“O desejo de morte e o de vida convivem em nosso interior. A morte é o par natural do amor. Juntos, governam o mundo.” Em entrevista concedida em 1930, um Freud aforismático, adoecido e em tom de despedida da vida, comenta com serenidade a recusa da imortalidade. A morte, trazida por ele ao âmbito do desejo humano, é um forte e controverso marco na doutrina psicanalítica, tendo sido mais explicitamente teorizada na década de 1920, sob efeito do pós-guerra. E onde podemos encontrar os rastros do amor em sua obra?
Certamente na origem, no desenvolvimento e nas produções derradeiras. Quer seja o amor edípico, quer seja na transferência ou na perversão, o amor é eixo onipresente na herança freudiana. Não à toa conquistou o estatuto de verbete pelas mãos da historiadora, psicanalista e professora da Universidade de Paris VII Elisabeth Roudinesco em seu Dicionário Amoroso da Psicanálise (Zahar).
O atributo amoroso da publicação a destaca dentre os habituais livros radiográficos de uma língua ou área do conhecimento – inclusive do que ela publicou com Michel Plon, em 1997. Desta vez, o afeto, a pesquisa e a curiosidade definem o critério. “A escolha dos verbetes é caracterizada pela livre associação. Não é um dicionário científico, mas sim feito na primeira pessoa; é um exercício literário que permite uma perambulação e em que privilegio o que gosto”, explica em entrevista ao Aliás.
Assim como o faz com o mundo, nas palavras de Freud, o amor governa os entendimentos e a transmissão de um saber propostos pela intelectual francesa. Pois é por sua subjetividade, somada ao compromisso com a História, que conhecemos percursos do movimento psicanalítico, suas dispersões e agrupamentos, comentários sobre conceitos como o da angústia e do narcisismo e entrelaçamentos da psicanálise à cultura. Em suma, uma obra que renuncia à ilusão da homogeneização do conhecimento e que elogia a pluralidade.
Liberdades conceituais assumidas, nada melhor que um dicionário amoroso para esclarecer os frequentes não ditos da psicanálise. Se hoje, nas redes sociais, vemos atribuídas a Clarice Lispector frases que nem cruzaram seu pensamento, houve o tempo em que Lacan e Freud se revezavam nas assinaturas improcedentes. A tal “peste” que Freud levara aos EUA na companhia de Sandor Ferenczi e Carl Gustav Jung, em 1909, bem, nunca existiu. “Ele apenas murmurou: ‘Se ao menos eles soubessem o que estamos lhes trazendo...’”, explica Roudinesco no interessante verbete Apócrifos e Boatos.
A verificação de fatos que derruba lendas e instaura uma verdade não tão emocionante é a mesma que constrói memórias de encantamento, como podemos acompanhar em Washington, a entrada que ela dedica à sua visita aos Sigmund Freud Archives. Trata-se de uma cuidadosa compilação de registros originais freudianos e também de psicanalistas dispersados pela 2ª. Guerra Mundial, finalmente disponível aos pesquisadores na Biblioteca do Congresso dos EUA. Washington, mais uma vez, reafirma sua condição de centro de poder, desta vez no que tange ao inventário físico de uma das mais impactantes doutrinas do século 20.
Categorizada por Roudinesco como um fenômeno urbano, a psicanálise reconfigura as cidades nas quais se instala, promovendo a reunião de profissionais, a criação de escolas de formação e também a circulação dos questionamentos que revelam os sujeitos divididos que somos. As viagens a localidades onde há presença psicanalítica permitiram à autora apresentar no dicionário uma geografia singular da disciplina, com os matizes próprios e reconhecíveis de Berlim, Zurique e Buenos Aires, para citar alguns exemplos. Cidades Brasileiras, por sua vez, constituem um verbete, no qual a autora desfia sua admiração pelo ecletismo do pensamento psicanalítico observado nos profissionais, “fundado nas relações horizontais entre os membros do grupo em vez de na submissão a uma chefia”.
Ainda sobre paisagens brasileiras, a autora é signatária da opinião otimista que o pensador austríaco Stefan Zweig, que morou em Petrópolis (RJ) na década de 1940, tinha sobre como os brasileiros conciliam as diferenças de raças, classes, crenças, tons de pele e religiões. “Nenhum país do mundo resolveu isso de uma maneira mais auspiciosa do que o Brasil. E o resolveu de uma maneira que, na minha opinião, merece não só a atenção, como a admiração do mundo”, nas palavras do escritor.
O Brasil de 2019, porém, parece urgir por uma ressalva no olhar terno de Zweig e Roudinesco, uma vez que diferenças no campo da sexualidade foram motivo de censura no Rio de Janeiro em setembro: uma publicação que trazia um beijo entre dois personagens homens quase foi recolhida por autoridades durante a Bienal do Livro e a medida encontrou apoio de parte da população. É recente o entendimento jurídico generalizado sobre a homofobia e a transfobia no país. Neste mesmo ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que é crime a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero. Também em setembro, o presidente Jair Bolsonaro pediu ao Ministério da Educação que elaborasse um projeto de lei para proibir “ideologia de gênero” no ensino fundamental. “Acho que a homossexualidade incomoda cada vez menos pessoas, especialmente no Ocidente. Na maioria dos países, os homossexuais já conseguem se casar. Por outro lado, perturbam o senhor Bolsonaro, homem de extrema direita e hostil aos homossexuais”, afirma Roudinesco. “Um misógino, que insultou Brigitte Macron e que deixa queimar a Amazônia. Ele pode ter sido eleito democraticamente, mas é o pior líder que o Brasil pode ter.”
A propósito, líderes políticos não escapam ao escrutínio no dicionário. Há verbetes próprios, como os de Napoleão Bonaparte e Adolf Hitler, e análises de Thomas Woodrow Wilson e Donald Trump sob o guarda-chuva Presidentes Americanos.
Da loucura institucionalizada às neuroses mais mundanas, os diversos tipos de sofrimento psíquico são contemplados na publicação, com pontuações tanto históricas quanto críticas de como a sociedade ocidental tem se disposto a tratar dos problemas da alma. Ao se debruçar sobre a psiquiatria, Roudinesco relembra o caminhar paralelo mantido com a psicanálise até o século 20. Ao fim daquela época, os rumos progressivamente biológicos que a psiquiatria foi assumindo e a primazia das soluções da indústria farmacêutica culminaram em uma espécie de queda de braço em que a abordagem escolhida pressupõe o apagamento da outra. “Sou a favor dos medicamentos, principalmente para depressão e psicose. Eles têm um efeito real, permitem que as pessoas conversem. Em outras palavras, os psicanalistas não devem ser hostis a medicamentos psiquiátricos, e os psiquiatras não devem ser hostis à terapia da fala.”
Se hoje as neurociências parecem ocupar uma aliança que antes era mantida com a psicanálise, cabe a pergunta sobre a relevância desfrutada pela ciência do inconsciente no mundo contemporâneo. O tema já havia protagonizado um livro da autora, Por que a Psicanálise? (Zahar) e agora no recente O Inconsciente Explicado Ao Meu Neto (Unesp); não obstante, os acréscimos encontrados no dicionário reforçam a atualidade dinâmica da questão e os desafios que se apresentam cotidianamente, como a demanda por marcadores biológicos na saúde mental e a imposição de tratamentos de curto prazo.
“Hoje a psicanálise não encontra resistências, mas críticas de várias ordens, principalmente porque há uma multiplicidade de terapias. Há ataques contra sua eficácia, e também porque os psicanalistas não conseguiram defendê-la, apoiá-la, na Europa. Do ponto de vista clínico, a psicanálise está em recessão, principalmente nos EUA e na Europa, mas não nos países da América Latina.” A obra de Freud representa um paradoxo que demonstra a separação entre criador e criatura: após intensas críticas nos EUA, hoje ela é reconhecida em todo o mundo. “O trabalho dele foi traduzido para 17 idiomas, inclusive em países onde não há psicanálise, caso da China e de países árabes. Assim, Freud tornou-se um pensador universal, de importância capital, independentemente da psicanálise.”
Uma crítica persistente em todo o mundo é a da elitização dos tratamentos psicanalíticos. No verbete Dinheiro, as articulações entre tratamento e custo nos tempos de Freud e Lacan mostram que estão longe de configurar uma regra ou qualquer tipo de unanimidade nas definições. Em resposta, uma nova oferta desponta em clínicas individuais e coletivas, baseada em pagamentos simbólicos ou até gratuitos. “Sempre houve isso. É possível integrar perfeitamente a prática da psicanálise em instituições onde os pacientes são tratados de graça, principalmente crianças e psicóticos. Não existe apenas um modelo de prática analítica, da cura clássica com o divã e a poltrona; há também uma psicanálise social.”
Em meio a práticas dogmáticas ou à total flexibilização da técnica, certas perguntas, suscitadas pelo fazer psicanalítico no século 21, emergem de maneira ainda mais enfática. Na ambientação tecnológica em que vivemos, os encontros se dão também na virtualidade. Isso vale também para o tratamento psicanalítico? “Não se deve ser hostil ao Skype. Há casos em que é necessário, no mundo moderno onde as pessoas viajam. Mas primeiro deve ter havido um encontro entre o psicanalista e o paciente, ou seja, o uso não deve ser sistemático.”
*AMANDA MONT'ALVÃO VELOSO É PSICANALISTA, JORNALISTA E MESTRANDA EM LINGUÍSTICA APLICADA PELA PUC-SP