THE WASHINGTON POST - No fundo de uma cratera rasa em Marte, o rover Perseverance da Nasa (Agência Aeroespacial dos Estados Unidos) atingiu o que os cientistas esperam ser uma recompensa. As rochas marcianas escavadas pelo rover mostram sinais de um passado aquoso e estão cheias do tipo de molécula orgânica que constitui a base da vida como a conhecemos.
Os cientistas que colaboram na missão também dizem que as amostras de rochas, que o rover guardou em tubos para um futuro retorno à Terra, têm a receita química certa para preservar evidências da antiga vida marciana – se é que já existiu vida em Marte.
A nova pesquisa do Perseverance está detalhada em três extensos estudos publicados na quarta-feira, um na revista Science e dois na revista Science Advances. Os textos são altamente técnicos, mas os cientistas envolvidos os traduzem como uma história mais emocionante.
“É incrível. Encontramos compostos orgânicos em praticamente todas as rochas”, disse Abigail Allwood, geóloga do Laboratório de Propulsão a Jato da Nasa em Pasadena, que opera o rover e a missão de retorno de amostras.
Um dos estudos concluiu que as rochas da cratera passaram por três eventos diferentes em que foram expostas à água.
“Crucialmente, as condições nas rochas durante cada vez que a água passou por elas podem ter sustentado pequenas comunidades de microrganismos”, disse Michael Tice, geólogo da Texas A&M University e principal autor do estudo, por e-mail. Em uma entrevista subsequente, ele acrescentou: “Não saberemos ao certo até trazermos as amostras de volta à Terra”.
O Perseverance aterrissou na Cratera Jezero em 18 de fevereiro de 2021 e a tem vasculhado desde então, armazenando amostras de rochas para posterior escrutínio na Terra. É uma missão ambiciosa e multifásica que exigirá que a Nasa envie à superfície de Marte outro veículo capaz de lançar amostras em órbita. Uma espaçonave então traria essas amostras de volta à Terra para pesquisas de laboratório. O cronograma preciso ainda não foi determinado, mas a Nasa espera ter as amostras em casa no início de 2030.
Esse estudo de Marte faz parte da eflorescência do jovem campo da astrobiologia, que inclui a busca de mundos potencialmente habitáveis e o primeiro exemplo de vida extraterrestre. Apesar dos esforços de gerações de cientistas – e das alegações dos aficionados por OVNIs –, a descoberta de vida além da Terra continua sendo uma aspiração.
Mesmo encontrar compostos orgânicos – moléculas propícias à geração de vida, com combinações de carbono, hidrogênio e oxigênio – não significa descobrir vida ou mesmo provar sua presença no passado. Tais moléculas podem ter origem biológica ou não biológica.
Ainda assim, Marte está na frente e no centro da busca da Nasa, porque tem muitas características favoráveis. Marte provavelmente era muito mais parecido com a Terra cerca de 3 bilhões de anos atrás, com condições mais quentes e úmidas. A vida pode ter existido na Terra e em Marte simultaneamente e é possível que tenha se originado em Marte e saltado para a Terra por meio de meteoritos. E embora sua superfície agora seja um deserto árido, o planeta pode ter água líquida em quantidades significativas abaixo da superfície e, possivelmente, vestígios de vida.
Embora o rover Perseverance não tenha instrumentos para detectar quimicamente organismos vivos – se é que eles existem hoje –, seus instrumentos dão aos cientistas a capacidade de estudar a superfície marciana em um nível de detalhes antes impossível.
Um dos novos artigos que examinam mais de perto a química de Marte trouxe uma surpresa para os geólogos. Eles achavam que iriam desenterrar um monte de rochas sedimentares. Mas as rochas são vulcânicas.
A Cratera Jezero se formou em um evento de impacto – uma rocha batendo em Marte – pelo menos 3,5 bilhões de anos atrás. A cratera rasa claramente tinha água no passado remoto. Isso pode ser determinado a partir de imagens orbitais que mostram os restos de um delta onde um rio desaguava no lago. Os geólogos planetários supunham que o fundo da cratera estivesse coberto de rocha sedimentar, formada por sujeira e detritos que se acumulavam lentamente no fundo do lago.
Se tais rochas sedimentares já existiram, agora desapareceram. Talvez tenham sido desgastadas, disse Tice. A falta de rocha sedimentar talvez signifique que o lago não durou muito, o que seria decepcionante para os astrobiólogos. A vida como a conhecemos precisa de água, e leva tempo para que formas de vida mais complexas evoluam. Se o lago não durou muito, ficou mais difícil para a vida criar raízes.
As rochas vulcânicas não são uma decepção, porque preservam muitas informações sobre o passado marciano, até mesmo a presença de moléculas orgânicas, disseram os cientistas. A presença de material orgânico em Marte havia sido confirmada em missões anteriores, mas sua natureza e química precisas não podem ser discernidas por esse tipo de pesquisa de longa distância e exigirão escrutínio laboratorial na Terra, de acordo com Bethany Ehlmann, cientista planetária da Caltech e coautora de dois dos novos artigos.
“Será que são apenas materiais orgânicos que meio que entraram no sistema – talvez vindos de meteoros? Isso seria o menos emocionante. Ou será que são pequenos nichos de vida microbiana vivendo nas cavidades dessas rochas? Isso seria o mais emocionante”, disse Ehlmann.
Ela acrescentou que o rover “está coletando um conjunto incrível de amostras para revelar a história ambiental de Marte em todas as suas formas: a história vulcânica, a história da água, a relação dos orgânicos com esses ambientes ricos em água”.
Tudo isso é uma tentativa de resolver o mistério fundamental de Marte: o que deu errado? Como, quando e por que esse planeta que aparentemente era propício à vida se transformou em um lugar tão hostil? O Planeta Vermelho talvez não seja um planeta morto – o relatório do legista está incompleto – mas certamente parece morto.
Os cientistas apontam para algo que falta a Marte hoje: um campo magnético global como o da Terra. Esse campo protege nossa atmosfera dos efeitos corrosivos do vento solar – partículas de alta energia que fluem constantemente do sol e podem varrer moléculas mais leves. Marte também carece de placas tectônicas, o processo geológico que na Terra recicla a crosta e continua a expelir água e lavas ricas em nutrientes por meio de vulcões ativos.
Em algum lugar ao longo do caminho, o campo magnético de Marte morreu, e então o planeta ficou muito diferente. Perdeu quase toda a atmosfera. Virou um mundo desértico. A rapidez com que isso aconteceu é desconhecida, mas é algo que pode ser revelado pelas rochas vulcânicas na cratera.
O magma contém uma certa quantidade de ferro, que é sensível ao magnetismo de um planeta. À medida que a lava esfria, ela se cristaliza em rocha ígnea, congelando elétrons dentro de minerais contendo ferro em padrões que podem revelar as características de um campo magnético, como sua orientação.
Benjamin Weiss, cientista planetário do MIT e coautor de dois dos artigos, disse por e-mail: “Temos muita sorte de haver rochas ígneas na cratera e de termos pousado bem em cima delas, porque são ideais para determinar eras e estudar a história passada do campo magnético de Marte”.
Quando a missão puder enviar sua preciosa coleção de rochas de volta à Terra, os cientistas poderão finalmente dizer se a vida já encontrou um ponto de apoio em Marte – o que levantaria novas questões sobre se a vida conseguiu perseverar, apesar da dramática transformação do planeta./TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU