Uma escritora, desconhecida no Brasil, vive reclusa numa ilha, a da Madeira. Não tem fotos em revistas, nem costuma dar entrevistas. Mais de 40 obras publicadas, traduzidas em vários idiomas, Ana Teresa Pereira escreve. Isso lhe basta.
As paisagens e os personagens de seus livros nunca lembram seu país de origem. As epígrafes são de Íris Murdoch, Truman Capote ou de Robert Browning. De Portugal, guarda apenas o idioma, manejado com maestria e despojamento. Se a língua portuguesa é uma pátria, seu mundo é mais de dentro. São cenários de bruma os que as histórias de Ana Teresa Pereira requerem. Charnecas e jardins submersos em nevoeiro de uma Inglaterra que não existe. Pois a literatura da autora de A Outra, de Neverness ou de O Sentido da Neve é sempre uma invenção.
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Não são fáceis os enredos de seus livros. Mas a linguagem é clara, fluida, com direito a divagações poéticas que se intrometem na página de forma engenhosa. É como um caminhar tranquilo em labirinto. Sente-se na escrita a acolhida ao conselho de Flaubert, para quem a arte de narrar deve ser entendida por todos da casa. O claro a navegar o obscuro.
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Os livros de Ana Teresa Pereira são sofisticados, mas não se nutrem de malabarismos verbais. O que importa é a arquitetura de seus textos. A urdidura às vezes pode ser complexa, mas o fio da linguagem há de fluir manso, sem demasia. O tapete desenrola-se escorreito ao sair do tear, pronto para a oração. Assim as histórias que gostamos de ouvir ou de ler. Tais as de Sherazade, contadas ao rei Xariar, nos serões de suas mil e uma noites. Mesmo sabendo que ao final de cada relato pode aguardar-nos a catástrofe.
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E há algo de Sherazade em certos escritos de Ana Teresa Pereira. Como o recurso ao roman à tiroirs, quando a narrativa é entrecortada de trechos secundários ou de fragmentos. Nem sempre tais situações reportam-se ao eixo principal do livro. Concorrem para atiçar o leitor ou deixar que ele respire quando a leitura o conduzir à tensão de um filme policial. Gênero, aliás, do qual ela tem o domínio e a cujos estratagemas recorre. Suas referências frequentes a autores como Raymond Chandler ou William Irish desvendam tal pendor.
Não apenas aos nomes do romance negro ela se reconhece tributária. Costuma citar as influências que carrega. Talvez no intuito de revelar as fontes nas quais aprimorou a própria oficina, com o reconhecimento de quem reverencia os mestres. As reiteradas alusões a Henry James ou a Jorge Luís Borges, por exemplo. Deles, em boa parte, os tons sombrios, o desdobramento de personalidades, as nuances de um chiaroscuro que perpassa boa parte dos escritos de Ana Teresa Pereira.
Contudo, ele, o leitor, deve ficar atento às armadilhas de um jogo ‘perverso’, quem sabe concebido para espicaçar os incautos. Exemplo: um conto, intitulado Notorious, é considerado num de seus livros como sendo da autoria de Alfred Hitchcock. De fato, trata-se do título de um filme dele (traduzido como Interlúdio), de 1946. Porém, quem escreveu o conto que deu origem à película foi o escritor e roteirista John Tainyoor Foote que, na verdade, nunca foi citado nos créditos. Ana Teresa Pereira, conhecedora do cinema, usa desses artifícios para ‘burlar’ o leitor. Repetindo o que fez no primeiro romance, Matar a Imagem, quando deu nome a uma película inexistente, supostamente dirigida pelo mesmo Hitchcock.
Seus textos contêm alusões a pintores, filmes, autores, paisagens, pinturas, mas não se trata de pretensa cultura. Apenas aguçam a curiosidade de quem a lê ou levam à descoberta de alguma ideia escondida detrás de um parágrafo ou do discurso de um personagem. É assim que Ana Teresa Pereira faz menção ao livro Esculpir o Tempo, do cineasta russo Andrei Tarkovski. Nele, o diretor de Andrei Rublev, confessa que ao fazer a leitura de um conto busca escrutar seu potencial cinematográfico. É o caminho inverso o que ela percorre, quando penetra no cinema para buscar a possível tradução literária de suas imagens.
Numa de suas raras entrevistas, confessou que escreve como se estivesse a preparar um filme. E num de seus primeiros livros, A Última História, catalogado como policial, comenta-se que o ato de escrever é comparável a um crime. Entra-se num mundo oculto e deixa-se acontecer o livro, com a paciência de quem planeja um frio assassinato.
Assim é a literatura de Ana Teresa Pereira: enreda o leitor e o torna prisioneiro dos ardis de uma ficção que funde ingredientes oníricos com figuras que se movem feito atores de um drama cinematográfico.
O romance Karen (prêmio Oceanos 2017) inicia justamente fazendo apelo à primeira cena de Um Rosto na Noite (1957), de Luchino Visconti, inspirado no conto homônimo de Dostoievski: “Le Notte Bianchi passava-se numa ponte: Maria Schell esperava o amante que partira há um ano.”
Nas pegadas de Borges, a escritora Ana Teresa Pereira insinua que, no fundo, a filosofia não é senão um ramo da literatura fantástica.
*Everardo Norões é poeta, autor dos livros 'Melhores Mangas' (2016) e 'Entre Moscas' (2013)