Do ponto de vista das narrativas correntes sobre a história da historiografia, O Outono da Idade Média pode parecer um livro extemporâneo. Na mesma época em que Lucien Febvre e Marc Bloch davam os primeiros passos na direção de uma escrita da história altamente analítica e sociologizante, o historiador holandês Johan Huizinga (1872-1945) publicava um livro que, portando o título ambicioso de Estudo sobre as Formas de Vida e Pensamento dos Séculos 14 e 15 na França e nos Países Baixos, se vale de métodos fundamentalmente intensivos de interpretação histórica – há, é claro, muitas fontes, mas as realmente decisivas, basicamente cronistas e poetas, além de alguns artistas plásticos e místicos cristãos, são relativamente poucas – não diferentes, no essencial, do tipo de pesquisa praticado na historiografia de língua alemã de meados do século 19.
A despeito da ostensiva polêmica do autor contra a tese de Jacob Burckhardt de uma ruptura nitidamente marcada entre os quadros mentais do Renascimento e aqueles da Idade Média, estamos, neste livro de 1919, mais próximos da Cultura do Renascimento (1860) do que de Os Reis Taumaturgos (1924). Para certa sensibilidade progressista da história da ciência histórica, ainda mais desconcertante será, talvez, a insistência do autor na noção de “forma histórica” – de clara filiação às reflexões seminais de Wilhelm von Humboldt sobre a história, surgidas no início do século 19. Para Huizinga, seguindo Humboldt, a tarefa do historiador era a de compor, com o necessário auxílio da fantasia literária, uma narrativa que distinguisse, nos fenômenos do passado, a sua forma, dando aos eventos uma inteligibilidade incitada por estímulos estéticos. Aí não faltarão, portanto, a elaboração de imagens vivas, o traço largo, e mesmo o deliberado exagero.
A Idade Média de Huizinga é, ela própria, uma época do exagero – da ostentação do esplendor, do constante desespero da morte, do êxtase na experiência mística, do erotismo ingênuo codificado no romance de cavalaria. Um tempo em que a vida tinha, como diz o belo título do capítulo inicial da obra, uma veemência que a mente moderna hiperestimulada tem dificuldade em compreender. O dobrar dos sinos das igrejas organiza uma vida que, mesmo nas cidades, tende a ser escassamente povoada de eventos notáveis. Descrições das penas infernais num sermão levam homens e mulheres ao chão, confessando pecados enquanto se contorcem. Diante do anúncio de que certo pregador partirá, todos, dos nobres aos mais humildes, choram “tão penosa e sofridamente como se viessem enterrar os seus melhores amigos”. O medo e a insegurança são as sensações dominantes da vida num mundo que é, nas palavras do autor, mau. “O tom da vida”, diz Huizinga, era o de uma “maré da mortal negação da vida”.
E, no entanto, a vida germina e se estiliza numa profusão de formas. A apreensão da forma histórica é o método do historiador, e, talvez por coincidência, o formalismo é o princípio construtivo da vida no violento mundo medieval. O significado da forma na realidade e no método historiográfico não é, contudo, o mesmo. O fundamento do formalismo e da propensão do mundo medieval ao pensamento alegórico é “o idealismo arquitetônico que a Idade Média chamava de realismo”. Consoante à filosofia escolástica então dominante, cada noção, cada elemento da vida é isolado e lhe é conferida a dignidade de uma entidade de contornos definidos, inserida na hierarquia do sistema divino das coisas, redundando num modo de pensar simbólico – e não causal-genético.
A conversão de todo o pensamento em imagens, em prejuízo de certo senso de harmonia e totalidade que surgirá com o Renascimento, cobra o preço de suprimir as formas de expressão que não apelam para os sentidos – mesmo a vida religiosa é sensualizada. Para a mente medieval, diz Huizinga a certa altura, todo ouro que possa existir há de ter sido cunhado em moedas. Cada valor ou desvalor tem seu emblema individual, inserido num grande esquema hierárquico. “Surge uma nobre e sublime imagem do mundo como uma grande conexão simbólica, uma catedral de ideias, a mais rica expressão rítmica e polifônica de tudo o que é imaginável”. Sublime, e não necessariamente bela: na mística cristã, semelhante ordem mental das coisas poderá redundar no grotesco, como nas engenhosidades de que Jan van Ruysbroeck se socorre para imaginar a relação entre Cristo e o crente. Cristo é um “glutão ávido” com uma “fome insaciável” de almas. “Primeiro ele prepara sua refeição”, queimando pecados e defeitos, e “quando já estamos purificados e assados no fogo do amor, ele abre sua boca como um ser voraz que quer engolir tudo”. Nas artes plásticas, a beleza se confunde com o mero esplendor, e o belo se confunde com o meramente luxuoso, dando margem a representações artísticas que, para o olhar moderno, adquirem o aspecto do kitsch.
O formalismo mental, o simbolismo expressivo e a estilização generalizada são os veículos do princípio afirmativo da vida, que perpassa todo o livro na forma de um conceito que Huizinga denomina, num momento de mestria literária, o “anseio por uma vida mais bela”. O homem medieval crê na iminência do fim do mundo – e, por consequência, na sua senectude ou, se preferirmos, sua outonalidade, neologismo que traduziria mais literalmente o “outono” no título do livro – mas isso direciona suas energias vitais para a criação de uma vida bela idealizada. A forma-mestra desse anseio é o ideal cavaleiresco, com seus sonhos de heroísmo e amor. O proceder cortês do cavaleiro, a fidelidade férrea aos votos, sua ilimitada disposição em servir a um amor que possivelmente nunca se consumará são o filtro formal das aspirações éticas e eróticas do tempo, e servirão de molde às mais variadas manifestações da época, que podem reverberar até os nossos dias – Huizinga identifica nas “prendas” que o cavaleiro paga a sua amada a origem de jogos infantis modernos.
Aqui chegamos, talvez, ao princípio metodológico mais fecundo do Outono. Na esteira da antropologia que Friedrich Schiller delineou, ainda no final do século 18, nas suas cartas sobre a educação estética do homem – mais um componente “arcaico” da urdidura teórica do livro – Huizinga vê na tendência ao jogo, ao faz de conta da criança que brinca, o impulso formativo da vida medieval. Quando se joga (ou “atua”, como no teatro), vida e forma se unem, dando à vida informe o aspecto formado (e regrado) que têm, como os jogos, as obras de arte. Jogo e arte estão na origem das formas especificamente humanas de vida e pensamento. A cultura medieval ganha forma numa “grande arte de viver”. Arte e vida ainda não se separaram, e a arte está a serviço da vida; sua missão é enfeitá-la, realizando visualmente o jogo de faz de conta de uma vida, a vida mais bela possível.
Compreende-se melhor, assim, a afirmação algo irônica que Huizinga faz no prefácio, de que seu grande livro de história medieval, predominantemente dedicado à análise de textos, como crônicas e poemas, teria nascido do desejo de compreender melhor a pintura de Van Eyck. Como é que o estilo kitsch de boa parte das manifestações da vida material e uma poesia sem senso de unidade, tendente a excessos descritivos, podia ter sido obra do mesmo tipo histórico de impulso lúdico que gerou o retrato do casal Arnolfini, que vemos na capa do livro? Articulando o simbolismo “realista” do pensamento medieval com o entendimento das expressões da cultura como jogos, Huizinga desvenda o mistério.
O conteúdo e o senso de unidade se perdem na formalização da vida. Cada evento pode se tornar um exemplo moral, e a cristalização dessa forma de pensar dá-se em formas como o provérbio. Personificações são o meio preferido da época para representar o mundo emocional: numa obra intitulada Espelho do Casamento, um poeta põe em cena personagens alegóricos: “livre-arbítrio”, “loucura”, “desejo” e “repertório da ciência”. “A função causal da mente” medieval “opera como uma central telefônica”, diz Huizinga. O pensamento está tão entranhado no formalismo que uma dama casada que, encantada pelos versos de um poeta, beija sua boca, se sai com a justificativa de que beijou a boca que proferiu belos versos, e não o homem.
A dignidade intrínseca que cada qualidade individual do jogo da vida detém explica ao mesmo tempo a perfeição detalhista e falta de princípio de unidade dos quadros de Jan van Eyck. O artista medieval sabe pintar à perfeição um conjunto limitado de objetos, mas, como o poeta, não sabe omitir nem sintetizar; falta-lhe também o senso de ritmo e movimento – compare-se a aparência algo rígida dos Arnolfini de van Eyck com a Vênus ou a Primavera de Botticelli. Podemos questionar uma interpretação tão romântica e totalizante da cultura medieval. O fato é que, ao menos enquanto atravessamos esse livro deslumbrante, é difícil não ceder ao encanto de seu jogo.