Disseram os mestres: “o caminho de volta” é um movimento necessário. Começo assim, por um dizer ancestral, já trazendo uma voz que por muito tempo esteve calada. Quando falo em “calar” me vem uma imagem: a litogravura do artista Jacques Etienne Arago, do século XIX, chamada “Castigo de Escravos”, na qual a escrava Anastácia usa uma máscara de Flandres - feita de chapa de aço, com furinhos - que lhe cobre a boca.
Anastácia passou a ser cultuada pela igreja católica, no Brasil, a partir de 1968, tendo como referência iconográfica esta litografia. Em 2019, o artista Yhuri Cruz, criou a obra “Monumento à voz de Anastácia” - uma pintura, na qual a santa aparece livre da máscara silenciadora.
Quando o artista faz esse movimento simbólico, ele liberta a todos nós, que fomos e ainda somos calados, no dia a dia, nos espaços de trabalho, nos espaços escolares e tantos outros lugares da vida cotidiana.
Para exemplificar, trago o evento que marcou o começo de abril de 2024, a I Jornada NUPE - um grande encontro de pesquisadores negros, promovido pelo Núcleo Negro para Pesquisa e Extensão da Unesp, como uma maneira de trazer a tona a voz de alunos pretos de várias áreas e cursos.
Repetidamente, ao pegar o microfone, para apresentar suas pesquisas, disseram ser difícil falar, em suas salas de aula da graduação e pós-graduação, onde a maioria é composta por alunos e professores brancos. Estes relatos me demoveram. Por que ainda nos calam?
A resposta a esta questão está na construção simbólica: é como se uma imagem da Escrava Anastácia amordaçada povoasse o inconsciente coletivo e que continuamente é reiterada por comentários maldosos e olhares de reprovação.
O ser humano é simbólico, constrói realidades com signos e alegorias, logo, imagens contribuem no engendramento de valores. Se figurações racistas nos rodeiam, mesmo que sutilmente, acreditamos que isso é natural. Os cânones da arte oferecidos historicamente por escolas, mídia, museus ou outros meios têm sido também responsáveis pela manutenção do racismo. Não se trata, todavia, de uma disputa do imaginário simbólico, mas pelo contrário, trata-se de ampliação do repertório de possibilidades de existência.
Sobre a presença negra na arte brasileira é preciso ressaltar que foi aos poucos que adentramos este espaço. No início, quando uma pessoa negra era retratada, por artista branco, ocupava sempre o papel de “escravo/sofredor”. Bom, após a década de 1960, artistas brancos trazem nova representação do negro: “o malandro”, “a mulata exótica”, como libertos da escravidão, mas vivendo em libertinagem, essas pinturas reforçavam um imaginário racista sobre personalidade e idoneidade negra.
Em 2021, fez 10 anos da política de cotas - um pontapé para o nascimento de conhecimentos científicos que perpassam os corpos negros. A partir do momento que pretos e pardos têm acesso à universidade, ao estudar artes, passam a produzir, documentar e disseminar imagens desmistificando ideias racistas.
Esse processo força o sistema a repensar a presença negra nas exposições de arte. Vale apontar o exemplo da exposição Histórias Afro-Atlânticas, de 2018, no MASP e no Instituto Tomie Ohtake, que reuniu 214 artistas negros.
E, mais recentemente, “Dos Brasis”, no SESC Belenzinho, em 2023/2024, com 240 artistas negros. Estas imagens de arte expostas são capazes de desnaturalizar o racismo, fazendo o caminho de volta, retomando as histórias dos ancestrais. Reconstroem um imaginário social, com narrativas que estavam silenciadas, por uma máscara de Flandres, que já foi retirada.