacionalmente. Ele colaborou com a Nasa na conclusão da missão recém-finalizada e, agora, tem trabalhado junto à ESA na parte de análise de dados.
Qual é o formato de Dimorphos?
Após ajustar a escala e outros padrões de medição da ferramenta computacional francesa, tendo em vista as especificidades do asteroide (diferente da de Saturno, a sua órbita não é fluida), o cientista conseguiu incluir a medição da força das partículas do anel de Didymos – entre elas, Dimorphos.
“Isso me permitiu calcular velocidade de impacto (entre Didymos e outro corpo celeste, no processo de formação de Dimorphos), que é uma coisa que não existia anteriormente na ferramenta”, diz Madeira. “Foi essa velocidade de impacto que nos levou a chegar à conclusão dos impactos que geram o formato de Dimorphos.”
Ele e Charnoz cruzaram conhecimentos teóricos prévios sobre formação de satélites com os dados de velocidade obtidos pela ferramenta e criaram duas suposições para o formato do Dimorphos: prolato, alongado, como um quibe, ou oblato, achatado, semelhante a um chocolate M&Ms. Depois, com as primeiras fotos divulgadas pela missão DART, foi possível confirmar o segundo formato. A forma dependia de fatores relacionados ao processo de formação do Dimorphos, difíceis de definir com exatidão.
“Nós não esperávamos”, diz Madeira. Como a maioria dos cientistas, ele e seu orientador também imaginava que o formato do Dimorphos seria mais alongado. Segundo ele, a expectativa era que aquele seria um artigo simples, de apresentação de hipóteses, mas acabou mudando seu patamar como pesquisador. O artigo chegou até a Nasa, o trazendo importante reconhecimento e experiência internacional. Também colaborou para que ele fosse convidado por Charnoz para o pós-doutorado.
“Isso abre um leque para muitos outros trabalhos que devem perseguir na linha deste, principalmente estudando sobre como é a estrutura interna desse e de outros asteroides”, diz Othon Cabo Winter, professor coordenador do Departamento de Matemática, Faculdade de Engenharia e Ciências da Unesp Guaratinguetá. “É mais um exemplo de que aqui, no Brasil, a gente tem pessoal qualificado na área científica, mas faltam recursos, equipamentos.”
Segundo Madeira, outros asteroides conhecidos possuem o mesmo formato, como o Ryugu, que teve amostras colhidas pela sonda espacial japonesa Hayabusa2 em 2019, e o Dinknesh, situado entre as órbitas de Marte e Júpiter e sobrevoado este ano pela espaçonave Lucy, da Nasa.
Entenda a descoberta
Sabendo que o formato Didymos é semelhante a um diamante, Madeira e Charnoz assumiram que este asteroide maior sofria avalanches com certa periodicidade – ao receber colisões, ele ejetaria partículas e seria, aos poucos, lapidado. A ideia é que essas partículas formariam, em primeiro momento, um cinturão de pequenos asteroides próximo ao Didymos. Depois, com o tempo, essas partículas ejetadas se aglutinariam e formariam o que hoje é o Dimorphos. “Esse é um fenômeno já conhecido na literatura”, diz Madeira.
O efeito, chamado Yarkovsky–O’Keefe–Radzievskii–Paddack (YORP), acelera a rotação de pequenos corpos, como asteroides, devido a sua interação com o Sol, diz Winter. Após algum tempo de aceleração, a velocidade se torna tão elevada que ocorre uma avalanche do material que forma o asteroide. Uma parte desses detritos se conecta de novo ao Didymos, mas o material que não retorna à superfície do asteroide principal forma outros asteroides, como Dimorphos.
“O estudo explica que a forma que a matéria sai do corpo principal, se ela sai mais rápido ou mais lentamente, ou se sai em maior ou menor tamanho, é o que forma o formato do asteroide. A partir disso, conseguimos prever como ele é por dentro e, então, saber a melhor forma de desviá-lo”, afirma Winter.
Brasil na astronomia internacional
De acordo com o professor da Unesp, a descoberta promovida pelo cientista brasileiro e a participação dele nas missões da Nasa e da ESA provam que a ciência brasileira tem capacidade de participar de missões espaciais. No entanto, o problema é um grande conhecido da academia não só nesta área de conhecimento, mas também em outras: a orçamento limitado.
“Não estamos falando de recursos absurdos. Com um recurso relativamente pequeno, para uma missão cara, conseguiríamos participar. O Japão, por exemplo, participa dessas missões. A gente já recebe convites”, diz, lamentando que muitos bons pesquisadores, como Madeira, acabam migrando para o exterior após o doutorado por falta de oportunidade de crescimento no País.
“No Brasil, eu só conseguiria continuar minha carreira me tornando professor universitário. Teria que fazer concurso para isso e dividir meu tempo de pesquisa com as funções administrativas, de docência. Aqui (na França), consigo me estabelecer como um cientista, de fato”, diz Madeira.
O Brasil já fez uma tentativa de colocar um foguete em órbita em 2003, no Centro de Lançamentos de Alcântara, no Maranhão. No entanto, a missão falhou e um incêndio de grandes proporções tirou a vida de 21 pessoas – entre elas, alguns dos principais nomes da ciência aeroespacial brasileira.
O Brasil prometeu manter o plano de colocar um foguete nacional em órbita, mas até hoje a previsão não se cumpriu. Confira o podcast do Estadão sobre o desastre de Alcântara, que traz também previsões sobre o futuro do Brasil na astronomia: