'A Interpretação dos Sonhos', de Sigmund Freud, ganha nova tradução


Publicado há 120 anos, livro reafirma a linguagem como reveladora do humano

Por Amanda Mont'Alvão Veloso

Ainda que as paredes e os aplicativos tenham ouvidos e a vida banal ostente câmeras, persiste um reduto de assegurada intimidade para os seres humanos: os sonhos. Neles, vivemos subterrâneos inaceitáveis em uma vida acordada; matamos e morremos como quem troca o travesseiro de posição; criamos e destruímos coisas, pessoas e lugares ao sabor do absurdo. 

O pai da psicanálise, Sigmund Freud Foto: EDDIE WORTH/AP

Zona de franco descontrole e imprevisibilidade, a atividade onírica dos sujeitos é tema de investigações milenares. Ela já foi considerada fruto de inspiração divina, sem qualquer relação com seu roteirista, ou mero resquício da atividade diurna. Foi submetida a adivinhações e enquadrada em mitologias. Mas também apontou para fantasias trancadas em cofres da consciência. Foi com Sigmund Freud que os sonhos protagonizaram um dos maiores rompimentos na ciência: o saber sobre o sujeito. Se com Descartes o sujeito ocupava o lugar do conhecimento e da verdade, com a Psicanálise ele se revela dividido e sem poder sobre a própria casa, uma vez que o inconsciente quebra a unidade esperada e instaura o desconhecimento como premissa existencial. 

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Era um modo radicalmente novo de se debruçar sobre o humano e de se compreender o adoecimento psíquico. Ao investigar os sonhos por meio dos relatos dos pacientes, Freud percebeu que a estruturação dos quadros patológicos era também encontrada em fenômenos da vida cotidiana. Loucura e normalidade perdiam sua distinção nos sonhos. As descobertas advindas da análise detalhada de 160 produções oníricas resultaram no clássico A Interpretação dos Sonhos, que ganha nova edição da Companhia das Letras, com tradução vertida diretamente do alemão por Paulo César de Souza. O texto completa 120 anos neste 2019, mas foi registrado com a data de 1900 a pedido do próprio Freud, que desejava inaugurar a a teoria e a prática da Psicanálise junto com o novo século. 

Assim como a totalidade de seu obra, o primeiro dos 23 livros publicados por Freud é pretensioso, fundado na experiência clínica, reformulado na medida em que avançavam os estudos de seu autor e sujeito a recepções heterogêneas pela comunidade científica, seja por sua ênfase na subjetividade quanto pelo aporte de registros simbólicos. Nas palavras de sua biógrafa, a historiadora e psicanalista Elisabeth Roudinesco, ao celebrar as pulsões, lendas, mitos e tradições populares, Freud "pretendia atacar os medalhões e representantes da ciência oficial".

A fim de estabelecer suas teses, nas cem primeiras páginas Freud percorre criticamente os trabalhos desenvolvidos sobre os sonhos até então, recuperando nomes como Aristóteles, Havellock Ellis, Alfred Maury e outros. Não é sem um olhar arqueológico que afirma que "os sonhos têm realmente um sentido e que um método científico para interpretá-los é possível". A origem, as interrogações e a comprovação das hipóteses freudianas foram os sonhos, inclusive do próprio Freud, o que rendeu comentários críticos quanto a uma "autobiografia disfarçada". Há ainda outras 70 produções oníricas, relatadas por amigos e parentes. Foi com humor que Freud reagiu à exposição das intimidades de "um autor que não é poeta, mas homem de ciência": Só me resta manifestar a esperança de que os leitores deste trabalho se coloquem em minha situação difícil (...), e, além disso, que todas as pessoas que, de alguma forma, se julgarem aludidas nos sonhos comunicados, pelo menos não recusem à vida onírica a liberdade de expressão."

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Nos capítulos que antecedem a minuciosa teorização sobre o inconsciente, Freud detalha os pressupostos para a interpretação analítica dos sonhos, ou seja, aquela feita sobre o relato do paciente. A análise é norteada pela subjetividade e, portanto, não corresponde a referenciais predeterminados. Imagens possuem valor de palavra, características condensam inúmeras referências e elementos concorrem para atrair e eclipsar a atenção do sonhador. Em suma, desejos expulsos da consciência emergem sob disfarce para seus sonhadores e são realizados durante a atividade onírica. A deformação operada protege o sujeito da ameaça representada por esses desejos. Apesar do absurdismo narrativo, os sonhos se desdobram em sentidos atrelados à vida de seu narrador. 

A interpretação, explica o autor, é indefinida e não se esgota em um sentido, uma vez que vários fatores convergem para a formação dos sonhos, como lembranças inacessíveis, desejos infantis e reminiscências diurnas. A decomposição do sonho em elementos a partir da associação livre que o paciente faz é contínua e certamente esbarra em um resto que não é interpretável - o chamado "umbigo do sonho". O caráter inacabado da interpretação proposta por Freud é fonte de críticas, mas é nesta infinidade que o método se assenta. 

A formação em uma época positivista e cientificista evidencia as rupturas propostas por Freud no clássico livro sobre os sonhos. Neurologista de formação, ele ainda deposita vestígios de um vocabulário biológico. Mas ao conferir estatuto científico aos sonhos em uma operação só possível pela linguagem - afinal, sua pesquisa é sobre o sentido -, Freud se junta a nomes como Saussure, que demandaram tempo para a compreensão de suas novidades na mesma medida em que recolheram as rejeições aos modelos inaugurais de pensamento. Ao articular biológico, psíquico e cultural, Freud demonstrou que os sonhos têm a função de integrar os próprios enigmas às vidas dos sujeitos, tornando possível e humana a vivência dos pensamentos inconfessáveis, da contradição e do intolerável. 

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*Amanda Mont'Alvão Veloso é psicanalista, jornalista e mestranda em Linguística Aplicada pela PUC-SP

Ainda que as paredes e os aplicativos tenham ouvidos e a vida banal ostente câmeras, persiste um reduto de assegurada intimidade para os seres humanos: os sonhos. Neles, vivemos subterrâneos inaceitáveis em uma vida acordada; matamos e morremos como quem troca o travesseiro de posição; criamos e destruímos coisas, pessoas e lugares ao sabor do absurdo. 

O pai da psicanálise, Sigmund Freud Foto: EDDIE WORTH/AP

Zona de franco descontrole e imprevisibilidade, a atividade onírica dos sujeitos é tema de investigações milenares. Ela já foi considerada fruto de inspiração divina, sem qualquer relação com seu roteirista, ou mero resquício da atividade diurna. Foi submetida a adivinhações e enquadrada em mitologias. Mas também apontou para fantasias trancadas em cofres da consciência. Foi com Sigmund Freud que os sonhos protagonizaram um dos maiores rompimentos na ciência: o saber sobre o sujeito. Se com Descartes o sujeito ocupava o lugar do conhecimento e da verdade, com a Psicanálise ele se revela dividido e sem poder sobre a própria casa, uma vez que o inconsciente quebra a unidade esperada e instaura o desconhecimento como premissa existencial. 

Era um modo radicalmente novo de se debruçar sobre o humano e de se compreender o adoecimento psíquico. Ao investigar os sonhos por meio dos relatos dos pacientes, Freud percebeu que a estruturação dos quadros patológicos era também encontrada em fenômenos da vida cotidiana. Loucura e normalidade perdiam sua distinção nos sonhos. As descobertas advindas da análise detalhada de 160 produções oníricas resultaram no clássico A Interpretação dos Sonhos, que ganha nova edição da Companhia das Letras, com tradução vertida diretamente do alemão por Paulo César de Souza. O texto completa 120 anos neste 2019, mas foi registrado com a data de 1900 a pedido do próprio Freud, que desejava inaugurar a a teoria e a prática da Psicanálise junto com o novo século. 

Assim como a totalidade de seu obra, o primeiro dos 23 livros publicados por Freud é pretensioso, fundado na experiência clínica, reformulado na medida em que avançavam os estudos de seu autor e sujeito a recepções heterogêneas pela comunidade científica, seja por sua ênfase na subjetividade quanto pelo aporte de registros simbólicos. Nas palavras de sua biógrafa, a historiadora e psicanalista Elisabeth Roudinesco, ao celebrar as pulsões, lendas, mitos e tradições populares, Freud "pretendia atacar os medalhões e representantes da ciência oficial".

A fim de estabelecer suas teses, nas cem primeiras páginas Freud percorre criticamente os trabalhos desenvolvidos sobre os sonhos até então, recuperando nomes como Aristóteles, Havellock Ellis, Alfred Maury e outros. Não é sem um olhar arqueológico que afirma que "os sonhos têm realmente um sentido e que um método científico para interpretá-los é possível". A origem, as interrogações e a comprovação das hipóteses freudianas foram os sonhos, inclusive do próprio Freud, o que rendeu comentários críticos quanto a uma "autobiografia disfarçada". Há ainda outras 70 produções oníricas, relatadas por amigos e parentes. Foi com humor que Freud reagiu à exposição das intimidades de "um autor que não é poeta, mas homem de ciência": Só me resta manifestar a esperança de que os leitores deste trabalho se coloquem em minha situação difícil (...), e, além disso, que todas as pessoas que, de alguma forma, se julgarem aludidas nos sonhos comunicados, pelo menos não recusem à vida onírica a liberdade de expressão."

Nos capítulos que antecedem a minuciosa teorização sobre o inconsciente, Freud detalha os pressupostos para a interpretação analítica dos sonhos, ou seja, aquela feita sobre o relato do paciente. A análise é norteada pela subjetividade e, portanto, não corresponde a referenciais predeterminados. Imagens possuem valor de palavra, características condensam inúmeras referências e elementos concorrem para atrair e eclipsar a atenção do sonhador. Em suma, desejos expulsos da consciência emergem sob disfarce para seus sonhadores e são realizados durante a atividade onírica. A deformação operada protege o sujeito da ameaça representada por esses desejos. Apesar do absurdismo narrativo, os sonhos se desdobram em sentidos atrelados à vida de seu narrador. 

A interpretação, explica o autor, é indefinida e não se esgota em um sentido, uma vez que vários fatores convergem para a formação dos sonhos, como lembranças inacessíveis, desejos infantis e reminiscências diurnas. A decomposição do sonho em elementos a partir da associação livre que o paciente faz é contínua e certamente esbarra em um resto que não é interpretável - o chamado "umbigo do sonho". O caráter inacabado da interpretação proposta por Freud é fonte de críticas, mas é nesta infinidade que o método se assenta. 

A formação em uma época positivista e cientificista evidencia as rupturas propostas por Freud no clássico livro sobre os sonhos. Neurologista de formação, ele ainda deposita vestígios de um vocabulário biológico. Mas ao conferir estatuto científico aos sonhos em uma operação só possível pela linguagem - afinal, sua pesquisa é sobre o sentido -, Freud se junta a nomes como Saussure, que demandaram tempo para a compreensão de suas novidades na mesma medida em que recolheram as rejeições aos modelos inaugurais de pensamento. Ao articular biológico, psíquico e cultural, Freud demonstrou que os sonhos têm a função de integrar os próprios enigmas às vidas dos sujeitos, tornando possível e humana a vivência dos pensamentos inconfessáveis, da contradição e do intolerável. 

*Amanda Mont'Alvão Veloso é psicanalista, jornalista e mestranda em Linguística Aplicada pela PUC-SP

Ainda que as paredes e os aplicativos tenham ouvidos e a vida banal ostente câmeras, persiste um reduto de assegurada intimidade para os seres humanos: os sonhos. Neles, vivemos subterrâneos inaceitáveis em uma vida acordada; matamos e morremos como quem troca o travesseiro de posição; criamos e destruímos coisas, pessoas e lugares ao sabor do absurdo. 

O pai da psicanálise, Sigmund Freud Foto: EDDIE WORTH/AP

Zona de franco descontrole e imprevisibilidade, a atividade onírica dos sujeitos é tema de investigações milenares. Ela já foi considerada fruto de inspiração divina, sem qualquer relação com seu roteirista, ou mero resquício da atividade diurna. Foi submetida a adivinhações e enquadrada em mitologias. Mas também apontou para fantasias trancadas em cofres da consciência. Foi com Sigmund Freud que os sonhos protagonizaram um dos maiores rompimentos na ciência: o saber sobre o sujeito. Se com Descartes o sujeito ocupava o lugar do conhecimento e da verdade, com a Psicanálise ele se revela dividido e sem poder sobre a própria casa, uma vez que o inconsciente quebra a unidade esperada e instaura o desconhecimento como premissa existencial. 

Era um modo radicalmente novo de se debruçar sobre o humano e de se compreender o adoecimento psíquico. Ao investigar os sonhos por meio dos relatos dos pacientes, Freud percebeu que a estruturação dos quadros patológicos era também encontrada em fenômenos da vida cotidiana. Loucura e normalidade perdiam sua distinção nos sonhos. As descobertas advindas da análise detalhada de 160 produções oníricas resultaram no clássico A Interpretação dos Sonhos, que ganha nova edição da Companhia das Letras, com tradução vertida diretamente do alemão por Paulo César de Souza. O texto completa 120 anos neste 2019, mas foi registrado com a data de 1900 a pedido do próprio Freud, que desejava inaugurar a a teoria e a prática da Psicanálise junto com o novo século. 

Assim como a totalidade de seu obra, o primeiro dos 23 livros publicados por Freud é pretensioso, fundado na experiência clínica, reformulado na medida em que avançavam os estudos de seu autor e sujeito a recepções heterogêneas pela comunidade científica, seja por sua ênfase na subjetividade quanto pelo aporte de registros simbólicos. Nas palavras de sua biógrafa, a historiadora e psicanalista Elisabeth Roudinesco, ao celebrar as pulsões, lendas, mitos e tradições populares, Freud "pretendia atacar os medalhões e representantes da ciência oficial".

A fim de estabelecer suas teses, nas cem primeiras páginas Freud percorre criticamente os trabalhos desenvolvidos sobre os sonhos até então, recuperando nomes como Aristóteles, Havellock Ellis, Alfred Maury e outros. Não é sem um olhar arqueológico que afirma que "os sonhos têm realmente um sentido e que um método científico para interpretá-los é possível". A origem, as interrogações e a comprovação das hipóteses freudianas foram os sonhos, inclusive do próprio Freud, o que rendeu comentários críticos quanto a uma "autobiografia disfarçada". Há ainda outras 70 produções oníricas, relatadas por amigos e parentes. Foi com humor que Freud reagiu à exposição das intimidades de "um autor que não é poeta, mas homem de ciência": Só me resta manifestar a esperança de que os leitores deste trabalho se coloquem em minha situação difícil (...), e, além disso, que todas as pessoas que, de alguma forma, se julgarem aludidas nos sonhos comunicados, pelo menos não recusem à vida onírica a liberdade de expressão."

Nos capítulos que antecedem a minuciosa teorização sobre o inconsciente, Freud detalha os pressupostos para a interpretação analítica dos sonhos, ou seja, aquela feita sobre o relato do paciente. A análise é norteada pela subjetividade e, portanto, não corresponde a referenciais predeterminados. Imagens possuem valor de palavra, características condensam inúmeras referências e elementos concorrem para atrair e eclipsar a atenção do sonhador. Em suma, desejos expulsos da consciência emergem sob disfarce para seus sonhadores e são realizados durante a atividade onírica. A deformação operada protege o sujeito da ameaça representada por esses desejos. Apesar do absurdismo narrativo, os sonhos se desdobram em sentidos atrelados à vida de seu narrador. 

A interpretação, explica o autor, é indefinida e não se esgota em um sentido, uma vez que vários fatores convergem para a formação dos sonhos, como lembranças inacessíveis, desejos infantis e reminiscências diurnas. A decomposição do sonho em elementos a partir da associação livre que o paciente faz é contínua e certamente esbarra em um resto que não é interpretável - o chamado "umbigo do sonho". O caráter inacabado da interpretação proposta por Freud é fonte de críticas, mas é nesta infinidade que o método se assenta. 

A formação em uma época positivista e cientificista evidencia as rupturas propostas por Freud no clássico livro sobre os sonhos. Neurologista de formação, ele ainda deposita vestígios de um vocabulário biológico. Mas ao conferir estatuto científico aos sonhos em uma operação só possível pela linguagem - afinal, sua pesquisa é sobre o sentido -, Freud se junta a nomes como Saussure, que demandaram tempo para a compreensão de suas novidades na mesma medida em que recolheram as rejeições aos modelos inaugurais de pensamento. Ao articular biológico, psíquico e cultural, Freud demonstrou que os sonhos têm a função de integrar os próprios enigmas às vidas dos sujeitos, tornando possível e humana a vivência dos pensamentos inconfessáveis, da contradição e do intolerável. 

*Amanda Mont'Alvão Veloso é psicanalista, jornalista e mestranda em Linguística Aplicada pela PUC-SP

Ainda que as paredes e os aplicativos tenham ouvidos e a vida banal ostente câmeras, persiste um reduto de assegurada intimidade para os seres humanos: os sonhos. Neles, vivemos subterrâneos inaceitáveis em uma vida acordada; matamos e morremos como quem troca o travesseiro de posição; criamos e destruímos coisas, pessoas e lugares ao sabor do absurdo. 

O pai da psicanálise, Sigmund Freud Foto: EDDIE WORTH/AP

Zona de franco descontrole e imprevisibilidade, a atividade onírica dos sujeitos é tema de investigações milenares. Ela já foi considerada fruto de inspiração divina, sem qualquer relação com seu roteirista, ou mero resquício da atividade diurna. Foi submetida a adivinhações e enquadrada em mitologias. Mas também apontou para fantasias trancadas em cofres da consciência. Foi com Sigmund Freud que os sonhos protagonizaram um dos maiores rompimentos na ciência: o saber sobre o sujeito. Se com Descartes o sujeito ocupava o lugar do conhecimento e da verdade, com a Psicanálise ele se revela dividido e sem poder sobre a própria casa, uma vez que o inconsciente quebra a unidade esperada e instaura o desconhecimento como premissa existencial. 

Era um modo radicalmente novo de se debruçar sobre o humano e de se compreender o adoecimento psíquico. Ao investigar os sonhos por meio dos relatos dos pacientes, Freud percebeu que a estruturação dos quadros patológicos era também encontrada em fenômenos da vida cotidiana. Loucura e normalidade perdiam sua distinção nos sonhos. As descobertas advindas da análise detalhada de 160 produções oníricas resultaram no clássico A Interpretação dos Sonhos, que ganha nova edição da Companhia das Letras, com tradução vertida diretamente do alemão por Paulo César de Souza. O texto completa 120 anos neste 2019, mas foi registrado com a data de 1900 a pedido do próprio Freud, que desejava inaugurar a a teoria e a prática da Psicanálise junto com o novo século. 

Assim como a totalidade de seu obra, o primeiro dos 23 livros publicados por Freud é pretensioso, fundado na experiência clínica, reformulado na medida em que avançavam os estudos de seu autor e sujeito a recepções heterogêneas pela comunidade científica, seja por sua ênfase na subjetividade quanto pelo aporte de registros simbólicos. Nas palavras de sua biógrafa, a historiadora e psicanalista Elisabeth Roudinesco, ao celebrar as pulsões, lendas, mitos e tradições populares, Freud "pretendia atacar os medalhões e representantes da ciência oficial".

A fim de estabelecer suas teses, nas cem primeiras páginas Freud percorre criticamente os trabalhos desenvolvidos sobre os sonhos até então, recuperando nomes como Aristóteles, Havellock Ellis, Alfred Maury e outros. Não é sem um olhar arqueológico que afirma que "os sonhos têm realmente um sentido e que um método científico para interpretá-los é possível". A origem, as interrogações e a comprovação das hipóteses freudianas foram os sonhos, inclusive do próprio Freud, o que rendeu comentários críticos quanto a uma "autobiografia disfarçada". Há ainda outras 70 produções oníricas, relatadas por amigos e parentes. Foi com humor que Freud reagiu à exposição das intimidades de "um autor que não é poeta, mas homem de ciência": Só me resta manifestar a esperança de que os leitores deste trabalho se coloquem em minha situação difícil (...), e, além disso, que todas as pessoas que, de alguma forma, se julgarem aludidas nos sonhos comunicados, pelo menos não recusem à vida onírica a liberdade de expressão."

Nos capítulos que antecedem a minuciosa teorização sobre o inconsciente, Freud detalha os pressupostos para a interpretação analítica dos sonhos, ou seja, aquela feita sobre o relato do paciente. A análise é norteada pela subjetividade e, portanto, não corresponde a referenciais predeterminados. Imagens possuem valor de palavra, características condensam inúmeras referências e elementos concorrem para atrair e eclipsar a atenção do sonhador. Em suma, desejos expulsos da consciência emergem sob disfarce para seus sonhadores e são realizados durante a atividade onírica. A deformação operada protege o sujeito da ameaça representada por esses desejos. Apesar do absurdismo narrativo, os sonhos se desdobram em sentidos atrelados à vida de seu narrador. 

A interpretação, explica o autor, é indefinida e não se esgota em um sentido, uma vez que vários fatores convergem para a formação dos sonhos, como lembranças inacessíveis, desejos infantis e reminiscências diurnas. A decomposição do sonho em elementos a partir da associação livre que o paciente faz é contínua e certamente esbarra em um resto que não é interpretável - o chamado "umbigo do sonho". O caráter inacabado da interpretação proposta por Freud é fonte de críticas, mas é nesta infinidade que o método se assenta. 

A formação em uma época positivista e cientificista evidencia as rupturas propostas por Freud no clássico livro sobre os sonhos. Neurologista de formação, ele ainda deposita vestígios de um vocabulário biológico. Mas ao conferir estatuto científico aos sonhos em uma operação só possível pela linguagem - afinal, sua pesquisa é sobre o sentido -, Freud se junta a nomes como Saussure, que demandaram tempo para a compreensão de suas novidades na mesma medida em que recolheram as rejeições aos modelos inaugurais de pensamento. Ao articular biológico, psíquico e cultural, Freud demonstrou que os sonhos têm a função de integrar os próprios enigmas às vidas dos sujeitos, tornando possível e humana a vivência dos pensamentos inconfessáveis, da contradição e do intolerável. 

*Amanda Mont'Alvão Veloso é psicanalista, jornalista e mestranda em Linguística Aplicada pela PUC-SP

Ainda que as paredes e os aplicativos tenham ouvidos e a vida banal ostente câmeras, persiste um reduto de assegurada intimidade para os seres humanos: os sonhos. Neles, vivemos subterrâneos inaceitáveis em uma vida acordada; matamos e morremos como quem troca o travesseiro de posição; criamos e destruímos coisas, pessoas e lugares ao sabor do absurdo. 

O pai da psicanálise, Sigmund Freud Foto: EDDIE WORTH/AP

Zona de franco descontrole e imprevisibilidade, a atividade onírica dos sujeitos é tema de investigações milenares. Ela já foi considerada fruto de inspiração divina, sem qualquer relação com seu roteirista, ou mero resquício da atividade diurna. Foi submetida a adivinhações e enquadrada em mitologias. Mas também apontou para fantasias trancadas em cofres da consciência. Foi com Sigmund Freud que os sonhos protagonizaram um dos maiores rompimentos na ciência: o saber sobre o sujeito. Se com Descartes o sujeito ocupava o lugar do conhecimento e da verdade, com a Psicanálise ele se revela dividido e sem poder sobre a própria casa, uma vez que o inconsciente quebra a unidade esperada e instaura o desconhecimento como premissa existencial. 

Era um modo radicalmente novo de se debruçar sobre o humano e de se compreender o adoecimento psíquico. Ao investigar os sonhos por meio dos relatos dos pacientes, Freud percebeu que a estruturação dos quadros patológicos era também encontrada em fenômenos da vida cotidiana. Loucura e normalidade perdiam sua distinção nos sonhos. As descobertas advindas da análise detalhada de 160 produções oníricas resultaram no clássico A Interpretação dos Sonhos, que ganha nova edição da Companhia das Letras, com tradução vertida diretamente do alemão por Paulo César de Souza. O texto completa 120 anos neste 2019, mas foi registrado com a data de 1900 a pedido do próprio Freud, que desejava inaugurar a a teoria e a prática da Psicanálise junto com o novo século. 

Assim como a totalidade de seu obra, o primeiro dos 23 livros publicados por Freud é pretensioso, fundado na experiência clínica, reformulado na medida em que avançavam os estudos de seu autor e sujeito a recepções heterogêneas pela comunidade científica, seja por sua ênfase na subjetividade quanto pelo aporte de registros simbólicos. Nas palavras de sua biógrafa, a historiadora e psicanalista Elisabeth Roudinesco, ao celebrar as pulsões, lendas, mitos e tradições populares, Freud "pretendia atacar os medalhões e representantes da ciência oficial".

A fim de estabelecer suas teses, nas cem primeiras páginas Freud percorre criticamente os trabalhos desenvolvidos sobre os sonhos até então, recuperando nomes como Aristóteles, Havellock Ellis, Alfred Maury e outros. Não é sem um olhar arqueológico que afirma que "os sonhos têm realmente um sentido e que um método científico para interpretá-los é possível". A origem, as interrogações e a comprovação das hipóteses freudianas foram os sonhos, inclusive do próprio Freud, o que rendeu comentários críticos quanto a uma "autobiografia disfarçada". Há ainda outras 70 produções oníricas, relatadas por amigos e parentes. Foi com humor que Freud reagiu à exposição das intimidades de "um autor que não é poeta, mas homem de ciência": Só me resta manifestar a esperança de que os leitores deste trabalho se coloquem em minha situação difícil (...), e, além disso, que todas as pessoas que, de alguma forma, se julgarem aludidas nos sonhos comunicados, pelo menos não recusem à vida onírica a liberdade de expressão."

Nos capítulos que antecedem a minuciosa teorização sobre o inconsciente, Freud detalha os pressupostos para a interpretação analítica dos sonhos, ou seja, aquela feita sobre o relato do paciente. A análise é norteada pela subjetividade e, portanto, não corresponde a referenciais predeterminados. Imagens possuem valor de palavra, características condensam inúmeras referências e elementos concorrem para atrair e eclipsar a atenção do sonhador. Em suma, desejos expulsos da consciência emergem sob disfarce para seus sonhadores e são realizados durante a atividade onírica. A deformação operada protege o sujeito da ameaça representada por esses desejos. Apesar do absurdismo narrativo, os sonhos se desdobram em sentidos atrelados à vida de seu narrador. 

A interpretação, explica o autor, é indefinida e não se esgota em um sentido, uma vez que vários fatores convergem para a formação dos sonhos, como lembranças inacessíveis, desejos infantis e reminiscências diurnas. A decomposição do sonho em elementos a partir da associação livre que o paciente faz é contínua e certamente esbarra em um resto que não é interpretável - o chamado "umbigo do sonho". O caráter inacabado da interpretação proposta por Freud é fonte de críticas, mas é nesta infinidade que o método se assenta. 

A formação em uma época positivista e cientificista evidencia as rupturas propostas por Freud no clássico livro sobre os sonhos. Neurologista de formação, ele ainda deposita vestígios de um vocabulário biológico. Mas ao conferir estatuto científico aos sonhos em uma operação só possível pela linguagem - afinal, sua pesquisa é sobre o sentido -, Freud se junta a nomes como Saussure, que demandaram tempo para a compreensão de suas novidades na mesma medida em que recolheram as rejeições aos modelos inaugurais de pensamento. Ao articular biológico, psíquico e cultural, Freud demonstrou que os sonhos têm a função de integrar os próprios enigmas às vidas dos sujeitos, tornando possível e humana a vivência dos pensamentos inconfessáveis, da contradição e do intolerável. 

*Amanda Mont'Alvão Veloso é psicanalista, jornalista e mestranda em Linguística Aplicada pela PUC-SP

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