Paula Fábrio soube colocar seu surpreendente romance de estreia, Desnorteio, num ponto oscilante e preciso entre a narrativa tradicional e a experimentação estética. É uma estratégia inteligente para renovar o interesse pela literatura a partir de temas surrados – um desafio considerável. O romance conta a história de uma família que gira em torno de si mesma, num remoinho descendente. Tudo parece decorrer de uma programação que aniquila a tudo e a todos. A obra traz a trajetória de três irmãos que se tornam mendigos e venceu o Prêmio São Paulo de Literatura na categoria de autor estreante.
Há um jogo especular manobrado com habilidade pela autora, capaz de se reproduzir numa cadeia de ilusões e emoções provadas ao longo do romance, em que as personagens estão no limite entre o humano e o ganido nem sempre emitido. Não há como ficar indiferente diante da intensidade dramática do banal.
Poderia ser uma parábola pretensamente solta, mas a sensibilidade da autora não quis assim. A dimensão histórica inevitável é dada no choque entre os “valores” da classe média urbana, da capital, e a miséria abjeta num canto de cidade interiorana, pois não passam das duas faces da mesma moeda. O romance expõe a quebra dos sonhos impostos por milagres econômicos travestidos em mercadoria como a metáfora redutora das aspirações e realizações sustentadas pela mídia. A reiteração infinita de valores e engodos surge no seu lado oposto, de maneira concentrada, nas figuras e seus gestos de bonecos, com uma diferença fundamental entre fantoches e personagens: elas são presumivelmente carne e osso.
O romance situa-se em sua maior parte numa cidade do interior paulista com entradas na capital. O impacto cresce na medida em que se percebe o contraste entre o cenário de mesmice e as personagens que se movem desajeitadas, sempre sobrando, sofridas e furiosas – o desnorteio configura o real. Reagem como bichos feridos. As personagens de Fábrio sonham como as galinhas voam, e nesse curto voo realizam e esgotam o que se convencionou chamar de humanidade. Elas agonizam perplexas.
No final – a situação histórica, marco do romance – teríamos a classe média urbana pós-mistifórios político-monetários sendo forçada a assumir seu lugar entre os, se me permitem, “desclassificados”. Há um detalhe que intriga. As últimas linhas podem ser vistas como resultado da arquitetura do romance, mas deixam no ar a dúvida diante do que se insinua como um possível sinal de que a redenção via perdão seja possível. Seria uma intervenção supérflua no fluxo fervilhante da narrativa, ou apenas mais um viés ideológico destinado a envolver as personagens e a provocar a inquietação do leitor? Pelo sim pelo não, não diminui o potencial da autora cuja estreia deve ser vista como revelação.
DesnorteioAutora: Paula FábrioEditora: Patuá (140 págs., R$ 35)
MOACIR AMÂNCIO É POETA E PROFESSOR DE LITERATURA HEBRAICA NA USP